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As entrevistas que marcaram o ano: Joana Bértholo

Em 1944, aos 22 anos, Agustina Bessa-Luís colocou um anúncio no jornal O Primeiro de Janeiro onde dizia: “Jovem instruída deseja correspondência com pessoa inteligente e culta”. A ousadia do gesto fascinou a escritora e dramaturga Joana Bértholo, que decidiu republicar aquele anúncio recorrendo a um alter ego. A partir daí escreveu o livro “Augusta B. ou as Jovens Instruídas 80 anos Depois”.
Lúcia Crespo e Sérgio Lemos - Fotografia 24 de Dezembro de 2024 às 14:00

Em 1944, aos 22 anos, Agustina Bessa-Luís colocou um anúncio no jornal O Primeiro de Janeiro onde dizia: "Jovem instruída deseja correspondência com pessoa inteligente e culta". A ousadia do gesto fascinou desde sempre a escritora e dramaturga Joana Bértholo, que decidiu republicar aquele anúncio recorrendo a um alter ego. A partir daí escreveu o livro "Augusta B. ou as Jovens Instruídas 80 anos Depois". Teria Agustina sonhado um Tinder "avant la lettre"? Terá sido assim algo tão disruptivo? "Interessou-me pensar o tema através da literatura". Autora de diversas obras premiadas, como "Ecologia" e "A História de Roma", Joana alia a escrita ao desporto. Foi atleta de alta competição, praticou natação e triatlo, e relata essa experiência no livro "O meu treinador" - um retrato solar e sombrio do desporto de alto rendimento, onde fala de abusos, de silêncios e de traumas.


* Entrevista publicada originalmente a 23 de agosto de 2024


Foi através de um anúncio de jornal que a escritora Agustina Bessa-Luís conheceu o marido, Alberto Luís. Este anúncio é o ponto de partida do seu livro "Augusta B. ou As jovens instruídas 80 anos depois". O que a levou a recuperar este episódio?

Sempre senti um fascínio por esta história. Em 1944, aos 22 anos, a Agustina colocou um anúncio na secção de Diversos no jornal O Primeiro de Janeiro, onde dizia: "Jovem instruída deseja correspondência com pessoa inteligente e culta". Foi mesmo assim que conheceu a pessoa com quem viria a passar 72 anos da sua vida. Mas eu só compreendi a ousadia deste seu gesto ao ler "O Poço e a Estrada: Biografia de Agustina Bessa-Luís", da biógrafa Isabel Rio Novo, que nos mostra a irreverência da escritora. Quando fui desafiada pelo festival Correntes d’Escritas para escrever sobre a "Póvoa de Agustina" (em 2023), decidi que iria responder a esse desafio não com um texto, mas com uma imagem, e queria que essa imagem fosse uma réplica do tal anúncio de 1944. Seria uma espécie de exercício antropológico ou sociológico. No fundo, a pergunta em causa era: o que aconteceria se o anúncio de Agustina fosse publicado nos dias de hoje, 80 anos depois, no meio de publicidade a telemóveis e a outras coisas do nosso mundo. 

 

Sei que não foi fácil republicar…

Não foi. Inicialmente, abordei o jornal Público. Para tal, criei um alter ego, a Augusta B., e acrescentei um email ao nome. A proposta foi sendo rejeitada, também por outras publicações, não sei bem porquê, diziam que não se enquadrava na linha editorial. Na verdade, acho o anúncio bastante pueril e cândido. Acabaria depois por ser publicado na secção de Convívio do Correio da Manhã. Contudo, à medida que chegavam as rejeições, comecei a pensar que esta era a história que eu tinha de contar e pus-me a imaginar quem seria, afinal, a Augusta B. Fui decidindo que seria mais um alter ego da Agustina do que meu, atribuí-lhe 22 anos, a idade que a escritora tinha quando publicou o anúncio, recuperei o ambiente da Póvoa e criei a personagem Raquel, que representa aqui um outro tipo de jovem. Na altura, conversei com algumas raparigas sobre a forma como procuram o outro e acabámos por falar nas aplicações de encontros. Ainda que as jovens encarem as plataformas com muita naturalidade, nem todas manifestam especial interesse por estas ‘apps’. Não podemos rotular nenhuma geração.

 

Entretanto, teve resposta ao anúncio publicado no Correio da Manhã?

