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Daniel Markovits: “A desigualdade meritocrática abre a porta aos populismos”

A meritocracia não só não promove, como bloqueia a igualdade de oportunidades – e essa desigualdade meritocrática começa logo na desigualdade com as despesas de educação, diz Daniel Markovits, professor de Direito na Faculdade de Direito de Yale e autor do livro “The Meritocracy Trap”
Lúcia Crespo e Mariline Alves - Fotografia 26 de Novembro de 2021 às 11:00

Daniel Markovits é professor de Direito na Faculdade de Direito de Yale e diretor-fundador do Centro de Estudos de Direito Privado na mesma instituição. Há dois anos, escreveu um livro que ainda hoje gera acesas discussões. "The Meritocracy Trap" fala sobre aquilo que designa por desigualdade meritocrática, uma nova forma de hierarquia económica que perpetua o ciclo fechado de privilégio. Escolas de elite alimentam empregos de elite e empregos de elite alimentam escolas de elite. Os novos super-ricos são hiperespecializados, trabalham no setor financeiro, são consultores de gestão ou advogados em escritórios de topo - e muitos nem sequer gostam do que fazem. Mas só assim se mantêm ricos e só assim podem pagar as escolas que formam os seus filhos para serem ricos. Daniel Markovits foi um dos oradores da Conversa sobre o Futuro da Igualdade, que decorreu na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.

A meritocracia já não é verdadeiramente meritocrática?

A meritocracia continua a ser muito meritocrática, mas já não contribui para a igualdade de oportunidades – a meritocracia não só não promove, como bloqueia a igualdade de oportunidades. Essa desigualdade meritocrática começa logo na desigualdade com as despesas de educação. As famílias mais ricas gastam somas muito mais avultadas na educação dos filhos – nos Estados Unidos, a elite abastada investe cerca de 75 mil dólares por ano em escolas privadas de topo, enquanto as famílias de classe média gastam entre 12 e 15 mil dólares na escola pública. Há uma disparidade crescente, que está a acentuar-se de forma mais acelerada entre as famílias ricas e as de classe média, mais até do que entre as famílias de classe média e as mais pobres. Todas estas diferenças têm depois um efeito "bola de neve". Quando aplicamos a meritocracia, apenas os mais ricos têm possibilidades de progredir, as outras pessoas não têm hipótese alguma.

 

Devemos deixar de usar a meritocracia? Como é que o talento pode ser recompensado?

Não sei se devemos deixar de usar completamente a meritocracia, mas precisamos de um sistema educativo muito mais igualitário. A disparidade crescente nas despesas de educação traduz-se num fosso cada vez maior em termos de competências adquiridas: existe uma diferença crescente entre estudantes mais ricos e mais pobres nos Estados Unidos – aliás, essa diferença excede hoje o fosso entre estudantes brancos e negros em 1954, ano em que o Supremo Tribunal dos EUA confirmou a inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas. Ou seja: a desigualdade económica nos Estados Unidos produz hoje uma maior desigualdade em termos de educação do que o "apartheid" americano em meados do século XX. Assim, na prática, as escolas frequentadas pelos ricos deveriam receber muito mais estudantes de outras classes sociais – até porque, nos Estados Unidos, as escolas privadas são taxadas como instituições de caridade.

 

Seria uma espécie de correção?

De uma grande correção. Mas isso não significa livrarmo-nos necessariamente da meritocracia, trata-se sobretudo de transformá-la. Não basta atuar nas margens. É também necessário mexer no mercado de trabalho e na forma como as pessoas são remuneradas. O "gap" entre os mais ricos e o resto da população está a aumentar brutalmente. Há uma polarização salarial gigante. Nos anos 1960, nos EUA, um médico-cardiologista ganhava quatro vezes mais do que um profissional de enfermagem e o sócio de um escritório de advogados recebia um salário cinco vezes superior ao de uma secretária pessoal. Hoje em dia, um cardiologista ganha oito vezes mais do que um técnico de enfermagem, e o sócio de uma firma de elite recebe cerca de 40 vezes mais do que uma secretária pessoal – todos estes "gaps" têm de ser atenuados.

A classe média está a ser destruída de muitas maneiras. A mobilidade social não está num movimento ascendente, bem pelo contrário.

A classe média está em risco de quase desaparecer?

