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Fernando Ribeiro: O português é um bocadinho medroso

É apontado como o metaleiro-filósofo. Fernando Ribeiro é o rosto dos Moonspell, banda portuguesa de “heavy metal” com tarimba mundial. “Fomos um bocadinho ostracizados na cena em Portugal. Existe uma espécie de racismo musical”.

Miguel Baltazar
07 de Outubro de 2016 às 09:34
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Os países da Europa nunca se odiaram tanto. "Tu não és um metaleiro comum, pois não?", perguntou-lhe Sónia Tavares, vocalista dos The Gift, quando conheceu aquele que é hoje o marido, Fernando Ribeiro, o rosto dos Moonspell, banda portuguesa de "heavy metal" com tarimba mundial. É mesmo um dos grupos portugueses mais reconhecidos internacionalmente. O metaleiro-filósofo, como é apelidado, tem 42 anos, cresceu na Brandoa, onde nos anos 80 encomendava "metal underground" ao Círculo de Leitores e trocava cassetes com "penfriends". "Existia muita fome de material, trocávamos tudo, daí o fascínio pelos Correios!" Ele e os amigos experimentavam as guitarras e, à entrada dos anos 90, lançaram os Morbid God, primeiro nome dos Moonspell, banda feita de gente com cabelos compridos, coletes de cabedal, relógios de bolso. Banda com letras lunares. "Toda a gente dizia que Moonspell era um projecto quase profano, desajustado, um bocado arrogante", diz o vocalista e letrista da banda que está a comemorar os 20 anos do álbum "Irreligious", que será tocado no Pavilhão Multiusos de Guimarães a 2 de Dezembro e no Campo Pequeno, em Lisboa, no dia 4 de Fevereiro.  



Há uns anos, os Moonspell deixaram de ter um "manager" e apostaram no chamado "self-management". São metaleiros-gestores…

Gerir uma banda é algo que não faz parte dos planos iniciais, mas acaba por ir acontecendo. Não é a parte mais bonita da música, todos sabemos disso, mas é uma parte essencial e também pode ser criativa. Há cinco anos, entrámos em regime de "self­-management". E não foi apenas por uma questão financeira. Dá muito mais trabalho, mas temos aquilo que os músicos sonham, e que é a liberdade de dizer "não", é a liberdade de não ter de fazer um álbum para cumprir a agenda de uma "tournée". É a liberdade de poder gerir com "gut feeling". É poder ter uma certa teimosia. Portanto, "self-management" é liberdade de movimentos. Antigamente, gestão e marketing eram palavras proibidas e estranhas ao mundo da música. Felizmente, as bandas têm vindo a mudar a sua própria percepção em relação ao que é ser-se músico e têm vindo a deixar de ser tão ostensivas, deixaram de simular riqueza, algo que acontecia muito em Portugal. Lembro-me de ver bandas com grandes vidas, grandes casas, grandes carros e de pensar: ou estas pessoas se endividam muito ou então nós temos uma noção errada do que é estar numa banda, que é algo que implica muito investimento, sobretudo nos primeiros anos. 

 

Antes de formarem a vossa banda de "heavy metal", chegaram mesmo a "estudar o mercado"?

Sim, fizemos uma análise da cena portuguesa de "heavy metal" e achámos, na nossa ingenuidade, que faltava uma banda diferente no país. Começámos como jornalistas amadores de fanzines e contactávamos com muitas bandas internacionais. Apesar de não sermos músicos, éramos uns entusiastas daquele estilo de música e de vida, e eu até andava em negociações com os meus pais para deixar crescer o cabelo... 

 

Foi necessário convencê-los?

Claro que sim. Adoro os meus pais, tenho um grande amor por eles, uma grande gratidão, mas, atenção, eu venho de uma família vulgar, dos subúrbios, da Brandoa. Compreendo que na altura, face ao esforço que os meus pais faziam para terem melhores condições de vida, verem um filho, ainda por cima bom aluno, a apostar numa banda como os Moonspell ou Morbid God (o primeiro nome do grupo) não seria o mais esperado. Bem, também não iria ganhar dinheiro com o curso de Filosofia que andava a tirar, mas eu sempre fiz coisas por vocação. Os meus pais deram-me sempre imensos conselhos e a resistência deles até foi boa para mim. Na altura, havia duas espécies de pais, os combativos e aqueles que proporcionavam tudo aos filhos e, para esses, a música era quase um capricho, não era uma coisa suficientemente séria.