Não tive contactos! Acabei por ficar apaziguada com isso, mas no início até ia ver o email de hora a hora, depois uma vez por dia, depois ao fim de semana. Mas percebi que ninguém iria responder. Senti alguma desilusão, mas esse silêncio também diz muito sobre os mecanismos atuais de encontrar o outro e sobre o quão obsoleto aquele anúncio é.

Por muitos algoritmos e tecnologias que inventemos, os anseios do amor são os mesmos.

"Tudo naquela história soava obsoleto: o veículo, os modos e o contexto. Mas talvez não o impulso, sentiram elas; talvez não o anseio, talvez não a carência, a volúpia ou a intensidade. Porventura nada do que realmente importa teria mudado", escreve no livro. Apesar das formas, os anseios serão os mesmos?

O livro é uma reflexão, e não uma tese, pois nestas coisas do amor nunca há certezas teóricas. Ainda assim, fascinou-me pensar o tema através da literatura. Diria que as tecnologias podem mudar o modo como encontramos o outro, sabemos que hoje é tudo mais rápido e imediato, mas a velocidade não nos garante o par ideal ou o amor, por muito que as aplicações invistam em vender tiros certeiros: "entre na nossa ‘app’ e vá conhecer o amor". Tanto podem dar certo como errado. E isso é o mais encantador. Ou seja, por muitos algoritmos e tecnologias que inventemos, os anseios do amor são realmente os mesmos. O que as aplicações fazem é acelerar processos ou ligar pessoas que de outra forma não se encontrariam, pois a geometria dos encontros é completamente diferente e até cria novas possibilidades – e isso é interessante por si mesmo e é até disruptivo em relação a séculos de encontros amorosos em circuitos fechados, no seio de determinadas famílias ou de classes sociais. Mas nada disto garante o amor vitalício que representa a história de Agustina. E o amor para toda a vida gera hoje ainda mais fascínio, talvez por estarmos mais conformados com o facto de as coisas terminarem e recomeçarem.  

 

A nova geometria de encontros cria novas possibilidades e também trunca outras, algo se perde também, como diz?

Não se encontra alguém facilmente, isso é algo que está quase no âmbito do milagre. É tão excecional que nos marca para a vida: é olharmos para alguém e percebermos que aquele estranho é mais do que um estranho. E isto pode ser distante do processo de selecionar pessoas no mundo digital, que responde a outros critérios e sensações. Claro, estas diferentes experiências podem conviver: podemos usar as possibilidades digitais e ainda assim esbarrarmos em estranhos – nos tais estranhos que se revestem de brilho. O que me interessa é pensar o modo como as novas possibilidades de encontro alteraram a nossa forma de estar e de procurar o outro, sobretudo entre as gerações mais novas, que já cresceram muito mediadas pelos ecrãs. Afinal, o que muda, o que se perde e o que se ganha com estas novas formas de chegar ao outro? 

 

No livro, fala sobre o "aranzel de anglicismos de situações desagradáveis, e muito disseminadas, do ghosting ao zombieing, passando por todas as formas de breadcrumbing, benching, orbiting, stashing, a agressiva ambiguidade do love bombing aos ardis crimininalizáveis do catfishing" Há uma sensação de "afetividades líquidas" que nos torna talvez mais vulneráveis?

Sim, é tudo mais rápido. Mas nada disto foi inventado pelas tecnologias. Há 100 ou 200 anos, por exemplo, se alguém deixava de nos falar ou se baixava a cara na rua, isso era uma espécie de "ghosting" também. Foi algo que sempre existiu na história do mundo e que certamente partiu muitos corações. O que mudou foi a proliferação e a velocidade com que tudo acontece, e que pode eventualmente aumentar a nossa vulnerabilidade.

Haverá uma maior preocupação com a identidade social, com o desdobramento de identidades e com as aparências? Este é um tema do livro. Aliás, a personagem Raquel até oferece a Augusta o livro "A Sociedade do espetáculo", de Guy Debord. 

Isso tem que ver com as ideias situacionistas da personagem Raquel. Procurar o outro não se reduz a ir para o meio digital ou a reproduzir um anúncio no jornal. Quando comecei a pensar naquilo que uma miúda de 22 anos pode fazer para conhecer outras pessoas, imaginei coisas como pôr cartazes nas paredes ou deixar bilhetinhos nos livros da biblioteca. Ou seja, na verdade, a procura do outro continua a ser um território muito grande. Ao fazer este exercício, senti que havia aqui esse tal espírito dos situacionistas, que sempre questionaram diferentes formas de fazer, brincando com elas, subvertendo-as ou mudando algo por dentro, e foi neste contexto que a personagem Raquel ofereceu o tal livro à Augusta.

