Notícia
Eduardo Marçal Grilo: Na Europa, passámos de uma espécie de ovelha negra para uma “new star”
Não é um político, mas já teve uma pasta governativa. Foi ministro da Educação no Governo de António Guterres, entre 1995 e 1999. No livro “Quem só espera nunca alcança”, que escreveu com a jornalista Dulce Neto, conta episódios da sua vida, faz reflexões e dá lições. Está reformado da Fundação Gulbenkian, onde trabalhou 30 anos, mas continua a pensar o país.
O título do seu livro é "Quem só espera nunca alcança". Mas saber esperar não é uma virtude?
Eu não digo que esperar não é uma virtude. O que digo é que não basta esperar. A ideia que quero transmitir é que é preciso esforço da parte da pessoa. É preciso trabalho, empenhamento, dedicação. Por vezes, para se atingirem alguns objectivos até é preciso algum sacrifício.
Mas acha que isso se perdeu com o tempo? No Estado Novo, havia essa ideologia de que era preciso trabalhar duro para ganhar o pão.
Isto não é uma crítica muito severa a nós portugueses ou à sociedade moderna. O que quero dizer é que muitas vezes quando alguém atinge um objectivo ou é bem-sucedido temos a tendência para dizer: "Teve sorte."
Ou que teve uma boa "cunha".
Sim, ou o favor. Eu penso que essa é uma ideia errada e muito perigosa. As coisas não caem do céu.
É uma mentalidade tipicamente portuguesa, que nos diferencia de outros povos?
Não conheço suficientemente o mundo para dizer isso. Eu atribuo alguma importância às pessoas que percebem as oportunidades que aparecem. Que têm essa capacidade e que gostam até de arriscar um bocadinho. Assumir algum risco compensa.
Mas há pessoas que são avessas ao risco.
Sim, mas devemos saber gerir isso. Os empresários correm riscos. Calculados, obviamente. Ninguém se atira de cabeça para um projecto sem medir bem os prós e os contras. E claro que ninguém avança para um projecto com a certeza absoluta de que vai conseguir atingir o objectivo traçado.
Há sempre o medo de falhar.
Aí posso dizer que é um bocadinho característica dos portugueses. Nós gerimos mal o insucesso. E a gestão do insucesso, o aproveitar os erros que cometemos para tirar lições daquilo que correu mal, é uma forma de aprendizagem, de fazer melhor dali para a frente. Quando eu era miúdo, numa pequena cidade como era Castelo Branco, há mais de sessenta anos, se um empresário ou lojista falia, havia uma espécie de uma censura social, uma discriminação. Muitas vezes as pessoas saíam da cidade. Não aguentavam. A falência é uma coisa que faz parte dos negócios. Há empresas que nascem e morrem. O que é preciso é saber gerir, saber fazer o "follow up" disso. A pessoa tem de ter a capacidade para interpretar, perceber o que é que fez mal. Não era o ramo, não foi a gestão adequada, não foi a forma mais eficaz de realizar o projecto. E depois partir para outro.
Esse é o espírito americano. Essa capacidade de perceber que nem tudo resulta à primeira, que é preciso experimentar.
Exactamente. Eu trabalhei 30 anos numa fundação [a Fundação Calouste Gulbenkian]. E, muitas vezes, as fundações arriscam, por exemplo, quando apostam no financiamento de projectos científicos. Se nós apoiarmos dez projectos e se quatro, cinco ou seis tiverem sucesso, valeu a pena. Arrisca-se. Evidentemente, se nós apostarmos em dez e falharem todos é um grande falhanço. Se só falharem um ou dois, é um enorme sucesso. Mesmo que só 50% atinjam os objectivos é um bom resultado. Mas, muitas vezes, quando se faz uma aposta numa determinada linha, o facto de não se ter atingido o objectivo traçado não significa um falhanço total. Significa que aquele não era o caminho.
Mas aconteceu voltar a investir num grupo científico ou num projecto de uma forma ajustada?
