Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Notícia

Cláudia Dias: Sozinhos, somos mais frágeis

A performer e coreógrafa Cláudia Dias vai na segunda fase, ou melhor, no segundo ano – ou num segundo longo dia – do projecto Sete Anos Sete Peças. O espectáculo “Terça-feira: Tudo o que é sólido dissolve-se no ar” está no Teatro Maria Matos, até dia 2 de Abril.

Miguel Baltazar
31 de Março de 2017 às 14:00
  • ...
De vez em quando, Cláudia Dias acrescenta a uma palavra a expressão "no bom sentido". Algumas palavras parecem precisar desse acrescento, de se reconfirmarem boas: por exemplo, "ambição" num tempo em que é difícil fazer planos a longo prazo; "conflito" num tempo que prega consensos, ou "futuro", que devia ser óbvio mas não é para tanta gente. A performer e coreógrafa Cláudia Dias vai na segunda fase, ou melhor, no segundo ano - ou num segundo longo dia - do projecto Sete Anos Sete Peças. Cada ano, Cláudia Dias pretende colaborar com um artista diferente e fazer uma nova produção. Para "Terça-feira: Tudo o que é sólido dissolve-se no ar" - no Teatro Maria Matos, até dia 2 de Abril -, trabalhou com o italiano Luca Bellezze. É um espectáculo sobre fios, linhas: as que juntam e as que separam. E é um exercício de memória para tentar perceber como chegámos até aqui, com uma guerra na Síria que envergonha a Europa, e uma das piores crises de refugiados da história recente.


1. Comecei a delinear este projecto em 2011, em plena crise económica, social e política, quando se sentia muito a ausência de futuro. Isso era muito concreto na área da cultura. As pessoas estavam a trabalhar com um horizonte temporal muito curto à sua frente. Se tivessem projectos de um ano já se consideravam felizes e privilegiadas por isso. Quis contrariar essa lógica e trabalhar com uma ideia de tempo. Este projecto [de fazer sete peças em sete anos] é um objecto artístico, mas partiu sobretudo de um gesto político de reclamar futuro, de dizer que eu, não obstante ser uma cidadã portuguesa, tenho tanto direito a construir futuro como uma cidadã alemã ou uma cidadã francesa.

Todas as pessoas me disseram: és doida, ninguém em Portugal, com a situação que nós estamos a viver e com o subfinanciamento das estruturas [artísticas], vai aceitar produzir um artista a sete anos. Mas eu, ainda assim, fui falar com o festival Alkantara e curiosamente eles acharam que o mais interessante no projecto era precisamente a ideia de compromisso a longo prazo. E depois, quando começámos a procurar outros parceiros, o que mais os atraiu também foi a ideia de continuidade.

2. É um projecto de sete anos mas, ao fim e ao cabo, vai ser uma década, porque as peças continuam a circular durante mais algum tempo. Portanto, tenho uma década à minha frente. A existência de uma década à minha frente tranquiliza-me. Porque eu também sou uma trabalhadora como os outros. Sou uma trabalhadora das artes do espectáculo. E, obviamente, também a minha subsistência está aqui em causa, e é evidente que, quando temos essa questão um pouco resolvida, isso dá uma calma e uma tranquilidade que permite estar no trabalho de outra forma.

Por outro lado, esse horizonte temporal dá ao projecto uma grande ambição - ambição, no bom sentido. Estamos a trabalhar na área da criação - e tenho a oportunidade de fazer uma investigação profunda no meu próprio trabalho - mas também na área pedagógica, numa colaboração ao longo destes anos com escolas em Almada, e ainda estamos a fazer um documentário que se chama "Todos os Dias" e que vai ter realização do Bruno Canas. É muito bom poder fazer um trabalho mais profundo em todas estas áreas.

3. Não tenho uma ideia romântica sobre o encontro. Estas sete peças [ao longo de sete anos] partem de um encontro mas não são versões sobre a ideia de encontro. Eu simplesmente encontro-me com outros artistas para criarmos algo que não sabemos ainda o que é. Mas não tenho uma ideia romântica de encontro e, portanto, nesta minha ideia de encontro faz parte o conflito. Não estou à procura de consensos imobilistas. Isso também estava muito presente quando comecei o projecto: um discurso sempre muito orientado para a ideia de que só se avança em consenso, nomeadamente na área política, em que durante muitos anos ouvimos constantemente que só com maiorias absolutas é que era possível governar. A realidade actual demonstra que não é assim.

Até aqui tinha feito um percurso que às vezes comparo mais aos artistas plásticos do que às artes performativas: um percurso um bocado solitário porque trabalhei muito no formato solo. O formato solo é muito bom porque permitiu pôr-me em contacto com o meu universo pessoal, descobrir qual é a minha linguagem, fazer uma reflexão em relação a mim própria, mas também é muito solitário.

A ideia de encontro neste projecto veio contrariar essa sensação que me acompanhava já há alguns anos. E, por outro lado, tinha a ver com o próprio projecto: a ideia de que nós, sozinhos, somos mais frágeis mas unidos somos mais fortes.

4. Quando estou a criar, é importante a disponibilidade para deixar acontecer mas também é importante uma grande força em não abdicar daquilo que sou: há sempre este equilíbrio entre abertura e ao mesmo tempo afirmar o meu pensamento e o meu olhar relativamente ao mundo e ao fazer artístico. Há sempre um diálogo entre estas duas forças durante a criação.

Os temas das sete peças não estão planeados. Aliás, o pressuposto destes encontros é que ninguém prepare nada. A única coisa que é transversal a todas as peças é o primeiro encontro com o convidado. Temos um dispositivo de arranque. No primeiro dia de ensaios, eu e o artista convidado colocamo-nos frente a frente e alguma coisa acontece - e, a partir desse gesto inaugural, temos a peça. A peça e os conteúdos da peça estão relacionados com o primeiro gesto.

Na "Segunda-feira", que estreou o ano passado, o primeiro gesto foi uma pergunta. Não me lembro se fui eu que a enderecei ao [criador] Pablo Fidalgo ou ele a mim, mas isso direccionou a peça para um texto de cerca de 200 perguntas à ideia de Europa, desta Europa blindada, das fronteiras, do dinheiro, do preconceito do Norte em relação ao Sul.

No caso da "Terça-feira" [apresentada esta semana no Maria Matos], o gesto inaugural do Luca [Bellezze] foi recusar estar à minha frente para passar a estar ao meu lado. Ao fazer essa inversão, ficámos lado a lado a olhar para fora de nós - e foi o gesto inaugural do espectáculo.

O Luca é artista de rua, é "clown", e trabalha há muitos anos com fio e foi o material que ele trouxe e colocou em cima da mesa, digamos assim, e vimos que esse material tinha um potencial de narração visual. A partir do momento em que começámos a criar uma narrativa visual, apercebemo-nos de que estávamos a trabalhar sobre a questão dos refugiados. Depois fizemos um "zoom" sobre essa temática e interessámo-nos por explorar as razões históricas e políticas que estão na base dos conflitos, hoje, no Médio Oriente e, nomeadamente, na Síria. Há razões históricas para o que actualmente estamos a viver. Há um exercício de memória que é importante fazer - e acho que o palco é também um território para fazer esse exercício de memória.


Ver comentários
Saber mais Teatro Maria Matos refugiados Alkantara Almada Médio Oriente Síria
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio