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Andreia Santana: Gosto imenso de Portugal, acho que tenho esse “problema”

Tem 25 anos e é a vencedora do Prémio Novo Banco Revelação 2016. A artista plástica Andreia Santana fala de si e dos seus objectos. Das suas pás, pincéis, ancinhos. Dos objectos que procuram outros objectos.

Bruno Simão
19 de Agosto de 2016 às 15:00
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Pás, pincéis, ancinhos. Objectos que procuram outros objectos. E que um dia serão, eles próprios, objectos procurados. A artista plástica Andreia Santana constrói novos diálogos entre o mundo da arqueologia e o mundo da indústria. Está em contacto com fábricas portuguesas para documentar os processos de fabrico dos objectos que auxiliam a pesquisa arqueológica de campo. Com este projecto, recebeu o Prémio Novo Banco Revelação 2016 e vai realizar uma exposição no Museu de Serralves, em Novembro. Andreia Santana tem 25 anos, estudou Artes Plásticas na Escola Superior de Artes e Design nas Caldas da Rainha. Sempre desenhou. Sempre manuseou objectos. "Sempre explorei essa parte mais material e plástica das coisas, e sempre gostei muito de ler e de fazer relações com pesquisas e objectos." A leitura "Da Natureza das Coisas", do poeta e filósofo Lucrécio, foi essencial no seu trabalho. A leitura de Roland Barthes também. E de poetas como Adília Lopes e Daniel Faria.

O meu projecto consiste na documentação dos vários processos de fabrico dos objectos que auxiliam a pesquisa arqueológica de campo, como as pás, os pincéis, e os medidores, etc. No futuro, estes objectos que estão a ser produzidos e que auxiliam esta pesquisa vão tornar-se, eles próprios, artefactos a serem encontrados. Interessa-me pensar este encontro proveniente da relação entre o objecto que encontra e o que é encontrado. Existe uma abordagem tautológica nesta circularidade de transformações. E, como tenho formação em escultura e instalação, a minha relação com os objectos e com o fazer escultórico é particularmente sensível.
Para este trabalho, contactei algumas fábricas, que me cederam imagens e vídeos de apresentação que mostram como tudo é produzido. Estas fábricas têm também prontuários de produto com a disposição dos objectos e das ferramentas, com as descrições e tamanhos. É muito interessante a maneira como os objectos são dispostos nos catálogos que os apresentam, pode assemelhar-se, por vezes, a processos semióticos. Também aí encontro algo em comum com a arqueologia. Os artefactos arqueológicos têm quase sempre o mesmo modo de apresentação. É interessante ver a coexistência destes dois tempos diferentes.