Depende muito de área para área. Se está à procura de uma vacina, por exemplo, há um aspecto muito importante, que é a diferença e a complementaridade que há entre investigação fundamental e investigação aplicada. Não há investigação aplicada sem haver investigação fundamental. Na área das biologias, das biotecnologias e das biomedicinas, a investigação muitas vezes parece que não serve para nada. Parece que é apenas ciência pela ciência. E depois, mais tarde, percebe-se que aquele conhecimento serviu para desenvolver determinado tipo, por exemplo, de produtos farmacêuticos ou de técnicas. O facto de não atingir o medicamento significa que aquele não era o caminho para atingir aquele medicamento. Mas é uma informação útil. Não se perde tudo. Um produto farmacêutico, entre a descoberta em laboratório de uma molécula e a entrada no mercado de um produto baseado naquela molécula pode demorar oito, nove, dez anos. Com investimentos brutais das empresas.
Em 2017, houve coisas que não correram bem ao Governo. Ouvi-o defender que António Costa devia ter remodelado o Executivo. Continua a pensar assim?
Continuo a pensar que uma remodelação seria uma forma de o Governo enfrentar com outra frescura os dois anos que faltam até ao final da legislatura. O executivo tem feito muito bem o que é difícil, mas depois tem enfrentado um conjunto de "casos", alguns criados por si próprio, que tem gerido de forma pouco clara e mesmo muito infeliz, sem que se percebam quais os objectivos das matérias em causa. O Governo ficou muito fragilizado com os vários acontecimentos, desde Junho para cá, em particular com as tragédias dos fogos florestais. A certa altura pareceu um bocadinho desorientado. Tornou-se essencialmente reactivo. Deixou de ter iniciativa própria e passou a andar atrás dos acontecimentos. Atrás dos incêndios, de Tancos, depois pelo meio também se meteu o Infarmed, mais tarde a Raríssimas. Houve aqui vários casos que o tornaram menos credível e confiável. Deixou de ter aquela auréola de que as coisas corriam sempre bem.
Mas também houve coisas que correram bem, até contra muitas expectativas.
Particularmente na área da economia e das finanças públicas. Quando o Governo arrancou, havia uma grande dúvida e alguma desconfiança em relação a esta solução governativa, apoiada pelos partidos da esquerda. A Europa olhou para nós com alguma perplexidade. Mas o que é facto é que António Costa, o Governo e o partido socialista conseguiram ir burilando essa falta de confiança. A Comissão Europeia e os próprios críticos da solução governativa acabaram por reconhecer a estabilidade política, a ponto de Mário Centeno estar agora como presidente do Eurogrupo. Passámos de uma espécie de "ovelha negra" para uma "new star". António Costa tem conseguido isso de uma forma muito habilidosa e muito articulada, com uma grande capacidade política para negociar em vários tabuleiros. Além de ter feito aprovar um orçamento para 2018, tem também a seu lado um ministro das Finanças que nos dá muitas garantias. Mário Centeno é uma pessoa muito determinada, muito conhecedora e com um pulso muito forte. Entrámos agora na recta final da legislatura e todos queremos que o país progrida, temos vontade de que as coisas continuem a correr bem do ponto de vista económico e financeiro. Julgo que um novo fôlego do Governo, em termos de propostas, de ideias, de projectos, daquilo que o Governo quer fazer de novo, devia ser acompanhado de algumas caras novas. Estes próximos dois anos são o grande teste da vida política de António Costa.
Mas do seu ponto de vista que áreas precisavam dessas tais "caras novas"?
O primeiro-ministro conhece melhor o funcionamento do Governo do que qualquer um de nós. E nós, que somos observadores externos, percebemos que no Governo há umas áreas em que temos mais confiança do que outras. Sou capaz de dizer que o senhor ministro das Finanças é alguém em quem eu tenho uma enorme confiança, há outros sectores em que, sinceramente, não diria o mesmo. A convicção que tenho é de que uma remodelação neste início de ano seria importante para que o Governo possa reganhar a confiança das pessoas. Claro que os primeiros-ministros nunca querem remodelar porque acham que é uma demonstração de fraqueza. Eu, pelo contrário, acho que uma remodelação feita em tempo é uma prova de liderança.