 

Há sempre um texto destinado a cada leitor, até para os mais esquivos e reticentes, como diz a Raquel? A Joana também tem esperança na nova geração de leitores? 

Tenho esperança, até porque os números mostram que estamos a ler mais e também mostram que são os jovens que estão a comprar mais livros, uma tendência que poderá estar relacionada com a proliferação dos clubes de leitura, muitos deles criados a partir de redes sociais. Há clubes que são só um ‘hashtag’, ainda que as pessoas também se possam encontrar presencialmente. Muitas vezes, um ‘influencer’ lança um desafio como, por exemplo, "ler autores portugueses", e as pessoas, no seu tempo, decidem o que querem ler e vão partilhando essa experiência de leitura usando o tal ‘hashtag’. Os leitores sentem assim que estão a ler em comunidade. Penso que estas tendências estão a ter impacto nos hábitos de leitura de pessoas que até agora não liam ou que achavam que a leitura era uma atividade isolada ou associal. Ainda que ler seja sempre um ato solitário – eu adoro a solidão da leitura –, as pessoas têm depois a possibilidade de trocar ideias.

 

Não se nasce leitor de um certo autor, ou de uma certa autora. Em tantos casos, temos de fazer por isso, diz também Augusta. É assim?

Sim, e muitas vezes as redes sociais e mesmo o trabalho feito pelas bibliotecas acabam por desmistificar determinadas figuras canónicas, tirando-as de uma certa solenidade que pode intimidar alguns leitores. Criam pontes e trazem os escritores para o nosso mundo. Eu fiquei surpreendida com a quantidade de pessoas que, depois de lerem este livro, me disseram que agora querem ler as obras de Agustina. Eu não tinha esse objetivo, não sou uma Agustiniana e o livro não é sobre Agustina Bessa-Luís, mas acabou por despertou essa curiosidade entre os leitores, e ainda bem. A história à volta do anúncio criou a tal ponte para um universo que muitas pessoas achavam que era hermético e que estava cristalizado. De repente, aos olhos de muitas pessoas, a Agustina humanizou-se mais.

 

No seu caso, a escrita seguiu-se ao desporto ou foi convivendo com ele. A Joana foi atleta de alta competição – de natação e de triatlo. Esse mundo continua de alguma forma presente em si?

Continuo a ser bastante ativa, mas o meu modo de funcionamento mudou por completo. Hoje costumo sair para correr sem o relógio posto, ou seja, eu não treino, eu corro o que me apetece correr, nado o que me apetece nadar, saio para dançar e para outras coisas. Ainda preciso muito da prática física, até mesmo para o processo criativo, para limpar a cabeça e para ter ideias, mas não estou preocupada em saber se corri meia hora ou 40 minutos ou mais. Esse foi também um exercício que me obriguei a fazer para me distanciar de uma experiência muito intensa na adolescência, em que tudo tinha de ser contabilizado ao segundo e ao grama. E acho que tenho sido feliz assim. Abandonei a competição, mas consegui ficar com o melhor da prática desportiva, que é o prazer, o contacto com o corpo e com a natureza, o praticar desporto em conjunto, o dançar com os outros. Estas são coisas essenciais para mim, mas sem as exigências de outrora.

Foi difícil libertar-se dessas exigências? 

Foi algo gradual. Por vezes, ainda hoje, em águas abertas, faço um circuito maior, mas depois sinto que já não tenho capacidade de fazer o que fazia outrora e o ego embate aí. Isso, eu sinto. Mas também já passou muito tempo, parei de competir há 20 anos, nunca mais treinei ao mesmo nível. Esse corpo altamente performático que sabia fazer coisas que hoje me parecem extraordinárias, é tão antigo e tão distante que também penso: que fixe, um dia já consegui fazer todas aquelas coisas que hoje seriam impensáveis. Há uns tempos, passei na Ponte 25 de Abril, estava com amigos, contei-lhes que tinha já feito a travessia do Tejo a nado, de Porto Brandão à Torre de Belém, e eles ficaram tão incrédulos quanto eu própria fico hoje em dia. Para mim, é uma ideia insólita também. Olho para o rio e penso, o quê, já fiz isto a nado? Era adolescente, nadávamos ali, nós e mil alforrecas! É bom ter estas memórias, mas ao mesmo tempo eu mesma as estranho.