Acabei a licenciatura (em Artes Plásticas pela Escola Superior de Artes e Design) nas Caldas da Rainha em 2012 e, a partir daí, fui trabalhando e de-senvolvendo uma linguagem e uma pesquisa que não tinham directamente que ver com a arqueologia, mas que, nalguns pontos, se aproximavam. Desde 2012 que trabalho as diferentes maneiras de encontrar e materializar objectos, sobre o "escavar", sobre os meios de produção e as condições em que o objecto nos aparece. Em relação a fábricas como meios de produção, de descoberta e de pesquisa, esse é um pensamento de trabalho relativamente recente. Tenho, por exemplo, um trabalho desenvolvido com a indústria de abrasivos que se chama "Estudo Para Ferramentas de Triagem" - e consiste num conjunto de desenhos com areia vulcânica que encomendei dos Açores. A ideia era, através de um escoramento arqueológico e da triagem da areia vulcânica, produzir o meu próprio material abrasivo. Através do "assentar" da areia no papel eram desenvolvidos os vários desenhos de lixa.
Sempre desenhei, sempre manuseei objectos, sempre explorei essa parte mais material e plástica das coisas, e sempre gostei muito de ler e de fazer relações com pesquisas e objectos. Sempre soube, desde cedo, que queria seguir artes plásticas e não me via, sequer, a fazer outra coisa. Sou de Lisboa, estudei na Padre António Vieira, no curso de Artes Visuais, onde os professores me direccionaram para a Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha, por ser mais recente do que a Faculdade de Belas Artes, com professores mais jovens e com trabalho artístico recente. A escola tem condições incríveis, as oficinas são espaçosas e há ateliês para todos. É-nos dada uma abordagem técnica em todas as oficinas, para que consigamos produzir autonomamente as peças. Sou eu que faço tudo no meu trabalho. Claro que quando o meu trabalho cresce para uma escala maior, obviamente que preciso de ajuda. Eu gosto de fazer, mas isso nem sempre é possível e eu acho que um artista deve sempre privilegiar o pensamento e não as questões técnicas. Os artistas põem coisas em relação.
Depois de acabar a licenciatura, voltei para Lisboa e decidi frequentar o Programa Independente de Estudos da Maumaus, uma escola de artes visuais de componente mais teórica que nos faz pensar sobre a criação artística e sobre a nossa posição enquanto artistas, sobre o existir no mundo enquanto artista. Penso que os artistas deveriam ter uma posição mais privilegiada na sociedade, existem artistas a desenvolver pesquisas muito interessantes sobre a sociedade actual. É necessário haver um pensamento plástico sobre questões contemporâneas, questões sociais, questões políticas, questões filosóficas. É preciso existir alguém que consiga, plasticamente, desenvolver este trabalho.

A formação artística está cada vez mais, e ainda bem, intelectualizada. Sempre o foi, mas existe uma outra noção da importância das disciplinas teóricas no pensamento. Lucrécio, por exemplo, foi muito importante para mim, com o seu "Da Natureza das Coisas", um livro muito antigo que pensa a formação não só dos objectos, mas de todas as coisas no mundo. A leitura de Roland Barthes também foi imprescindível no meu trabalho, pela maneira como disseca a imagem e os objectos. O meu interesse pela fotografia, por exemplo, tem que ver, precisamente, com o poder da documentação e da classificação. E a classificação, em arqueologia, constitui 90% do trabalho. Fascina-me todo este lado da classificação. Classificar é descobrir porque é que aquele objecto foi importante, para o que é que serviu.
Também gosto muito de poesia. Adília Lopes é uma das minhas poetas preferidas. E também o Daniel Faria. Ele é incrível, muito ascético. Gosto da forma como eles se posicionam no mundo, como se vêem num mundo que é tanta coisa, num mundo que é maior do que eles. Acho que existe uma poesia nesta tautologia da circularidade da matéria da vida, dos objectos que ainda não são, mas que vão ser, de as coisas nunca estarem no seu lugar, de as coisas circularem sempre, de a vida acabar, de as coisas voltarem a ser novas… acho que só pode existir poesia nessa circularidade da natureza das coisas.
É muito difícil viver da arte em Portugal, sem dúvida, é preciso semear mesmo muito para colher frutos. É preciso ser-se muito persistente e ter força de vontade. Claro, às vezes, semeia-se imenso e colhe-se pouco. É preciso muito trabalho e dedicação, é preciso bater muito o pé.
Gosto imenso de Portugal, acho que tenho esse "problema". Digo problema porque parece que nas artes plásticas (e nas outras áreas penso que também assim o é) existe quase uma obrigatoriedade em ver a internacionalização dos artistas como algo que deve ser feito de fora para dentro. Sinto-me muito bem aqui e não sei se seria tão feliz a viver noutro lado, mas não me posso prender, eventualmente, se precisar de sair de Portugal, assim será. Claro que, mesmo continuando a viver cá, gostaria de passar algumas temporadas lá fora, em residências artísticas. Já estive fora no âmbito de residências e exposições, em Maputo e em vários sítios da Europa. É necessário e frutífero conhecer novas histórias e culturas. Mas gosto, pelo menos, de saber que estou cá sediada.

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