O ano terminou com um novo "caso". Os deputados aprovaram as alterações à lei do financiamento dos partidos políticos em véspera do Natal e à porta fechada. Foi só um mau momento da política portuguesa ou é mais do que isso que está em causa?
É um caso de grande infelicidade do qual se podem tirar algumas ilações, designadamente quanto ao modo como os deputados conduzem de forma opaca matérias que deviam ser debatidas e escrutinadas por todos nós. O veto do Presidente da República é uma reprimenda séria ao comportamento da maioria dos partidos que nos representam na Assembleia da República. A argumentação para justificar esse mesmo veto é matéria que o Parlamento tem necessariamente de analisar e interiorizar, tendo em conta que casos como este não se podem repetir. Os partidos políticos são fundamentais em qualquer regime democrático, mas têm de ter um comportamento exemplar sob risco de perderem a credibilidade e, portanto, a própria confiança dos cidadãos.
O professor tem sido muito crítico da classe política em Portugal. Considera que ela não tem muita qualidade.
Penso que este processo de selecção do pessoal político não é dos melhores. Eu contesto muito o sistema eleitoral que temos. Por exemplo, eu voto em Lisboa. O meu voto serve ou para eleger o 15.º deputado do PS, ou o 15.º do PSD, ou o 6.º do CDS, ou o 4.º do PCP, ou o 2.º do BE. Quem são estas pessoas? Eu não sei. O que temos, no fundo, é uma classe política que é gerada exclusivamente pelos partidos. Quem diz quem são os deputados são as cabeças dos partidos políticos, que definem as listas. Isto deveria ser repensado. Uma alteração do sistema eleitoral é algo que eu acho que se impõe.
Continua a haver dificuldade em atrair os melhores para a política?
Houve uma valorização da política imediatamente a seguir ao 25 de Abril. Nessa altura, a política atraiu muito boa gente. Se formos à Assembleia Constituinte, tem um escol magnífico de políticos, de gente da cultura, das universidades, da advocacia, enfim, de variadíssimos sectores e profissões liberais. Agora há um certo carreirismo dentro dos partidos. E isso não é bom.
Voltando ao Governo. Como avalia o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues?
Eu não o conheço muito bem.
Há quem defenda que ele está refém dos sindicatos dos professores.
Se estiver, é mau. Mas não penso que o ministro possa estar refém. Os sindicatos não têm essa força. Eu não gosto muito de falar da educação por razões diversas. Mas abro aqui uma excepção só para dizer isto. Nós temos muito a ideia de que a educação é uma matéria que é discutida entre o ministério e os sindicatos. Não deve ser assim porque a educação não é uma matéria que diga respeito apenas aos professores. Os professores são essenciais nas escolas, mas a educação das crianças e dos adolescentes é da responsabilidade dos pais. Isto tem de ser entendido.
E qual é o papel da escola?
Tem a responsabilidade muito grande de assegurar que os estudantes aprendem várias coisas. Aquilo a que chamo de conhecimentos base – a língua materna, a matemática, a história, a geografia, as ciências experimentais e também o exercício físico, a música, as artes plásticas. Não é transformá-los em pintores e escultores, ou em violinistas ou compositores. É isto fazer parte da cultura. A música, por exemplo, é essencial para as aprendizagens. No fundo, são três pilares. Este dos conhecimentos, depois há outro pilar essencial que tem que ver com as atitudes. É a iniciativa, a liderança, a responsabilidade, a capacidade para pensar por si próprio, para trabalhar em equipa, etc. Depois há um terceiro pilar, que são os valores, que têm muito que ver com a família. O sentido ético, o respeito pelos outros, a tolerância. Basta pensar que uma parte da crise de 2008 teve que ver com o comportamento inaceitável de muitos dos operadores dos mercados. Eu atribuo uma enorme importância a esse pilar. A maneira como se lida com os outros, se respeita a opinião dos outros. Esta parte tem que ver com o anti-semitismo, com o racismo, são problemas do nosso tempo e de enorme delicadeza. Nós percebemos que a escola pode ter também um papel muito importante nisto. Na maneira como dá o exemplo. Os professores têm de ser referências para os alunos nos vários tabuleiros. Pela sua competência profissional, pelo seu conhecimento, mas também pelo seu comportamento, pela maneira como vivem, como falam.
Disse que os sindicatos parecem ter mais relevância do que realmente têm nas negociações. Mas admite que é um lóbi forte dentro do Ministério da Educação?
Um lóbi em que sentido?
De pressão, de reivindicação.
O país conhece mal os professores que tem.
Como assim?
Há excelentes professores por todo o país. Eu hoje já não faço tantas visitas a escolas, mas ainda faço algumas. E encontro sempre pessoas extraordinárias de todas as áreas. Na matemática, nas artes plásticas, na língua portuguesa, na história. Pessoas fantásticas. Nós não temos bem a noção das coisas que se fazem nas escolas. A Fundação Ilídio Pinho dá todos os anos um apoio muito grande a iniciativas nas escolas relacionadas com trabalhos experimentais. Equipamentos, realização de experiências ou de objectos, robôs, aparelhos. Na última a que eu assisti, há uns meses, houve uma apresentação dos trabalhos em Coimbra, no Convento de São Francisco, havia coisas notabilíssimas. Claro que é feito pelos alunos, mas com apoio dos professores.
O país pode não ter muita noção da qualidade da classe docente, mas tem uma noção muito clara da instabilidade que existe na profissão.
Nós temos um problema complicado. Estamos a ter menos alunos. Um dos problemas muito graves que o país e a Europa têm é o da queda demográfica. Em Portugal, então o nível é verdadeiramente assustador. Os professores têm uma relevância grande porque são um baluarte sindical forte. Têm uma capacidade reivindicativa significativa, com duas centrais, a Fenprof e a FNE, que têm alguma importância, que se manifestam e que procuram defender os interesses dos professores. Mas, na minha perspectiva, o debate, o acordo, a plataforma, chame-lhe o que quiser, que nós necessitamos na educação e que eu tanto defendi há vinte anos, é a ideia de uma espécie de pacto educativo, que não envolve apenas o ministério e os sindicatos. Envolve outros parceiros que estão relacionados. Estou a falar dos pais, das autarquias, das freguesias, das associações científicas, das associações de professores. Tudo isto tem uma importância grande para a estabilização do processo educativo.
Mas quando fala num pacto…
É um conjunto de princípios que devemos definir à volta dos quais se tem de estabelecer uma negociação. Não é um consenso. Eu não gosto da palavra consenso. É uma negociação em que se diz: eu faço isto e tu fazes aquilo. Para que não andemos sempre para trás e para diante. E há matérias que são relevantes.
Quais?
Julgo que valia a pena ter um acordo que envolvesse a estabilização do sistema de avaliação dos estudantes e estabelecesse um regime de avaliação dos professores. Os docentes têm alguma avaliação, mas esse regime de avaliação deveria ser repensado e negociado. Também valia a pena ter um entendimento em torno daquilo que deve ser a autonomia da escola, na área do currículo, dos horários, na contratação dos professores, em várias destas matérias.
As escolas deviam ter mais autonomia?
Devem ter a autonomia adequada. Raramente me ouvirá falar em sistema educativo. Eu falo em escolas. Cada escola é diferente. Quando falamos em sistema educativo temos sempre a ideia de que é um sistema muito homogéneo. Mas as escolas são muito diferentes. Quando pega numa pequena escola numa zona rural, com vinte alunos, e a compara com uma escola numa grande cidade, que tem 300 alunos, são coisas completamente diferentes. Não apenas pela dimensão, mas também pelo meio socioeconómico onde as crianças vivem, pelos problemas que as famílias têm naquela zona. Os vários departamentos do Ministério da Educação devem ser essencialmente instrumentos de apoio ao funcionamento das escolas e não serem os organismos que dizem o que é que as escolas devem fazer. A ideia de um sistema educativo é a de uma coisa muito centralizada, muito conduzida de cima para baixo. Nestes anos todos de contacto com escolas tenho percebido que as escolas cujas direcções têm mais capacidade para fazer diferente são as que funcionam melhor. Mesmo com a autonomia que existe já é possível fazer muitas coisas. Porque também há muitos professores que estão acomodados à espera que o ministério diga o que é que devem fazer. Isto é uma crítica a alguns. Só lhes falta perguntar em que sítio é que devem pôr o selo da carta que vão mandar.
Mas quando temos casos de pessoas que estão longe da sua família para poderem dar aulas, não é normal que as pessoas estejam desmotivadas?
Depende. Já vi muita gente fora da área familiar e motivadíssimas para a sua profissão. Claro que se me disser: uma escola que tem um corpo docente estável tem muito mais probabilidades de funcionar bem do que uma escola que todos os anos muda 80% dos seus professores. É uma evidência. Há algum prejuízo para a escola com isto. O esforço que deve ser feito é no sentido de fazer com que a mobilidade não prejudique o funcionamento das escolas. Há vinte anos, criaram-se os Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP). Eram zonas do país muito desfavorecidas do ponto de vista socioeconómico e foram criados alguns instrumentos para apoio extra aos estudantes. Uma das coisas que se fez foi retirar da mobilidade os professores que estavam envolvidos nessas iniciativas. Isto deu uma grande estabilidade ao projecto, que era muito inovador. A estabilidade é um bem em si mesmo para o funcionamento da escola e, neste caso, com resultados directos para os estudantes. Mas não há uma varinha de condão para resolver isto. Há necessidade de negociar com os professores, com os interesses que os professores têm. Falou no lóbi dos sindicatos. O mais preocupante para mim é quando os interesses dos sindicatos não coincidem com os dos professores.
Isso acontece?
Quando eu fui ministro aconteceu, por exemplo, estar a haver uma negociação sobre aspectos da carreira, como mobilidade, salários ou horários, o que fosse. Eu visitava as escolas e percebia que nenhum professor estava preocupado com aquilo. Era uma preocupação do sindicato, que tinha aquilo como uma bandeira, um problema, uma questão a resolver. Quando eu falava com os professores, aquilo não fazia parte das suas preocupações.
Mas como é que explica isso? As pessoas que estão nos sindicatos estão há demasiado tempo fora das escolas?
Não, os sindicatos têm uma lógica própria de funcionamento. É preciso não esquecer que os sindicatos estão muito partidarizados. Não estou a dizer que sejam todos uma espécie de correias de transmissão dos partidos, mas há uma relação muito próxima. E percebemos isso pela maneira como alguns se comportam, quer quando são muito activos, quer quando são menos activos.
Como era a sua relação com os sindicatos quando foi ministro da Educação?
A Fenprof e a FNE eram dirigidas nessa altura por duas pessoas que eu apreciava e com quem tive uma boa relação – Paulo Sucena e Manuela Teixeira. Uma vez chamei ao dr. Paulo Sucena uma espécie de "príncipe do sindicalismo português". Era um homem muito culto, muito agradável, com um trato muito civilizado. No início das negociações eu fazia sempre um encontro com eles. Convidava-os para tomar café ou o pequeno-almoço e, descontraidamente, procurava sempre dizer: vamos iniciar um processo de negociação e o que eu vos quero garantir é que estamos a negociar de boa-fé. Nas negociações tem de haver duas características – tem de haver boa-fé e bom senso de ambas as partes. Não se pode prometer o que não se pode dar. E não se pode pedir aquilo que se sabe que não podemos receber. As pessoas negoceiam no sentido de encontrar não a posição que eu imponho a ti ou a que tu me impões a mim, mas uma terceira, que não era nem a tua nem a minha. No fundo, é esta a lógica.
