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A hora de Maria Gabriela Llansol

Maria Gabriela Llansol é o próximo grande mito literário a seguir a Fernando Pessoa, disse Eduardo Lourenço. A escritora portuguesa morreu em 2008 com 24 livros publicados (e oito traduções) e deixou um espólio com mais de 30 mil páginas que está a ser trabalhado pelo Espaço Llansol e editado pela Assírio & Alvim sob o título genérico de “Livros de Horas”. O universo da autora rebelde vai ser celebrado no Festival Silêncio, entre 28 de Setembro e 1 de Outubro.

22 de Setembro de 2017 às 12:20
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Encontrou-se com as figuras rebeldes da História europeia e rebelou-se também. De ascendência catalã, Maria Gabriela Llansol nasceu no ano 1931 no bairro de Campo de Ourique, Lisboa, recebeu uma educação católica tradicional, estudou Direito, casou na Igreja de Santa Isabel e, em 1965, exilou-se com o marido, Augusto Joaquim, na Bélgica.

Foi sobretudo por lá que a escritora portuguesa descobriu as figuras místicas, hereges e revolucionárias da História e a sua "religião" passou a ser a da liberdade incondicional que encontrou em muitas dessas figuras. Primeiro em Lovaina e mais tarde em Herbais, uma pequena vila de agricultores, onde a autora alcançou o desejado isolamento para se focar no seu objectivo maior: a escrita. Regressou a Portugal em 1985 e escolheu Sintra para viver. Sem filhos. Sempre com gatos. Por lá deixou mais de 30 mil páginas espalhadas por cadernos, agendas e dossiês. Desta escrita diarista está a ser extraído material inédito, publicado sob a designação genérica de "Livros de Horas", resultado de uma vontade expressa pela escritora antes de morrer, em 2008. No quinto volume desta série, "O Azul Imperfeito", Maria Gabriela Llansol dá nova vida a Fernando Pessoa, o seu Aossê. O poeta deixa o Chiado e parte para a Alemanha. 

Maria Gabriela Llansol foi apontada por Eduardo Lourenço, na revista Ler, como "o próximo grande mito literário a seguir a Fernando Pessoa". António Guerreiro, ensaísta e crítico literário, escrevia no Expresso em 2008: "O século XX português, no domínio da literatura, é inquestionavelmente pessoano; um dia também será llansoliano. Não se trata de medir grandezas, mas de reconhecer o que há de incomensurável na obra de Maria Gabriela Llansol, pelo modo como inventou um género literário (para o qual não servem as categorias de romance nem de ficção, e em rigor se esbatem as fronteiras entre prosa e poesia), criou a sua própria tradição e projectou-se fora das constelações literárias." Silvina Rodrigues Lopes, autora da obra "Teoria da Despossessão: ensaio sobre textos de Maria Gabriela Llansol", disse sobre a escritora: "É uma das maiores revelações da literatura recente." Também o poeta e romancista Eduardo Pitta salientou: "É provavelmente a grande prosadora da literatura portuguesa do século XX."

A criadora de obras como "O Livro das Comunidades" é celebrada este ano pelo Festival Silêncio, no Ciclo Autor, com curadoria do Espaço Llansol, da responsabilidade dos filólogos e ensaístas João Barrento e Maria Etelvina Santos. "No início, fiquei surpreendido com a escolha de M. G. Llansol para o festival. Não é uma autora de massas, não é popular nem nunca será, escrevia livros inclassificáveis… Depois, percebi que, precisamente por ser inclassificável, a escritora pode apelar a muita gente. Como tem uma escrita carregada de imagens, é uma autora muito visual, apelando bastante ao universo das artes", expressa o crítico literário João Barrento, que se cruzou com os livros de Maria Gabriela Llansol na década de 80 e orientou teses académicas sobre a obra llansoliana.