 

"Faltava uma banda de ‘heavy’ metal diferente." Onde estava a vossa diferença?

A ideia era construir algo original, de modo que, quando as pessoas se referissem ao "heavy metal" em Portugal, não pensassem apenas em meia dúzia de bandas que copiavam grandes nomes, como Metallica, Sepultura, Machine Head. Mas houve um grande período de incompreensão, mesmo dentro da cena do metal, até aceitarem os Moonspell. Fomos um bocadinho ostracizados na cena em Portugal. Eu sentia-me completamente deslocado dentro do meio. Acho que havia uma grande resistência a miúdos novos, como há sempre, que queriam fazer uma coisa diferente – agora, vêm aí os Moonspell, ainda por cima da Brandoa, e já querem ser os maiores! Tudo isto criava anticorpos e nós não íamos a sítios onde não nos sentíamos desejados. Na altura, éramos todos estudantes, não sabíamos o que iria acontecer connosco, mas tentávamos ser bastante profissionais em todos os pormenores, até nas capas dos discos. Pode soar um bocadinho presunçoso, mas acho que éramos realmente diferentes dos metaleiros que conhecíamos, tanto que a Sónia (Tavares) [vocalista dos Gift e esposa de Fernando Ribeiro], quando me conheceu, disse logo: "Tu não és um metaleiro comum, pois não?"  

 

No início, eram conhecidos por uma certa arrogância, não?

Toda a gente dizia que Moonspell era um projecto quase profano, um bocado desajustado, um bocado arrogante. Mas o que nós víamos era uma cena portuguesa sem qualquer espécie de expressão internacional desde o final dos anos 80 – e falo do "heavy metal", mas poderia falar do resto da música. Não havia praticamente ninguém, sem ser os Madredeus e alguns artistas do fado, com expressão internacional. Grandes bandas como os Xutos iam a Espanha, França, não muito mais. Eles tinham muito sucesso em Portugal e, se calhar, não precisavam dessa aventura lá fora. Nós, não só precisávamos como estávamos à procura dela.     

 

Que idade é que tinham quando começaram a preparar a banda?

Começámos a prepará-la em 1989, eu tinha 15 anos. Foi aos 13 que entrei em contacto com o universo do metal e depois foi tudo em catadupa. Na altura, eu ouvia a música que os anos 80 nos permitiam ouvir, e os anos 80 foram, na verdade, os anos da música, os músicos eram os maiores, eram eles as grandes vedetas, os grandes ídolos, não eram os jogadores de futebol nem os políticos. Eu vivia na Brandoa, onde havia duas ou três lojas de discos, que não distribuíam "heavy metal", só distribuíam "hard rock" e música de filmes. Lembro-me de descer a rua e entrar numa dessas lojas, que tinha um poster do John Travolta no "Saturday Night Fever", e foi lá que eu ouvi as primeiras bandas pesadas. Na Amadora, já havia uma discoteca que distribuía metal. E eu também comprava por catálogo. De vez em quando, a senhora do Círculo de Leitores batia à porta lá de casa, e os meus pais tinham imensos livros, até o grande livro da costura! Então, eu comecei a controlar as compras do Círculo de Leitores. Encomendava todo o "heavy metal" que havia, e que era pouco, "metal underground", e uma das bandas que mais me influenciou foi Bathory, um projecto de um só homem, muito misterioso. Também contactávamos com a cena internacional de metal através de cartas e dos "penfriends". Aquilo era uma espécie de internet, mas sem a pressa e a urgência de hoje. E havia os gurus dos "penfriends", que eram aqueles que tinham mais discos e mais cassetes para trocar. Existia muita fome de material, nós trocávamos tudo, daí o nosso fascínio pelos Correios. Faltávamos às aulas sempre que recebíamos um pacote importante!

 

Trocavam, recebiam as cassetes, e depois? Juntavam-se e tocavam numa garagem? Como era?

Éramos quatro miúdos da Brandoa, não sabíamos tocar, juntávamo-nos em casa, íamos experimentando, conversávamos e planeávamos, e fomos formando uma banda que falava muito do lado lunar do homem e do oculto. O lado católico dos pais pesava muito para não se falar dessas coisas. As bandas de "heavy metal", até à data, falavam de assuntos mais corriqueiros, falavam de miúdas, de cervejas, falavam de alguns pedaços de História. Esse lado lunar era, na altura, uma afirmação nossa, e por isso mantivemos os ensaios ultra-secretos, não havia amigos, não havia cervejas, não havia assistentes, éramos só nós, sempre a tocar, a desbravar territórios, horas seguidas a tocar "riff" na guitarra. Foi um período muito chato até 1992.

cotacao Fomos um bocadinho ostracizados na cena em Portugal. Existe uma espécie de racismo musical (...). Os músicos portugueses aburguesavam-se um pouco. 