A classe média está a ser destruída de muitas maneiras. Quase não registou aumentos salariais nos últimos 30 ou 40 anos, e foi perdendo "status" e influência. A mobilidade social não está num movimento ascendente, pelo contrário. É preciso agir em várias frentes, desde logo no mercado de trabalho. Precisamos de modelos de recrutamento mais abertos a "outsiders" – as empresas não podem contratar apenas trabalhadores que frequentaram escolas de elite. Os locais de trabalho são cada vez menos diversificados em termos de "background" académico: pessoas com diplomas universitários tendem a trabalhar com quem tem o mesmo percurso escolar. E quem não andou na universidade trabalha com quem também não frequentou o ensino universitário. Pessoas com diferentes percursos académicos já não trabalham juntas! Há uma segregação social crescente – e na base está a educação.

 

A desigualdade meritocrática está a alastrar para além das fronteiras norte-americanas? Sabemos que existem realidades distintas em diferentes países.

Tudo aponta nesse sentido, para a disseminação da desigualdade meritocrática. Basta pensar em determinados setores-chave da economia, em especial no setor financeiro e no mundo da gestão: também na Europa os rendimentos dos financeiros de topo têm aumentado brutalmente nos últimos 20 anos. O crescimento do salário dos gestores de topo europeus tem evoluído ao mesmo ritmo do dos executivos norte-americanos. E o tipo de trabalho que realizam é cada vez mais parecido. Empresas como a McKinsey têm hoje grandes escritórios em cidades europeias e os consultores de gestão são cada vez mais proeminentes no mercado de trabalho. Nestas áreas, o modelo norte-americano está de facto a chegar à Europa, e creio que o mesmo irá acontecer no mundo da advocacia. À medida que estes setores crescem na economia, a Europa assemelha-se cada vez mais aos Estados Unidos. Quão parecida vai ser? Não sabemos.

Diz que o sistema nem sequer é bom para a elite.

Na verdade, a sociedade em geral não está realmente preocupada com a elite, não quer saber se o modelo atual é bom ou mau para os mais ricos. Ainda assim, nem para a elite o sistema é saudável. Quando alguém é detentor de propriedades ou de fábricas, à partida, essa riqueza proporciona-lhe liberdade, uma vez que pode contratar outras pessoas para trabalhar a terra ou na fábrica. Mas se a única forma de ganhar muito dinheiro é através do seu próprio trabalho, então, para manter os rendimentos elevados, tem de trabalhar muito, tem de estar sempre a trabalhar. É hoje normal trabalhar-se 80 horas por semana num escritório de advogados de elite. O mesmo acontece num banco de investimento: 80 horas ou mesmo 100. Sim, a elite está a ganhar avultadas somas de dinheiro, mas está também a trabalhar de forma ininterrupta. E, para permanecer rica, tem de trabalhar no setor financeiro, em gestão ou em advocacia. Muitas destas pessoas nem sequer gostam daquilo que fazem. Trabalham a vida inteira em trabalhos de que não gostam, só para ficarem ricas, e essa não é uma boa vida.

 

Aquilo que designa por desigualdade meritocrática está a fomentar populismos?

Numa democracia, o poder tem de estar no meio. Uma sociedade com uma elite muito pequena, e com a restante população a viver de forma precária, terá sempre dificuldade em criar políticas inclusivas e estáveis. Torna-se altamente instável, oscilando entre o controlo da elite e as rebeliões de massas. Sabemos que, quando a elite governa, não o faz para o bem comum, governa para si própria, e os movimentos populistas, nacionalistas e racistas tendem a usar o ressentimento das pessoas para atiçar políticas perigosas. Numa situação assim, a democracia não é saudável. O bom funcionamento de uma democracia depende sempre de uma classe média com um forte sentido de solidariedade. A desigualdade meritocrática abre a porta aos populismos.

 

Mas a elite esteve sempre aos comandos.

Não conheço bem a realidade em Portugal. Nos Estados Unidos, entre a Segunda Guerra Mundial e 1995, a elite controlava muito menos a política, quer a nível nacional, quer local. Nos anos 1960, o cientista político Robert Dahl (1915-2014) fez um estudo sobre a tomada de decisões em New Haven, em Connecticut – teorizou sobre o poder e o comportamento das elites em "Who Governs? Democracy and Power in an American City" –, e concluiu que as pessoas mais ricas não tinham então mais influência em termos políticos do que as pessoas de classe média ou baixa. Hoje não é assim. As políticas espelham as preferências dos mais ricos.


O dinheiro tem hoje ainda mais poder?