Costuma dizer que não é um político. Mas já teve um cargo político. O que é que foi mais difícil para si enquanto ministro da Educação?
Vamos começar pelas coisas boas. Uma coisa que correu muito bem, e que foi muito acarinhada por todo o Governo, foi o lançamento do pré-escolar. Essa foi uma grande bandeira que nós tivemos durante aqueles quatro anos. O que depois correu bem, apesar de muitos avanços e recuos, foi a lei de financiamento do ensino superior. Ou seja, a recriação das propinas.
Isso provocou muita contestação na altura.
Imensa.
Como é que é ser contestado na rua?
Às vezes é um bocadinho desagradável do ponto de vista pessoal. Sobretudo quando as pessoas à nossa volta, a família, ficam muito tensas. Isso afecta um bocadinho. Não mata, mas mói. Hoje olho para isto com algum distanciamento, mas obviamente não é agradável, por exemplo, vermos a nossa esfinge a ser queimada ou deitada fora. Não é uma coisa simpática. Já passou. Está tudo ultrapassado. Tenho uma estátua na Faculdade de Letras do Porto, é um grilo gigante, que era exibido nas manifestações de estudantes. Hoje, a vinte anos de distância, acho graça. Houve uma cena engraçadíssima que não resisto a contar-lhe. Alguns anos depois [de sair do Governo], eu estava na Fundação Gulbenkian e fui ao Huambo, em Angola, com a dr.ª Isabel Mota, que é agora presidente da Fundação. Quando saímos do avião, estavam muitos portugueses à nossa espera. Entre eles um rapaz novo que foi ter comigo. Eu achei que ele estava um bocadinho embaraçado. Olhou para mim e disse: senhor doutor, eu fui daqueles que na manifestação tal fiz não sei o quê. Como se eu o estivesse a reconhecer. Acabámos amigos, como é evidente.
Porque é que os portugueses lidam tão mal com a Matemática?
A Matemática exige um enorme rigor. As coisas não são assim-assim. As coisas são. Nessa matéria, foge-nos um bocadinho o pé para sermos assim-assim. Isto é, lemos uma coisa e transmitimos outra. Não transmitimos exactamente aquilo que vimos. Eu acho que isto não é bom para a aprendizagem da Matemática. E depois, nalgumas famílias, o pai diz: não te importes que eu também não dei com a Matemática. Há muita gente que reprova no 7.º, 8.º e 9.º a Matemática e depois nunca mais quer saber da disciplina. A Matemática é muito importante como matéria estruturante do pensamento. Há uma boa escola de Matemática no país. Se olharmos para a Sociedade Portuguesa de Matemática, tem grandes matemáticos. O problema é se esta capacidade científica que existe é devidamente transmitida. A Matemática precisa de ser ensinada sem arrogância. E não ser considerada uma matéria que é só para os muito inteligentes. A Matemática não é só para os muito inteligentes. Tem de ser para todos. E a maneira como se ensina é muito importante. O grande objectivo é que o miúdo aprenda. Se o miúdo não aprende, não serve de nada.
Termino perguntando-lhe se já percebeu porque é que o general Ramalho Eanes, seu amigo de infância, lhe chama "pinguim" ?
(Risos) Não. Eu e o meu irmão Luís chamamos-lhe Tó Ramalho. Ele foi colega de 7.º ano do meu irmão, em Castelo Branco. Vivia muito próximo de nós. Temos uma diferença de sete anos. Eu era muito miúdo ao pé deles, mas dei-me sempre muito com o meu irmão e andava sempre com eles. Não sei porquê, o António começou a chamar-me "pinguim". Quer ver a caixa que ele me ofereceu? [Levanta-se e vai buscá-la.] Já viu? Não é uma beleza? Penso que é uma caixa de charutos [com um pinguim na tampa]. No outro dia, quando lhe ofereci o livro, fiz uma dedicatória, assinei e por baixo escrevi: "Pinguim." (risos)