Porquê chato?

Nós tínhamos entusiasmo, mas não saíamos da cepa torta enquanto músicos, precisávamos de algo que nos estimulasse a dar o primeiro passo. Tal como o poeta sai da gaveta, as bandas também têm de sair dela. É verdade que nunca quisemos participar em festivais de música moderna, que era algo que lançava muitas bandas em Portugal. Mas nós queríamos fazer as coisas à nossa maneira. Até que saímos numa compilação em vinil com as melhores bandas de "heavy metal" portuguesas e alguns novatos na cena. Demos nas vistas, até pela forma de apresentação, com aquela sensibilidade mais esotérica, vestíamos sempre coletes, usávamos relógios de bolso... Mas a imagem era apenas a continuidade do que queríamos transmitir. E tudo isso suscitava curiosidade.

 

Paralelamente, estudava Filosofia. Até já foi apelidado de filósofo do metal. Que pontos de contacto existem entre o "heavy metal" e a filosofia?

O "heavy metal" tem sido apreciado, por quem está de fora, de uma maneira bastante leviana. Há muitas relações, por exemplo, com a literatura, houve sempre uma relação óbvia com autores como [Charles] Baudelaire e [Samuel Taylor] Coleridge – há mesmo aquele épico dos Iron Maiden, "The Rime of the Ancient Mariner". Há bandas que trabalharam William Blake, nós trabalhámos Marquês de Sade, Mário Cesariny e Fernando Pessoa. O impacto do homem que luta contra o seu destino é um tema muito caro ao "heavy metal", pelo menos àquele de que eu gosto. Sempre me aproximei das bandas que vêem o homem na sua totalidade, ou seja, interessa-me aquele lado lunar, por isso, tive sempre um fascínio por letras de oculto, de ficção, de horror, até porque me parecem, de alguma forma, mais verdadeiras. 

 

Fazem 25 anos em 2017, são sobejamente conhecidos, mas "os Moonspell passam a vida a tocar no estrangeiro e ninguém faz menção a isso". Ainda sente essa falta de reconhecimento em Portugal?

Sinto, pelo menos, que há um grande incómodo quando reclamo de algo. Para já, tento afastar-me da perspectiva que geralmente é colada a um músico. Um músico em Portugal, hoje em dia, para a maior parte das pessoas, é um "entertainer", um "performer", e muita gente pensa que o facto de vivermos da música já é um privilégio tão grande que não deve haver mais nenhuma compensação. A vida de um músico é mal-entendida em Portugal e praticamente todos os músicos que são "bem-entendidos" acabaram por fazer cedências, habituaram-se à cena. Muitos deles poderiam ter tido uma carreira lá fora – e uma carreira lá fora implica fazer "tournées" de carrinha durante oito semanas, usar estações de serviço… Muitos fizeram isso, principalmente malta do "punk", do "rock" e do "heavy metal". Mas, de resto, os músicos aburguesavam-se um pouco. Quando voltámos a Portugal, em 1996, depois das nossas primeiras "tournées", metiam-nos numa carrinha bastante boa e íamos almoçar num sítio bonito. E eram logo hotéis de quatro e cinco estrelas. Mas o nosso trabalho não era nenhuma excursão…

 

E, hoje, vocês nunca vão para hotéis de quatro estrelas?

Nem sempre. Quando nos dão um cachê chave na mão e somos nós a tratar do assunto, podemos ficar em quartos duplos, triplos, desde que nos permitam descansar. Mas nós chegámos a ser, não diria achincalhados, mas gozados por um músico de baile que passava num grande carro – "Então?" Tive um Ford Fiesta durante muito tempo, só vou trocar agora, e não vou comprar um carro novo. Eu posso não ter o Audi que outros têm, mas faço aquilo que quero. Mas agora, por vários motivos, já não existe essa ostentação e os músicos portugueses até aparentam algum desleixo.

 

Existe aí alguma amargura, alguma zanga? Dizia, numa entrevista, que a vossa banda deveria ser considerada um exemplo, dada a sua improbabilidade.

