Gerd Leonhard nasceu em Bona, na Alemanha, há 60 anos. Estudou teologia e filosofia, aprendeu música na Berklee College of Music em Boston, tocou guitarra em bares, gravou discos. Em 1995, "descobriu" a internet e depois fundou a LicenseMusic, antecessora do Spotify. Publicou "O Futuro da Música", que se tornou uma espécie de bíblia do negócio digital. Antecipava então a teoria "Music Like Water": a música deixaria de ser um produto para se transformar num bem de fluxo gratuito. "Depois desse livro, as pessoas começaram a dizer que eu era um futurista." Ele diz que apenas observa o óbvio. Está nos "rankings" mundiais dos pensadores mais reputados. O seu último livro chama-se "Tecnologia versus Humanidade" e é também sobre isso que vai falar no 30.º Congresso das Comunicações da APDC, que se realiza a 12 e 13 de maio, em formato híbrido - tal como o mundo.
Como avalia o desempenho de Portugal na luta "Tecnologia versus Humanidade", o título do seu último livro?
Os portugueses têm uma cultura muito humanista, gostam de tecnologia mas são tradicionais nesse sentido humanista, mantêm vínculos sociais fortes, bastante assentes em laços familiares. Países como Portugal e Brasil estão muito focados em tirar partido da tecnologia, ou seja, olham para a forma como a tecnologia pode melhorar a vida do ser humano. Acho que de alguma maneira encontrei a audiência certa em Portugal, não sei exatamente porquê, na verdade. Acontece o oposto em países como a Suíça, onde moro, aqui as pessoas não se mostram muito interessadas em refletir sobre o futuro, acham que o futuro é potencialmente perigoso e não querem pensar muito nisso. Já os americanos estão sempre a olhar para a frente, atiram-se, arriscam, inventam…
Portugal também não fomenta a cultura do risco.
Deveriam vir mais vezes à Suíça para perceber o que é ser conservador! Tudo é relativo. Portugal apresenta um bom equilíbrio entre tradição cultural e abertura à mudança. Costumo dizer que a cultura "come" tecnologia ao pequeno-almoço, a cultura é o mais importante quando pensamos no futuro. Tudo é cultura, e a forma como a encaramos determina o nosso sucesso. Por exemplo, a Nova Zelândia tem feito um excelente trabalho na gestão da pandemia, não apenas por ser uma ilha, mas sobretudo por estimular uma cultura de colaboração e de bem-estar coletivo.
É assim que vê o futuro, como um sistema colaborativo?
Sim, precisamos de tecnologia para enfrentar problemas globais como as alterações climáticas. Mas as ferramentas tecnológicas não bastam por si, é preciso usá-las corretamente, temos de ser bastante inteligentes, para conseguirmos de facto beneficiar todas as pessoas, independentemente da classe social ou dos rendimentos, proporcionando um sistema realmente justo. Como diz o escritor William Gibson, o futuro já chegou, mas está mal distribuído. Neste caso, a Europa até apresenta vantagens, os países europeus, genericamente, têm bons sistemas redistributivos.
A distribuição das vacinas contra a covid-19 não tem sido propriamente um sucesso.
Isso é verdade e até é estranho. Os Estados Unidos cometeram imensos erros de gestão no início da pandemia, mas hoje grande parte da sua população está vacinada. Esta até é uma "história" tipicamente americana: no início, não há um grande investimento no bem-estar social, mas depois o país injeta dinheiro e põe mãos à obra na investigação e na capacidade produtiva, conseguindo grandes avanços e evoluindo mais rapidamente. Na Europa acontece o movimento contrário, nós falhamos na organização e no trabalho em equipa. Se tivéssemos agido enquanto uma só Europa, como uma Europa unida – como os "estados unidos da Europa" –, hoje teríamos vacinas em todo o lado. Não foi assim que agimos, e errámos. Esta é uma grande lição para a Europa.
Considera que a Europa está finalmente a apanhar a corrida da digitalização?
Muitos europeus encaram a digitalização como o oposto de humanização, e não é assim. Com as ferramentas digitais, ficamos com mais tempo para fazer o que é realmente importante. Porque não apostar num futuro mais sustentável e fazer da sustentabilidade uma prioridade de facto? O futuro já cá está, este é o momento para decidir como queremos que seja. Os próximos dez anos serão decisivos para determinar quem realmente somos. Temos de tomar as decisões corretas. Falamos também de escolhas políticas. Genericamente, o dinheiro existe, mas talvez estejamos a colocá-lo nos sítios errados. Foi o que aconteceu com a distribuição das vacinas, havia dinheiro, mas não cooperámos o suficiente para garantir o seu acesso.
O chamado "tecnochoque" pandémico também agravou as desigualdades sociais.