Mais tarde, João Barrento, autor do livro "A Chama e as Cinzas" (2016), conheceu pessoalmente a escritora e criou, com colegas da Universidade Nova de Lisboa, o então chamado Grupo de Estudos Llansolianos (GELL), uma iniciativa em grande parte impulsionada por Augusto Joaquim, marido e companheiro de escrita de Maria Gabriela Llansol. O grupo vingou até 2007, um ano antes da morte da escritora, e deu origem ao actual Espaço Llansol que, até ao Verão, permanecia sediado na antiga casa da escritora em Sintra, onde estavam concentradas milhares de páginas manuscritas que estão a ser seleccionadas e trabalhadas por João Barrento e Maria Etelvina Santos. O espólio da autora encontra-se agora em Campo de Ourique, bairro onde Llansol nasceu.

As beguinas e as figuras hereges

"Os primeiros livros de Maria Gabriela Llansol, sobretudo a primeira e a segunda trilogia, centravam-se numa espécie de revisão da História da Europa feita a partir de figuras tais como místicos medievais, revolucionários, hereges, filósofos e as chamadas beguinas. A autora descobre estas mulheres que viviam, entre os séculos XIII e XIV, em comunidades chamadas ‘béguinages’ na Bélgica, Holanda e Alemanha – um dos mais célebres ‘béguinages’, ainda visitável, é o de Bruges, que significou para Llansol uma verdadeira descoberta e inspirou os seus primeiros livros", conta João Barrento.

"Estas mulheres viviam à margem dos conventos e faziam trabalhos que hoje corresponderiam a um misto de enfermeira, assistente social e espiritual ou confidente e elas serão figuras centrais em livros da primeira trilogia de Llansol, como por exemplo ‘Na Casa de Julho e Agosto’ (1983), e também da segunda, como na ‘Causa Amante’ (1984), em que as beguinas descem a Portugal e recuperam D. Sebastião, que dá à costa nas águas do Cabo Espichel, para o transformarem de rei em figura vegetal, D. Arbusto", descreve o filólogo. 

Na "Casa de Julho e Agosto", Maria Gabriela Llansol escrevia a seguinte passagem sobre as suas beguinas: "Esses seres, sem ser religiosos, possuíam estatutos particulares e levavam uma vida de natureza sagrada. Mulheres jovens, como Marta e Maria, ali estavam embora não desejassem encontrar nem directivas espirituais, nem protecção de homem; a partida possível de uma gata enchia as mentes e os corações de inquietação; como se na noite, abrindo-se o grande portal, os homens tivessem deixado na solidão suas mulheres; embora ninguém tivesse sido morto ou retido na guerra, ou nas Cruzadas; embora aquelas mulheres não tivessem uma vocação religiosa precisa nem procurassem junto dos clérigos apoio, ou vida retirada que lhes permitisse dar sentido à existência; embora também não houvesse um ideal de pureza, nem de pobreza."

A escritora portuguesa também se interessava por nomes da cultura europeia como Maître Eckhart, Espinoza, Thomas Müntzer, Friedrich Hölderlin, Nietzsche ou músicos como Bach. Muitas das figuras que ia descobrindo eram personagens controversas que desafiavam a forma de olhar e de estar no mundo. Tal como ela. Resgatou, para os seus escritos, muitas dessas figuras, tais como São João da Cruz, sacerdote e frade carmelita espanhol. "A dada altura, ele rebela-se contra a Ordem dos Carmelitas e cria uma ordem alternativa, a Ordem dos Carmelitas Descalços, muito marcada pela ideia de despossessão, algo que, para Maria Gabriela Llansol, seria muito importante, porque essa despossessão significava ir ao autêntico", diz João Barrento.

A irreverência pedagógica

Através das figuras que ia encontrando na História europeia, a autora questionava o mundo e questionava-se a si própria. E colocou em prática essas questões através de modelos de vida tidos como alternativos. Maria Gabriela nasceu numa família tradicional e católica. "O pai, um homem conservador, era chefe de contabilidade da então Companhia do Papel do Prado, que produzia papel timbrado para os requerimentos do Estado. A mãe era uma senhora do Porto com quem o pai casou em segundas núpcias e que já tinha uma filha", conta João Barrento. A escritora frequentava a Igreja de Santa Isabel, em Campo de Ourique, onde casou com Augusto Joaquim. Avizinhava-se a guerra colonial para o futuro do marido e, então, o casal exila-se na Bélgica e por lá permanece 20 anos, deixando marcas na educação de várias crianças.