O dinheiro tem mais poder, sobretudo nos Estados Unidos, uma vez que está demasiado imiscuído nas eleições, e também porque hoje em dia os profissionais superespecializados têm uma rede de contactos altamente privilegiada, que é inacessível à maioria das pessoas. Através dessa poderosa "network", conseguem influenciar governos e políticas públicas; trabalham em empresas e depois trabalham também para as entidades reguladoras dessas empresas; trabalham como advogados e têm amigos banqueiros. Sim, é uma espécie de corrupção. Esta rede de conhecimentos tem uma enorme influência no terreno político – há 30 ou 40 anos essa influência não seria tão grande, havia muito mais "outsiders" no sistema. E, quando as instituições são capturadas pela elite, as pessoas perdem a confiança nessas instituições e na sua autoridade, abrindo a porta aos populistas. De certa forma, o populismo comporta em si mesmo a ideia de que as instituições são o inimigo.

 

A democracia está atualmente em maior risco?

Não sei se a democracia está hoje em maior risco do que esteve no passado, é difícil dizer. Existe nos Estados Unidos um movimento cada vez mais hostil à democracia. E, quando um movimento político poderoso se posiciona abertamente contra a democracia, a democracia fica realmente em perigo. Por outro lado, os Estados Unidos acumulam décadas e séculos de supressão da liberdade: têm um passado de mão de obra escrava e, mesmo depois da guerra civil, os negros foram formal e informalmente excluídos da participação democrática; as mulheres foram também postas de lado e grupos de emigrantes foram sendo marginalizados de muitas formas. De certa maneira, o que hoje vemos é algo novo e terrível, mas por outro lado é também consistente com a História social e política dos Estados Unidos. Não significa que está tudo bem, claro. Ou seja, não sei se a democracia está hoje em maior risco, não devemos cometer o erro de pensar que o presente é especialmente difícil – foi sempre difícil e é também difícil agora.

 

A História repete-se, culpam-se os emigrantes, culpa-se o "outro".

E essa é uma velha história, já aconteceu antes e vai acontecer de novo. Não significa que não nos devamos preocupar. Temos de escrutinar constantemente e trabalhar para construir uma sociedade mais inclusiva – acredito que seja possível.

A pressão sobre as mulheres está a aumentar, sobretudo entre a elite.

Costuma também usar a expressão "maternidade meritocrática". A chamada desigualdade meritocrática atinge homens e mulheres de maneira diferente?

Penso que sim. Nos Estados Unidos, metade dos estudantes universitários são mulheres. Nos grandes escritórios de advogados, 50% dos trabalhadores mais novos são também mulheres, mas apenas um em cada cinco sócios é do sexo feminino. Muitas mulheres entre os 25 e os 45 anos deixam o seu emprego para cuidar dos filhos. Educar crianças para o mundo competitivo da meritocracia requer um esforço enorme por parte dos pais, há uma pressão tremenda para um dos elementos do casal se focar na educação dos filhos. Num mundo patriarcal, quem exerce este papel é geralmente a mãe, que acaba por sair do mercado de trabalho. Esta situação gera uma enorme desigualdade de género, provocando uma tensão constante. Creio que a pressão sobre as mulheres está a aumentar, não a diminuir, sobretudo entre a elite.

 

Falamos novamente sobre acesso à educação, também fora da escola. Refere que as despesas extraescolares estão a atingir níveis recorde.

Hoje em dia, os pais contratam explicadores, tutores, professores de música particulares... A maior parte das crianças ricas nos Estados Unidos tem um exército de pessoas a formá-las além da escola – e são esses jovens que, ao crescer, vão dominar as fileiras dos "trabalhadores superordenados".

 

Como contrariar a perversidade do sistema?

É também difícil, para uma família em particular, decidir que não vai compactuar com o sistema, se o fizer pode comprometer o futuro dos filhos. Sente que tem de alinhar – a armadilha existe de facto. E com isso vem o sexismo e o sistema patriarcal – são as mulheres que carregam o fardo. São necessárias mudanças estruturais. Se queremos sair disto, temos de o fazer em conjunto.

Não sei se tem filhos. Educá-los dentro deste modelo é um desafio, também para si?

Tenho filhos, mas não costumo falar deles. Genericamente, tudo depende do lugar que ocupamos na sociedade. Se não fizermos parte da elite, devemos manter sempre presente a ideia de que não temos culpa de que os filhos das famílias ricas tenham mais oportunidades do que os nossos – há uma exclusão estrutural e não nos devemos deixar levar por uma certa psicologia que faz parecer que é uma falha individual. Não temos culpa, mas a culpa também não é dos emigrantes… Caso façamos parte da elite, devemos tentar viver de uma forma o mais equilibrada possível, ajudando os nossos filhos a lidarem com o stress profissional que necessariamente vão enfrentar no futuro. Mas devemos também transmitir-lhes a mensagem de que aquilo que a sociedade valoriza não é necessariamente o que mais valor tem, que a competição académica pode ser corrosiva, que não devem medir o seu valor pela universidade que frequentaram, que o sistema é injusto, que as suas vantagens nem sempre resultam do talento.

 

Às vezes também resultam do talento, não o podemos negar.

As pessoas podem ser talentosas, mas não é o talento que dita o seu sucesso. O talento é apenas parte da explicação, o resto resulta do privilégio. Há muitas pessoas que se esforçam imenso e são realmente boas naquilo que fazem, mas não são recompensadas da mesma forma.

 

Como foi despertando para esta temática?

Queria perceber o fenómeno por trás, o mecanismo que faz com que algumas crianças se tornem adultos "bem-sucedidos" e outras não. Eu não tive uma infância difícil, os meus pais trabalhavam, mas andei numa escola estatal, que não era especialmente famosa. Os meus colegas de então eram tão talentosos como os meus colegas de Yale, mas não se tornaram adultos ricos… Devo salientar que "The Meritocracy Trap" não é uma obra-testemunha das minhas experiências, nada de mim enquanto pessoa torna o livro mais ou menos persuasivo, é um livro com factos e argumentos.

 

Um livro que suscitou acesas reações à direita e também à esquerda.

A direita não está satisfeita, pois o livro ataca a desigualdade, os privilégios e o "status". Por outro lado, algumas pessoas à esquerda também não estão contentes: eu não faço um julgamento pessoal da elite, e há uma ala à esquerda que tende a pessoalizar todas estas questões. Diz que a elite está pessoalmente corrompida, que os mais ricos enganam, cometem fraudes, exploram as pessoas. Não digo que alguma elite não o faça. Mas o problema é estrutural, não está na moralidade pessoal. O livro está sobretudo focado nas estruturas sociais e económicas, e não no facto de as pessoas, individualmente, serem mais ou menos talentosas, mais ou menos corruptas.


Há uma desigualdade sistémica e é difícil contrariar o sistema – também para as empresas. Quais são as possíveis soluções?

Há instituições poderosas que assentam o seu poder e a sua riqueza precisamente na desigualdade, alimentam-se dessa desigualdade. Não acredito por isso que possam ser parte da solução – são uma grande parte do problema. Mas existem empresas que não são assim, ou, pelo menos, não têm de o ser. Falo do setor industrial, mas também do setor de prestação de serviços. É verdade que muitas das organizações estão ainda do lado do problema, uma vez que são lideradas por gestores com uma visão de curto prazo. Ou seja, estas empresas foram também "financializadas". Mas poderiam "desfinancializar-se" e, ainda assim, manter a essência daquilo que são.

 

Defende um maior envolvimento do Estado na economia?

Existem muitas formas de o Estado contribuir para uma maior democratização no mundo empresarial. Por exemplo, nos Estados Unidos, o acesso à internet resulta em grande parte do investimento público em infraestruturas. O mesmo tem acontecido relativamente às vacinas contra a covid-19. Sem o apoio dos diversos estados norte-americanos, estas vacinas não teriam sido desenvolvidas no país. Há muitas formas de o Estado estar envolvido na vida das empresas, sem ter de adotar o modelo de monopólio nacional da indústria do século XX.

 

O desenvolvimento tecnológico tem reforçado a desigualdade no acesso ao conhecimento?

Tem sido assim, mas não tem de continuar a ser assim. Pensemos na medicina, por exemplo. Atualmente, existe tecnologia de ponta que facilita transplantes ou implantes cardíacos, mas essa tecnologia só pode ser aplicada por cirurgiões de elite, que são altamente recompensados pelo seu trabalho. Ou seja, a inovação está diretamente associada ao conhecimento das pessoas mais ricas da medicina. Mas há muitas coisas que continuamos a não saber e que poderíamos saber através de tecnologias mais desenvolvidas. Por exemplo, eu costumo correr quase todos os dias e nunca sei se devo correr pouco tempo ou muito tempo, sete dias por semana ou menos, de forma intensiva ou moderada. O que é melhor para a minha saúde, em particular? Então, porque não apostar em investigação aprofundada que nos permita ter informações mais detalhadas e, ao mesmo tempo, formar trabalhadores intermédios, como técnicos de enfermagem, nutricionistas e psicólogos? Estes profissionais podem ajudar-nos a manter uma vida saudável e até a prevenir cirurgias complexas realizadas por médicos hiperespecializados... A inovação também tem estado exclusivamente focada na elite. Precisamos de tecnologia que devolva o poder à classe média.

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