Somos uma banda em plena actividade, com fãs, com concertos, mas de vez em quando temos a impressão de que somos velhos demais para alguns agentes que estão há cinco, dez anos, no mercado. Por outro lado, acho que há um certo branqueamento ou esquecimento dos Moonspell e de outras bandas, em prol de bandas mais consentâneas com o gosto pessoal e com algumas agendas. Para mim, o importante, claro, é fazer as coisas. Mas falar das cosias que fazemos é algo pelo qual temos de lutar, não só pelo nosso próprio ego ou reconhecimento, mas também para não sermos esquecidos numa história que não tem assim tantos exemplos como nós e que pode ser benéfico para outros.

 

Tiveram um desaguisado com o Público, depois de o autor do artigo "Buraka Som Sistema: dez anos da história mais surpreendente da música portuguesa" afirmar nunca ter existido um grupo português de música popular com tanta visibilidade internacional como os Buraka. Vocês acusaram o jornal de "racismo musical". Não foi excessivo?

O jornalista fazia uma radiografia à internacionalização da música portuguesa através da história, boa e meritória, dos Buraka, e dizia, como facto e não como opinião, que era um consenso que não havia uma banda tão transversal e internacional como os Buraka, o que é mentira. Achamos mesmo que existe uma espécie de racismo musical em desconsiderar bandas que já fizeram várias coisas lá fora, desde os Brigada Victor Jara aos Madredeus. Há uma certa sobranceria, há uma "intelligentsia" que grassa em Lisboa, há um jornalismo muito umbilical.

 

Falando na parte "feia" da música, a parte internacional representa quanto do vosso mercado?

Diria algo como 80 a 90%. Temo-nos aventurado noutros territórios, como o norte-americano. Mas estamos em toda a Europa, sobretudo na Alemanha, que é a nossa base. É forte, fiel, tem imprensa especializada e os maiores festivais do mundo. Dizem que o "heavy metal" é um nicho de mercado, e é, mas o festival Wacken Open Air, sem anunciar qualquer banda de cartaz, vende 70 mil bilhetes e esgota. O maior festival em Portugal, não específico, vende 60 mil, o que é fantástico para o país, claro. Em Portugal, sobreviver neste nicho seria praticamente impossível sem tocar em bares ou ter outra actividade paralela à música, mas não é impossível. E os Moonspell provaram isso mesmo. Porque arriscaram… Acho que o português é um bocadinho medroso. Alguns músicos poderiam ter arriscado mais. Houve muita gente a tocar lá fora, mas não avançou. O que nos distingue de outras bandas, e que é algo que nos une aos Buraka e aos Madredeus, é a continuidade nessa aventura – fazemos "tournées" há vinte anos e nunca tivemos um ano sabático sem tocar lá fora. Aliás, nunca estivemos mais de dois ou três meses sem sair de Portugal.

 

Até costumam ir a um cruzeiro de metaleiros, o 70000 Tons of Metal, não é? "Há um ambiente fantástico e todos cantam uns com os outros. De repente, está tudo a tomar o pequeno-almoço e a comer feijões…", dizia a Sónia Tavares, numa entrevista ao Negócios.

Para mim, o "heavy" metal é também um estilo de vida, que se baseia muito numa espécie de "carpe diem" ou "carpe noctem", há ali um desfrutar de uma irmandade imensa. Podemos estar a ouvir a banda mais deprimente do mundo, e sentir aquilo no momento do concerto, mas depois há um lado bestial de camaradagem. E o metal também se modernizou, foi encontrando formas de se diversificar e foram aparecendo festivais de "heavy metal". Só em Portugal, existem uns dez. O Vagos, agora o Vouga, Barroselas…, que são sítios mais ou menos improváveis para metaleiros. Metaleiros que vão para os Bombeiros beber copos, metaleiros que vão para as tascas da aldeia. Há ali uma onda mesmo muito boa. A Sónia, que não é uma fã de "heavy metal", ficava sempre muito espantada com o ambiente – "Ali, ninguém está a representar um papel", dizia-me. E eu compreendo. No outro dia, fui ao Cais do Sodré e parecia que estava a entrar numa aplicação do Instagram. É essa a sensação que tenho quando vou a um festival cheio de marcas. Nós já tocámos no Rock in Rio, por exemplo, mas mesmo dentro de um ambiente mais "hostil", o metaleiro consegue metalizar os festivais… É engraçado, quando eu morava em Lisboa, achava que Lisboa era uma cidade mais para todos, agora não sei, por isso é que fui para Alcobaça, que é uma cidade com o ritmo perfeito. Nada contra Lisboa, mas tenho o direito de pensar que Lisboa está mais "tcham" e mais "uau" e, para mim, não dá.