Em colaboração com amigos, vizinhos e outros exilados políticos, Maria Gabriela e Augusto Joaquim fundaram uma escola de inovação pedagógica, a Escola da Rua de Namur e, mais tarde, criaram um outro estabelecimento, La Maison, integrado na cooperativa de produção e de ensino "Ferme Jacob/Quinta de Jacob", em Louvain-la-Neuve, nos arredores da cidade, um espaço onde também construíam móveis, faziam pão e até tinham um restaurante, descreve João Barrento.

Enquanto o marido mantinha uma actividade política algo activa, aproximando-se do movimento Luar (Liga de Unidade e Acção Revolucionária), Maria Gabriela Llansol não manifestava uma afirmação política explícita. "Ela escrevia. E, ao escrever, deixava no papel o modo como via o mundo, expressando um ideário, nomeadamente esse apelo a formas incondicionais de liberdade que encontrava nas tais figuras que foi descobrindo ao longo do tempo", diz o ensaísta. "A autora tem uma formação católica enraizada mas, pouco a pouco, afasta-se do catolicismo oficial, nunca deixando de ser uma escritora com uma forte componente espiritual, mas não a da religião oficial.

Era qualquer coisa muito mais livre", salienta. "Em toda a sua obra, há uma possibilidade de leitura da sociedade e da História e muito do seu conteúdo tem um teor filosófico. Ela era, de alguma forma, uma filósofa."

É na procura pela sua liberdade que a escritora se afasta da cidade, procurando lugares cada vez mais pequenos até pousar, durante cinco anos, na localidade de Herbais, uma pequena vila de agricultores. "Foi aí que ela se encontrou verdadeiramente. Viveu sempre muito isolada, precisava desse isolamento para escrever. A actividade na escola tirava-lhe tempo para a escrita e o seu grande objectivo era, realmente, escrever."

Foi em terras belgas que Maria Gabriela Llansol iniciou "O Livro das Comunidades" (1977), encarado pela própria como "o livro-fonte" de toda a sua obra. É com ele que a escritora começa a sua primeira trilogia "Geografia de Rebeldes" – inclui "A Restante Vida" (1983) e "Na Casa de Julho e Agosto" (1984) –, que vai ser publicada nos Estados Unidos, em Outubro de 2017, ano em que se celebram 40 anos da publicação do primeiro livro desta sua trilogia.

Depois de 20 anos na Bélgica, o casal regressa a Portugal e volta a procurar algum isolamento. Refugia-se em Colares e depois Sintra, na antiga Estalagem da Raposa, que viria mais tarde a transformar-se no Centro de Estudos Llansolianos. E depois de uma fase em que a diarista levava para os seus escritos as figuras rebeldes da História, a dada altura começa a registar o quotidiano. "Escreve sobre o mundo à sua volta, sobre as coisas que às vezes nós não vemos ou que ela vê com outra luz. Por exemplo, os vivos, como ela diz, interessaram-lhe sempre, e um vivo tanto podia ser um cão que ela teve muitos anos ou os mais de 30 gatos que teve ao longo da vida. Podia ser uma planta ou até um inerte, ao qual ela dava vida", conta João Barrento. "O seu cão, chamado Jade, como a pedra preciosa, foi objecto do livro, ‘Amar um cão’, e a história dele, reescrita para crianças pela escritora Hélia Correia, vai ser lida no Festival Silêncio."

"A esotérica de serviço"

Maria Gabriela Llansol nunca foi popular, não gostava de dar entrevistas e procurava o isolamento. Durante o primeiro ano do Grupo de Estudos Llansolianos, pouco ou nada dizia, conta João Barrento. "Explicou, mais tarde, que queria ouvir aquilo que os outros liam nos seus livros. Depois, começou a falar." Desconhecida do grande público, a escritora diarista era reconhecida no meio crítico literário. Num dia de 1999, a autora escreveu uma carta a Eduardo Prado Coelho, um dos seus maiores leitores e críticos, em que dizia: "Nas experiências que fiz, no meio literário, não encontrei qualquer caminho para o meu texto.