 

Parece-lhe outra vida. Mas no ano passado lançou o livro "O meu treinador", que parte da sua própria vivência e retrata experiências positivas e também negativas dos desportistas de alta competição. Sentiu necessidade de publicar este livro?

Começou por ser uma resposta a uma encomenda. Eu gostava muito de uma revista de ensaio autobiográfico, a Mamute, desafiei-me a escrever algo para lá e a minha memória foi para os meus anos enquanto atleta. Quando o ensaio já estava arquitetado, percebi que a revista iria acabar. Pus o texto na gaveta, mas o texto não ficou bem fechado em mim. Surgiu depois a oportunidade de publicar o conteúdo na Fundação Francisco Manuel dos Santos. Complementei essas minhas memórias dos anos 1990 com entrevistas e números do setor, e o livro acabou por ser um retrato do desporto de alta competição.

Quase todos atletas de topo dão tudo e muitos excedem-se para atingir resultados. Esse estado de permanente excessividade acarreta também um lado sombrio.

Fala de vivências pouco saudáveis entre os desportistas e, numa entrevista, chegou mesmo a dizer: "Não é saudável ser-se atleta de alta competição. Quem está de fora gosta de acreditar que os atletas são versões sobre-humanas de nós".

Essa frase, descontextualizada, pode ser perigosa. O livro é um elogio ao desporto em geral e às pessoas fenomenais que dedicam a sua vida a ultrapassar todo e qualquer limite do corpo. No entanto, é verdade que esse estado de permanente excessividade tem algo de desequilíbrio e acarreta um lado sombrio, e no livro eu falo de vários lados sombrios, de abusos de todo o tipo, de estruturas desequilibradas de poder. No fundo, a pergunta na entrelinha é: a que custo o desígnio maior de uma medalha? Quase todos atletas de topo dão tudo e muitos excedem-se para atingir resultados. Nesse exercício de excesso, há realmente coisas pouco saudáveis….

A cultura do silêncio costuma instalar-se em quase todas as equipas ou centros de rendimento. Mas existe hoje uma maior consciência.

Hoje parece haver pelo menos maior sensibilidade para o tema da saúde mental, existe outra visibilidade a nível mundial, há psicólogos nas equipas e existem mais lugares de denúncia, como é o caso do Observatório Nacional de Violência contra os/as Atletas, em Portugal. Estas medidas estão a ser suficientes?

Existe de facto mais sensibilização e uma outra consciência dos problemas. No livro, falo bastante sobre esse observatório, que tem vindo a recolher muitas denúncias e a combater a cultura do silêncio que se costuma instalar em quase todas as equipas ou centros de rendimento. É uma tendência muito generalizada. Já era algo muito comum, existia nas minhas memórias, e quando fiz a atualização do tema percebi que a situação não mudou muito a esse nível, mas sem dúvida que há hoje uma consciência de que é preciso mudar a situação e as respostas estão a surgir. Mas é preciso ir acompanhando…

 

No livro fala mesmo de uma situação de desequilíbrio que aconteceu consigo. Quer partilhar?

Sim, há tópicos biográficos que depois extrapolo para perceber como está a situação nos dias de hoje. Falo sobre uma doença de comportamento alimentar, a anorexia. Hoje em dia, as equipas técnicas estão muito mais suportadas por nutricionistas e por psicólogos e as pessoas estarão mais atentas aos efeitos da pressão sobre os atletas e as atletas. Falo também sobre abusos de todo o tipo. No meu caso, foi uma situação que se enquadra no termo geral do abuso sexual, algo com bastante expressão em idades mais jovens: os treinadores são sobretudo homens e as atletas são maioritariamente muito jovens. Atenção, estou a falar da parte sombria de uma coisa que geralmente corre bem. O livro está estruturado em retratos de quatro dos meus treinadores, e só um foi problemático, representando a tal situação de abuso, quando eu tinha 13 ou 14 anos. Mas o livro não é uma denúncia do meio como sendo transversalmente nocivo, é sobretudo um chamar de atenção: é dizer que isto às vezes acontece e temos de proteger os atletas.?


