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Bob Dylan: o poeta com música

Ao considerar Dylan como um poeta da canção americana, a Academia sueca veio dizer-nos que a literatura já não passa unicamente pelos livros. O que abre novas possibilidades futuras.

Andrew Harrer/Bloomberg
14 de Outubro de 2016 às 15:19
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Num concerto, hoje famoso, que deu em 1966 em Manchester, Bob Dylan foi interrompido aos gritos por um militante fã da folk tradicional, que o chamava de "Judas!". Como resposta, Dylan pediu ao grupo de músicos que o acompanhava: "Toquem mais alto!" A razão para o protesto era óbvia: no ano anterior, no Festival de Newport, Bob Dylan surgira em palco com uma guitarra eléctrica, uma "traição" a toda a tradição da música folk americana. E ao próprio passado de Dylan: Woody Guthrie fora o seu "pai inspirador" e Joan Baez a musa da folk acústica, a sua verdadeira madrinha no tumultuoso mundo musical de inícios da década de 1960. Ao trocar a guitarra acústica pela guitarra eléctrica, Dylan punha em causa os sacrossantos princípios do folk norte-americano, baseados na pureza e na luta política.

Em Newport, Pete Seeger, quando viu o Dylan eléctrico não se coibiu de dizer: "Meu Deus, é terrível! Não se conseguem perceber as palavras! Se eu tivesse um machado, cortava já o cabo eléctrico da guitarra!" Dylan nunca foi um músico de consensos, mas a sua passagem do universo acústico para o eléctrico (que corresponde também a alguns dos seus mais fantásticos discos, editados entre 1965 e 1966, "Bringing It All Back Home", "Highway 61 Revisited" e "Blonde on Blonde") tornou-o um renegado. Por isso, não deixa de ser curioso como, passadas tantas décadas, a sua consagração com o Nobel da Literatura de 2016 o coloque novamente entre a espada e a parede, como se se tivesse laureado um "pecado". Os militantes da "poesia pura" vêem no prémio para Dylan a desonra total do Nobel da Literatura. Os que acham que a poesia só ganhou com a sua associação à música popular (e consideram as letras musicais como uma variante poética) celebram o prémio. Seja como for, mais uma vez Dylan dividiu e colocou em xeque as certezas.

Poeta ou autor de letras? A doutrina vai dividir-se em torno do prémio para Robert Allen Zimmerman, nascido a 24 de Maio de 1941, que mudou o nome para Bob Dylan antes de 1960. E aqui surge outra metáfora: considerando que tinha sido influenciado pela poesia de Dylan Thomas, adoptou o "Dylan". Numa entrevista, anos mais tarde, discorreria sobre o tema: "Nasces com os nomes errados e com os pais errados. Isso acontece. Chamas a ti próprio o que queres chamar. Esta é a terra da liberdade". Como diria o actor e dramaturgo Sam Shepard: "Bob Dylan inventou-se a si próprio. Inventou-se do que esgravatou. Isto é, das coisas que estavam à sua volta e dentro dele. Dylan foi uma invenção do seu próprio cérebro".

Agora, a Academia sueca galardoou-o com o Prémio Nobel da Literatura por ter "criado novas expressões poéticas dentro da grande tradição musical americana". Cole Porter não teve essa sorte. Mas renovando o debate sobre se ele é um poeta ou criador de canções, ele faz-nos lembrar o que Dylan disse numa conferência de imprensa em 1965: "I think myself more as a song-and-dance man".

Desde 2004, quando começaram a crescer as notícias que o apontavam como possível vencedor do Nobel da Literatura, que a doutrina passou para as academias e para os estudos literários. O próprio Dylan evoluiu na sua opinião e passou a considerar-se mais um "poeta". Tendo editado 35 álbuns de estúdio ao longo da vida e vendido mais de 100 milhões de discos, foi considerado uma das 100 pessoas mais influentes do século XX pela Time.

"Like a Rolling Stone"

No fundo, a sua candidatura ao Nobel começou por causar surpresa. Mas depois fomo-nos habituando. A questão é que Dylan, nome importado de um poeta, sempre teve diferentes faces. E, sobretudo, tornou-se um poeta com música. Reconhecido globalmente. Está no centro da cultura mundial, ultrapassando fronteiras como nenhum outro desenhador de emoções poéticas. Os seus poemas saem com facilidade dos nossos lábios como os de poucos outros. A música é um meio único para tornar as palavras uma língua franca que atravessa gerações e fronteiras. Não nos faz ler: faz-nos cantar.

O Prémio da Academia vem no então reformular o debate: ao considerar Dylan como um poeta da canção americana, veio dizer-nos que a literatura já não passa unicamente pelos livros. O que abre novas possibilidades futuras já que vivemos num mundo que cruza o digital com a memória escrita em papel. Já o ano passado, Svetlana Alexievich não era uma "escritora pura": era reportagens escritas com requinte.

Seja como for, é uma revolução cultural, tal como a que Dylan levou para o palco de Newport quando trouxe a guitarra eléctrica para o mundo acústico da folk. Nessa altura, mostrou a todos as possibilidades poéticas do rock, em que a guitarra deixava de ser o acompanhamento das letras, mas sim o guia da energia de quem estava a ver o que se passava num palco. A sua Fender Stratocaster tornou-se uma arma tão importante como a guitarra que Woody Guthrie utilizava e que dizia que servia para "matar fascistas". "Like a Rolling Stone" foi a canção perfeita para simbolizar essa mudança. Talvez tão grande como a que assistimos agora. Numa das suas canções, "I Shall Be Free No.10", ele parecia sentir o peso da questão que agora divide o mundo: "Yippee!I'm a poet, and I Know it/Hope I don't blow it". Mas talvez a grande pergunta para esta polémica que não terminará parta das notas do seu segundo disco, de 1963, "The Freewheelin' Bob Dylan": "Anything I can sing, I call a song. Anything I can't sing, I call a poem". Talvez Dylan tenha, no fim, unificado os dois mundos.
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