 

"Não acredito nas manifestações Time Out que percorreram a cidade para desaguarem no Cais do Sodré ao sabor do gim importado"; "Não acho que o que parva que sou ou o princesa... sejam os hinos de uma geração revolta ou inconformada"; "Por fim, entregámos o título de cantores de intervenção às pessoas mais betas do mudo". Frases duras que escreveu…

 É verdade. A minha tia era militante do Partido Comunista – incompatibilizou-se há uns tempos e dedicou-se ao caravanismo… –, e eu sempre fui a manifestações com ela, apoiei a CDU nas últimas eleições, mas sempre de uma forma crítica e agora até estou mais apartidário. E não, não fui à manifestação de 15 de Setembro de 2012, a essa, eu não fui. Há muitas pessoas em Portugal que têm grandes problemas e, sinceramente, não sei se foram essas as pessoas que saíram à rua nessa altura. Se calhar, manifestaram-se mais as pessoas que estavam a perder um bocadinho do seu "status quo". Pareceu-me mais uma birra gigantesca do que uma manifestação a sério.

 

Uma birra?!

Isto é a minha opinião, claro. Quanto à minha parte mais crítica…, os membros da banda Deolinda são umas jóias de pessoas, mas não acho que sejam uma banda de protesto, acho que cavalgaram um bocadinho na onda, talvez não eles, talvez a editora. Não são um José Mário Branco. Acho que há poucas bandas perigosas ou, de alguma forma, corrosivas. Para mim, música de intervenção tem de opor, não é só congregar. Não quero dizer que haja violência, mas há outra maneira de fazer as coisas. A mãe de uma amiga usa a expressão: é uma brincadeira levezinha. Mas a vida não é uma brincadeira levezinha.

 

Falta ao país a "dinâmica do rock"?

Sim, é uma extrapolação, claro, e à excepção de pessoas como a Mariana Mortágua, o Miguel Tiago, falando de exemplos jovens na linha política de que eu gosto mais. Mas também há valores à direita, claro. Pessoalmente, estou na expectativa de que, com ou sem bandas de intervenção, com ou sem manifestações, estas pessoas estejam mais qualificadas para fazer de Portugal um país melhor. A minha esperança está nessa geração, que me parece menos comprometida com o "status quo". Pelo menos, assim espero. Ainda existe falta de coragem em muitos assuntos, mas hoje assisto a coisas que não eram possíveis numa jovem democracia ou numa democracia que se estava a encontrar. Estou optimista, mas não sou ingénuo, sei que a política é feita de compromissos.

cotacao Nós, portugueses, pensamos que merecemos o melhor, mesmo que não façamos nada para isso.

E nós, portugueses, enquanto cidadãos, exercemos bem a nossa cidadania. Amadurecemos?

Aparentemente, sim, mas temos de sair do activismo de rede social para um território mais físico, que não passa apenas por ir a manifestações, mas também por ter um outro sentido de vivência e uma outra gestão de expectativas. Todos nós, portugueses, pensamos que merecemos o melhor, mesmo que não façamos nada para isso. Muitas pessoas de bandas que não conseguiram ir mais além pensam que, provavelmente, poderiam estar num sítio melhor se não lhes tivesse acontecido uma coisa qualquer – atribuindo culpas externas ao Governo, a teorias da conspiração, a compadrios – quando, de vez em quando, lhes falta um bocadinho de autocrítica. De vez em quando, o problema somos mesmo nós. Eu acho que o português tem de saber esperar.

 

Saber esperar ou fazer?

Fazer, temos de fazer sempre, mas temos de saber esperar pelos resultados. Só agora, passados 20 anos, é que estou em condições para, por exemplo, lançar uma pequena editora – abrimos a Alma Mater Records para lançar o vinil dos 20 anos de "Irreligious" e para lançar, pela primeira vez, o "Opium", o nosso "one­-hit wonder". Não há mal nenhum em sonhar alto, mas, nesta fase, há que refrear a ambição de querer ter sempre tudo, o último telefone, o último carro, isso torna-nos a vida um bocadinho mais triste, temos de saber aquilo que queremos fazer, aquilo que nos faz sentir bem, e daí eu aplaudir as pessoas que saem de empregos que não gostam para avançarem com os seus pequenos negócios em casa – umas fazem bolos, outras dão aulas de yoga em casa ou massagens. Claro, é fácil falar. Ou escrever.

 

E o Fernando escreve, e muito, nos seus blogues pessoais.

Sim. Comecei um dos blogues com um texto crítico sobre Fernando Tordo – quando o cantor tomou a decisão de ir para o Brasil – "a vida aqui no meu país, ao fim de 50 anos de profissão, tornou­-se impossível", escrevia no seu blogue – e nunca pensei que iria ter o impacto que teve. Os músicos, até os músicos com provas dadas, têm de ser sempre lutadores. O Fernando Tordo é livre de tomar as suas decisões, mas achei que ele não tinha sido muito simpático para um país que, na minha opinião, até o tratou bastante bem. Uma das pessoas que eu admiro imenso, o Herman José, arregaçou as mangas e foi para a estrada, com o espectáculo "One Herman Show!", apesar de já não ter um Bentley. Nunca se pode parar. Eu já gastei muito mais dinheiro com os Moonspell do que alguma vez ganhei. É uma actividade que exige investimento. Se nos oferecem um cachê para irmos tocar à Alemanha, é preciso assinalar que desse cachê saem todas as nossas despesas, os voos, e nós somos oito ou nove ou dez...

 

Ser reconhecido internacionalmente pode sair caro…

Sai muito mais caro do que ir tocar ao Porto e vir dormir a casa. Por isso é que os cachês das bandas em Portugal eram tão inflacionados, agora são menos. Sempre achei que uma banda que vendia dois ou três mil discos e metia 200 ou 300 pessoas num concerto não podia ter um cachê de determinada ordem. Lá está, a música em Portugal era completamente despesista. E, por isso, a dada altura, nós começámos a evitar almoços-reuniões naqueles restaurantes óptimos e pedíamos a toda a gente para ir ao nosso estúdio. Quando estávamos na Universal, eu morava no centro de Lisboa e ia para a editora a pé, até Benfica, e as pessoas ficavam surpreendidas – vieste a pé?! Toda a gente ia de táxi… Agora, claro, já não é assim. Os músicos têm razão de queixa, sim, mas de vez em quando queixamo-nos nos lugares errados, devíamos reivindicar mais por uma justiça fiscal ou manifestarmo­-nos contra o imposto do artista estrangeiro. Seria mais valioso debater porque é que os Moonspell ou os Deolinda vão a um país estrangeiro e têm uma elevada retenção na fonte nesse país quando pagam impostos em Portugal. A "nacionalidade" europeia é uma coisa que não existe, e isso preocupa­-me muito mais porque é lesivo para quem se quer internacionalizar. É lesivo para quem está a contar com o mercado livre e vê que tal não existe e que, pelo contrário, não há países que desconfiem mais uns dos outros do que os países europeus entre si.

 

Não acredita nesta Europa?

A Europa foi um projecto pensado de uma forma extremamente humanista por Immanuel Kant, por exemplo. Acreditava numa federação europeia que estimulasse exactamente o contrário do que se está a estimular agora. Acho que os países da Europa nunca se odiaram tanto, nunca desconfiaram tanto dos seus vizinhos, e não estamos a falar do factor desequilibrador dos refugiados. Devíamos equacionar sair da Europa, sim, não podemos ter medo de colocar a questão ou, então, devíamos tentar recuar um bocadinho, não fazer uma Europa europeia, já se viu que não resulta, com todas as diferenças que existem. Acredito que a União Europeia teve boas intenções, acredito que veio estancar conflitos europeus. Mas agora, pelas indicações actuais, pelas frustrações latentes, é capaz de ser mais um barril de pólvora do que propriamente um agente pacificador. 

cotacao Acho que os países da Europa nunca se odiaram tanto. Não há países que desconfiem mais uns dos outros do que os europeus. 

No meio das vossas correrias pela Europa, e não só, que projecto futuro vos entusiasma mais?

É um trabalho que estamos a fazer sobre o terramoto de Lisboa – trata-se de um álbum-conceito, tem o som Moonspell, mas é cantado em português. Fascina-me tudo que aconteceu naquela altura na Europa e a grande mudança que Portugal teve de fazer por causa de uma catástrofe natural e com um verdadeiro iluminado que era o Marquês de Pombal. Achei fantástico que o Voltaire tivesse feito um poema sobre o terramoto – "Poème Sur Le Désastre de Lisbonne" – e se o Voltaire fez uma obra sobre o desastre de Lisboa, nós também vamos fazer (risos). Lá está, os metaleiros-filósofos voltam a atacar. 



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