Teve muitas reações ao livro?

Esperava que houvesse um pouco mais de celeuma ou de polémica. Mas acho que é um livro muito diplomático, não é um objeto de denúncia, é uma reflexão abrangente sobre o desporto, que contém também esses lugares mais negros, e isso fez com que a reação não tivesse sido assim tão vocal. Contudo, recebi muitas mensagens em privado, de atletas e de ex-atletas, algumas nem eram da alta competição mas tinham um passado desportivo e sentiram que podiam contar-me a sua história e dizer "eu também passei por isso". Foi algo que me surpreendeu e ao mesmo tempo confirmou-me que os abusos existiram e continuam a existir, e por isso temos de continuar a falar sobre o assunto.

Quando apareceu o movimento Me Too, eu não me incluía nas vítimas. Demorei bastante tempo a tomar consciência de que também eu era vítima.

As vítimas são por vezes criticadas por demorarem "muito tempo" a denunciar os seus abusos. Como responde a essas críticas?

Essas críticas mostram uma falta de entendimento da natureza do trauma. Durante muito tempo, eu nem sequer percebi aquilo que me tinha acontecido. Quando apareceu o movimento Me Too, eu não me incluía nas vítimas, achava que esses abusos constituíam algo que tinha acontecido a outras pessoas. Demorei bastante tempo a tomar consciência de que também eu era vítima. Muitas vezes, questionar o papel do nosso treinador significa o ruir de todo um mundo. Ou seja, a minha identidade estava muito baseada naquela coisa excecional e maravilhosa que vivi: o ser atleta. Admitir que houve pessoas que não souberam cuidar de mim ou que abusaram da sua situação significava quase um desmoronar de toda a minha experiência. Também por causa desta questão, há muitas atletas que recusam admitir situações de abuso. E eu reconheci-me nisso mesmo. Queria seguir a vida toda com a sensação de que tinha vivido uma coisa muito especial e incrível – e vivi, mas essa vivência teve os seus lados negros.?

 

Quando é que a Joana começou a escrever? 

Sempre escrevi e foi até um dos meus treinadores que me incentivou: porque não tentas escrever? Ele via-me a escrever e a ler no intervalo dos treinos. Mas eu achava que o meu futuro até passaria mais pelas artes visuais, estudei na escola António Arroio, depois entrei em Belas Artes. Sempre pensei que seguiria pintura, fotografia ou cinema. Escrevia muito, mas não pensava ser escritora. Depois houve uma série de coincidências e fui recebendo alguns prémios literários que acabaram por influenciar o meu caminho. Fez-se um clique e pensei: afinal, para alguém, isto é literatura... Eu não considerava que aquilo que escrevia fosse literatura. Os prémios são uma estrutura problemática no meio literário, mas foram importantes para mim, pois deram-me essa validação exterior.

E também por isso foi deixando aos poucos a prática de alta competição?

Não foi aos poucos, foi mesmo abruptamente. Quando entrei em Belas Artes, parei de competir e de treinar. Não me lembro muito bem dessa fase, mas, conhecendo a minha personalidade, ou saía de rasgo ou não saía de todo. Então transferi toda a minha intensidade, toda a minha mania e toda a minha obsessividade para as Belas Artes, e assim comecei uma nova vida. Mais tarde, acabei por perceber que também precisava do desporto. O meu processo criativo e a minha forma de escrever estão muito ligados ao sair de casa e ir correr, ou seja, eu preciso de continuar em movimento.?

 

É um estado de integração do qual fala no final livro e a que o psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi deu o nome de "fluxo", em que o corpo, a mente, o desporto e a escrita coexistem num estado sem divisórias.

Sim, Mihaly Csikszentmihalyi investigou os estados ótimos de performance em várias atividades. Estudou muito os desportistas, e fala sobre esse fluxo com o qual qualquer atleta se identificará – há ali um estado alterado de consciência, uma relação diferente com o tempo e o espaço. É um estado meditativo profundo e de muita entrega, algo que também acontece na escrita. Há assim paralelos entre a escrita e o desporto, e eu tento refletir um bocadinho sobre isso no livro: o que é que, afinal, ficou da atleta na forma como escrevo, e sem dúvida que esses estados amplos e fora do tempo, que associo muito ao desporto e ao treino, são também aquilo que procuro na escrita.

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