A falta de humanidade é de regra, ninguém sabe porque escreve, a minha obra é apresentada como um meteoro desconhecido, nunca ninguém pediu a quem sabe um pouco mais sobre ela para a apresentar, eu própria estou, desde sempre, catalogada como inacessível, nunca encontrei ninguém que estivesse minimamente interessado em escutar os problemas que me punha a obra que nascia de mim e à qual eu sempre estive firmemente disposta a dar corpo. (…) Mas o mais grave é a situação em que sempre fui colocada. Eu que sou frontal, gosto de conversar e rir, adoro facécias, antes mesmo de abrir a boca, já a minha palavra estava inscrita numa rede de total incompreensão. (…) No quadro da literatura ‘nacional’, serei sempre a esotérica de serviço."

"A escritora tinha a consciência de que, vista de fora, era inacessível, eventualmente esotérica, misteriosa, hermética e, até certo ponto, isso era verdade, mas não era caso único. O que ela pede é que as pessoas se libertem de preconceitos e tentem ir ao encontro do que lêem. Estamos viciados em códigos de leitura, em géneros, e quando aparece um caso extremo de grande diferença em relação a quase tudo, é natural que isso provoque algum choque", diz João Barrento. "Ela, de facto, rompeu com todos os géneros literários – não se pode dizer ‘é um romance, é um conto, é um ensaio’. Como diz Eduardo Lourenço, ela vem de outra constelação. Vem de um lugar onde não é fácil chegar, é preciso insistir na leitura e, como existem ali muitas portas, cada um encontra a sua própria porta. Era disso que ela gostava. Era isso que ela queria."

Pessoa em Llansol

Maria Gabriela Llansol morreu, doente, em Março de 2008. Augusto, o marido, já tinha falecido. João Barrento acompanhou-a até ao fim. Ele e a sua colega Maria Etelvina Santos são hoje os responsáveis pelo espólio da escritora que, depois de alguns anos na antiga casa de Sintra, passou agora para um espaço em Campo de Ourique. Ao todo, são centenas de cadernos manuscritos, divididos em duas séries, num total de 35 mil páginas. Desses cadernos, têm estado a ser extraídos vários conteúdos inéditos, por vontade expressa da autora. "Nos seus últimos meses de vida, disse-nos: vão aí ao armário e devem estar por lá alguns cadernos numerados, voltem ao início, recuperem aquilo que eu não aproveitei. Vamos chamar-lhes ‘Livros de Horas’." Desde então, o Espaço Llansol tem estado a recolher material para a série editada pela Assírio & Alvim.

"Azul Imperfeito Livro de Horas V (Pessoa em Llansol)", o último livro lançado pela editora, fala sobre a nova vida de Fernando Pessoa, que já tinha surgido noutros livros da escritora como em "Um Falcão no Punho". "Maria Gabriela Llansol achou que Pessoa não se tinha realizado em vida – com aquela sua figura meia apagada ali na Baixa – e então dá-lhe uma outra existência. Leva-o para casa do Bach, e é na Alemanha que renasce um novo Pessoa. Ela inverte-lhe o nome, tira-lhe o ‘P’ e rebaptiza-o de Aossê. Escreveu sobre ele durante 30 anos, entre 1976 e 2006". Destes escritos, resultou o quinto volume do "Livro de Horas", com introdução e notas de Maria Etelvina Santos, 730 páginas numa escrita intrincada como um puzzle de várias peças.
 
A escrita plástica e visual de Maria Gabriela Llansol levou até si vários artistas e existem performances e documentários sobre trechos da sua vida, como "Ao Lugar de Herbais" (2013), uma curta-metragem de Daniel Ribeiro Duarte, ou "Curso de Silêncio", dois filmes baseados no universo imagético de Llansol, concebidos por Vera Mantero e Miguel Gonçalves Mendes para o Festival Temps d’Images. O mundo da autora esteve também na exposição "Sobreimpressões. Maria Gabriela Llansol: Uma visão da Europa", organizada no CCB em 2011.

Agora, a obra da escritora rebelde volta a ser revisitada no Ciclo Autor do Festival Silêncio, onde será estabelecido um diálogo entre o texto de Llansol e artistas como Rui Chafes, Pedro Proença, Ilda David, Duarte Belo e Teresa Huertas. Um festival que acontece entre 28 de Setembro e 1 de Outubro e abre a porta às várias portas da obra de Maria Gabriela Llansol.

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