A pandemia tem funcionado como um holofote gigante, mostrando coisas potencialmente boas, como o teletrabalho e o "e-commerce", e evidenciando também aquilo que está mal. E o que está mal piorou: sabemos que a pandemia agravou as desigualdades, sim. Há pessoas que estão sempre em desvantagem, seja por uma questão de raça, de género ou de contexto económico. Quem está no topo da pirâmide encontra sempre alguma margem de segurança. Mas, quando a maré baixa, afunda todos os barcos, e assim que deixar de existir água ninguém precisará de um barco. As pessoas muito ricas também fazem parte deste mundo. Ninguém escapa a uma pandemia ou a um desastre tecnológico global. Se não trabalharmos em conjunto, todos sofrem as consequências.
Continua a ser um "tecnotimista"?
Costumo ironizar e citar Winston Churchill, dizendo que podemos acreditar que a Humanidade vai fazer aquilo que é mais correto, depois de ter tentado tudo o resto. Fazemos muitas coisas más e estúpidas, mas depois costumamos alcançar uma espécie de cooperação criativa, como é o caso do acordo nuclear. Construímos a bomba, usámos a bomba, matámos milhares de pessoas…, e depois investimos em segurança, trabalhando coletivamente. Talvez aconteça o mesmo com a pandemia. Em nome do bem comum, juntámo-nos para produzir rapidamente uma vacina e vários países lançaram de imediato pacotes de ajuda financeira. Temos aprendido lições muito dolorosas, que nos preparam para responder mais rapidamente aos problemas que aí vêm.
Os humanos têm de se transformar em ciborgues para sobreviver?
Não, os humanos têm de ser ainda mais humanos. Conectar o cérebro à internet, através de "brain–computer interfaces", até pode ser fantástico em algumas situações. Mas se nos fundirmos demasiado com a tecnologia, se nos tornarmos quase uma e a mesma coisa, sairemos derrotados. Porque a tecnologia não pode ser vencida em termos de velocidade de processamento ou de memória. As máquinas são muito mais eficientes do que os homens. Hoje ainda conseguimos ter alguma vantagem sobre a tecnologia, mas deixaremos de ter nos próximos dez anos. A ciência é poderosa e é exponencial. Não podemos competir com a computação inteligente, podemos sim competir com a inteligência humana, que envolve mais do que computação. Não pensamos apenas com o cérebro, pensamos com tudo e, isso, as máquinas não conseguem fazer, pois na verdade não existem. Não devemos construir máquinas que simulem demasiado um ser humano, devemos fazê-lo só até certo ponto, precisamos apenas que façam o que nos é mais difícil, como computação em larga escala e análise de dados. Não devemos ir longe demais, será impossível depois voltar atrás. É a tal questão de usarmos as ferramentas para o fim correto – esse é o nosso grande desafio, aí reside a nossa sabedoria.
Devemos definir novos limites?
O poder da tecnologia está a escalar face ao poder do Homem e ainda não chegámos a um consenso sobre os limites das novas ferramentas: até onde deverão transformar-nos? Tem que ver também com a questão do bem comum. A tecnologia está a enriquecer muito algumas pessoas, basta ver que as grandes companhias bolsistas já não são as petrolíferas, são as tecnológicas. O Facebook lucra 156 milhões de dólares por dia, e a grande fatia desse lucro destina-se a seis ou sete cidades dos Estados Unidos e fica nas mãos de uma minoria. Precisamos de assegurar que os benefícios da tecnologia são distribuídos equitativamente – e isto é também uma questão de política fiscal e de supervisão, não apenas de regulação. Há muitas coisas que não estão legisladas, são reguladas pelo contrato social. Nem sempre precisamos de uma lei, temos é de saber impor limites. Precisamos de definir prioridades e estabelecer o nosso propósito. Se de facto nos preocupamos uns com os outros, se realmente nos importamos com o planeta, temos de os proteger.
Urge um despertar da consciência ética?
Sim. Diria que, nas questões essenciais, os seres humanos até estão em sintonia sobre o que no limite está certo ou errado. Quase todos concordarão com a igualdade de oportunidades, por exemplo. Assim, deveremos alcançar uma espécie de acordo nuclear e assumir compromissos em questões como a inteligência artificial. Temos de definir o "bottom line". Sim, queremos que a tecnologia nos ajude a gerir o tráfego aéreo, a descarbonizar e a melhorar os cuidados médicos, mas não queremos que nos diga o que devemos fazer, não queremos que a tecnologia nos governe. Quem é que está aos comandos da Humanidade, afinal? A tecnologia é neutral até ser usada, se queremos manter aquilo que nos torna humanos, temos de proteger o que faz de nós seres humanos, e isso não é o dinheiro, não é a informação, não são os dados, não é o 5G – estes são apenas instrumentos.
Está entusiasmado com o 5G?
Claro, as oportunidades são imensas. Se eu puder realizar uma conferência a partir de uma praia algarvia, usando um holograma, o 5G pode ser mesmo bastante útil... Mas a tecnologia não deve ser confundida com religião ou com propósito de vida. Não pode decidir a nossa vida, não pode ser usada como oxigénio. A realidade virtual dá-nos oportunidades fantásticas, mas receio graves problemas de adicção: usamos um bocadinho, sabe tão bem, faz-nos sentir super-humanos e, antes de darmos por isso, já estamos a viver apenas no interior desta "realidade". Começamos a fumar um ou dois cigarros por dia, depois cinco, a seguir dez, depois 20 e a seguir morremos… A tecnologia é muito assim, usamos um bocadinho, usamos cada vez mais, e de repente damos por nós a viver apenas dentro desta "droga", de tão tentadora que é.
Estudou teologia e filosofia, é músico. Como se tornou um "futurista"?
Eu era músico e também produtor, estudei na Berklee College of Music, em Boston, mas em 1995 "descobri" a internet. Na verdade, eu não estava muito por dentro do mundo da tecnologia, nem sequer tinha um computador, mas percebi que a internet poderia levar o trabalho dos músicos a todo o lado, sem limites. Adorei a ideia, e confesso que também estava um bocadinho cansado de tocar em bares. Tocava guitarra, passei um ano em Las Vegas, andei em cruzeiros e até gravei discos, mas não era suficientemente bom naquilo que de facto queria fazer em termos musicais. Entretanto alguns amigos meus estavam a lançar companhias de internet, um deles emprestou-me dinheiro e fundámos a LicenseMusic.com, empresa de licenciamento de música com um modelo semelhante ao Spotify. Foi uma loucura! Passou-se em 1998, eu tinha 38 anos. Mas, com a "bolha da internet", toda a gente foi à bancarrota em 2001, fomos todos. Em 2004 escrevi então o meu primeiro livro, "O Futuro da Música", que se tornou numa espécie de bíblia para o negócio digital da música: defendia que a distribuição iria passar pela teoria "Music Like Water" (ou "teoria Bowie"), em que a música deixaria de ser um produto para se tornar num bem de fluxo gratuito. Inspirámo-nos em David Bowie, até entrámos em contacto com ele, que achou a ideia fantástica – numa entrevista ao The New York Times, em 2002, Bowie dizia que a música seria como água corrente ou eletricidade. Uns anos depois, Daniel Ek fundou o Spotify com o mesmo paradigma, "Music Like Water". Depois desse livro, as pessoas começaram a dizer que eu era um futurista.
E tornou-se então um futurista.
Bem, eu não sabia bem o que isso era. Escrevi um livro sobre o futuro, percebi que tinha algum jeito para antecipar cenários no curto prazo, a cinco a 10 anos, mas não tenho nenhuma habilidade especial, qualquer pessoa o pode fazer desde que tenha tempo suficiente para pesquisar e para observar. Basicamente, é isso que faço, não faço previsões. Trata-se apenas de observar o óbvio.
Que ensinamentos retirou da sua formação em filosofia e teologia?
Nunca fui muito religioso e agora ainda menos, mas li muitos livros de filosofia, em grego, em hebreu, em latim. Tive uma educação humanista realmente muito forte, e é também por isso que costumo dizer que sou acima de tudo um humanista, não porque ache que os humanos devam estar no centro do mundo, não é uma questão de antropocentrismo, mas por achar que não faz sentido usar a tecnologia para nos tornarmos menos humanos... Isso assusta-me, a tecnologia move realmente muito dinheiro e sabemos que o dinheiro determina a agenda mundial…Podemos entrar por caminhos irreversíveis. Será que poderemos fazer tudo? Talvez. Mas será que queremos? Podemos ir a Marte, podemos ligar o cérebro à internet. Mas será isso bom?
Lidera a companhia The Futures Agency, formada por meia centena de "futuristas" que percorrem o mundo em congressos. Como lidaram com a pandemia?
Basicamente, transformei-me numa personalidade televisiva (risos), faço muitas conferências online. Até gosto da ideia de falar com muita gente sem ter de viajar, inclusivamente fiquei com mais tempo, mas a comunicação que se estabelece com as pessoas é diferente, sobretudo quando envolve questões complexas e emocionais. Faço "coaching" a CEO, administradores de empresas e a políticos, e também eles se mostram confusos em relação ao que se passa à sua volta. Já sabemos que as crises geram oportunidades, sabemos que genericamente os seres humanos não mudam facilmente, a não ser que enfrentem uma crise, como uma situação de desemprego ou um divórcio. Costumo até dizer: "It’s pain or love." Só mudamos realmente quando algo nos magoa ou quando nos apaixonamos por uma ideia. Por causa da covid, a próxima década vai trazer a maior mudança de sempre na história da Humanidade. Tudo vai acontecer nos próximos dez anos. Tudo o que era ficção científica está a tornar-se real e a pandemia deu-nos a certeza de que temos mesmo de tomar conta do nosso futuro.