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Vera Eiró: Se mandasse? “Criaria fiscais de resíduos”

Controlar e disciplinar a forma como as pessoas depositam os resíduos sólidos urbanos poderia seguir o que se fez com o estacionamento, criando uma espécie de “EMEL”, defende Vera Eiró.

13 de Dezembro de 2023 às 12:30
Pedro Catarino
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    Bilhete de identidade Idade: 45 anosCargo: CEO e Presidente da Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (ERSAR)Formação: Professora de Direito Público, Nova School of Law; Linklaters, advogada (2010 - 2020); Doutorada em Direito Público, Nova School of Law

    Tarifas demasiado baixas, que não garantem os custos de exploração e limitam o investimento de manutenção e modernização das redes de fornecimento de água, são um dos mais graves problemas deste setor para consumo humano. E a Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (ERSAR) pouco pode fazer além de sensibilizar os autarcas, porque o Orçamento do Estado de 2021 lhe retirou a competência de definir tais tarifas. "Se não atalharmos caminho vamos ter problemas", alerta a presidente da ERSAR, referindo-se às redes. Nos resíduos urbanos a situação é ainda mais problemática. "Estamos a ficar com um problema gravíssimo", afirma Vera Eiró, convidada das "Conversas com CEO", entrevistas integradas na iniciativa Negócios Sustentabilidade 20|30 aqui editada e que pode ser ouvida na íntegra em podcast. Há boas práticas, como a da Câmara da Maia, mas é preciso atuar também na alteração de comportamentos. Daí a proposta de criar fiscais de resíduos.

     

    Esteve num escritório de advogados por uma década. O que a fez escolher o serviço público?

    Sempre estive muito próxima das áreas do serviço público, enquanto especialista em direito administrativo que, em rigor, fala muito desta coisa de vivermos em comunidade e da organização do Estado. É importantíssimo sabermos viver em comunidade e termos instituições robustas que se relacionem da melhor forma possível com os cidadãos.

     

    Nós, cidadãos, chamamos a isso "direito da burocracia"?

    Às vezes é. Mas termos procedimentos, por vezes etiquetados como burocracia, reduz a incerteza, aumenta a transparência, ajuda-nos a perceber qual foi o caminho decisório das entidades públicas e porque é que decidiram de determinada forma. Percebo, e muitas vezes também me queixo da burocracia interna na ERSAR e externa do meu relacionamento com os serviços públicos, mas o lado negro dessa parte do nosso relacionamento com o Estado é menor do que o benefício que traz.

     

    Um dos temas que regula é a água, com a escassez a agravar-se em Portugal. Que contributos pode dar?

    Começo por discordar um pouco dos termos da pergunta.

     

    Não há escassez de água?

    Há escassez nalgumas zonas do país, em particular, no Algarve e Alentejo e também em Trás-os-Montes. São as zonas mais preocupantes. As alterações climáticas têm um impacto enorme na água, de excesso ou escassez, que nos deve levar a colocar a água no topo das prioridades. Mas não podemos assumir uma condição de escassez no país, que não temos. O que temos é um tema de gestão da água. A água tem de estar no topo das nossas prioridades.

     

    E quais são as prioridades?

    A ERSAR regula o abastecimento de água para consumo humano e o saneamento. E em Portugal, só 14% serve para consumo humano. O resto é para a agricultura e a indústria, que não é regulada pela ERSAR. Pensando numa perspetiva de futuro, vamos ter cada vez mais de olhar para a gestão da água sem ser partida em silos. Não estou a pedir competências nessa matéria. Faz sentido haver um regulador só da água para consumo humano, porque estamos perante serviços públicos essenciais, geridos sob a forma de monopólios. E o que procuramos é que o preço seja adequado, nem demasiado baixo, nem demasiado alto.

     

    O que ouvimos dizer é que o preço é demasiado baixo.

    O preço é demasiado baixo e isso é uma questão que poderia e era importante que fosse resolvida.

     

    Quem tem de resolver?

    O legislador. Já tivemos competências para determinar tarifários, mas na Lei do Orçamento para 2021 foi-nos retirada. Neste momento, as entidades gestoras dos serviços determinam o tarifário, na sequência de um parecer que é obrigatório, mas não é vinculativo, da ERSAR. Damos o parecer sobre se o tarifário garante o cumprimento da recomendação e se está a cobrir os custos do serviço.

     

    Qual tem sido o parecer?

    Na maioria das situações é desfavorável.

    Porque é que vos foi retirada essa competência?

    A gestão da água tem as suas particularidades e é muito difícil, por vezes, ter um diálogo, com as autarquias locais e levá-las a gerir esses serviços numa perspetiva técnica, para que existam hoje e amanhã. As autarquias quiseram manter essa capacidade para determinar o tarifário e foi essa a proposta que venceu.

     

    O Governo aceitou a pressão das autarquias. Esta decisão contribui mais ou menos para a sustentabilidade na área da água?

    Menos. A ideia de que a tarifa deve garantir, pelo menos, a cobertura dos custos de exploração dos serviços é um princípio internacionalmente reconhecido como essencial para garantir a sustentabilidade. Estou a falar da OCDE. Sofremos uma pressão muitas vezes injustificada em Portugal para que a tarifa seja mais baixa do que os custos reais do serviço. É um ponto muito negativo para a sustentabilidade e que claramente era uma das primeiras medidas que adotaria se pudesse. A tarifa deveria ser mais alta, mas ninguém pode ficar para trás.  

     

    Com a decisão nas mãos das autarquias não será mais difícil por causa eleitoralismo?

    Há autarquias que já têm aumentado os tarifários, tentando seguir as recomendações da ERSAR. O que digo aos senhores e senhoras autarcas é que reconduzam a responsabilidade à ERSAR. Digam que foi a ERSAR que determinou. Se não atalharmos caminho, vamos ter problemas nos nossos serviços. O maior problema [das baixas tarifas] é a manutenção das infraestruturas. A ERSAR desenvolveu indicadores económicos e de qualidade de serviço. Um dos parâmetros está relacionado com a manutenção das infraestruturas. E esse indicador é negativo. Estou a pensar sobretudo nas nossas redes. 

     

    Um dia destes recebemos o choque de a água não chegar a nossa casa?

    Espero que não. Hoje temos água na torneira quando queremos, a que queremos e com a qualidade que queremos. Desde 2015 que temos tido valores de qualidade da água na torneira de 99% nos nossos indicadores e é uma responsabilidade imensa.

     

    Qual é o montante de investimento que está em défice?

    O plano estratégico, em fase de aprovação, aponta para um investimento, até 2030, para garantir a evolução adequada do setor, à roda dos seis mil milhões de euros.

     

    Outro problema sob sua regulação: os resíduos. Estamos bastante abaixo da média europeia na economia circular e na gestão de resíduos e tínhamos objetivos de reciclagem para 2020 que não cumprimos. Estamos a ficar com um problema gravíssimo na área dos resíduos?

    Estamos a ficar com um problema gravíssimo. Estou a repetir a sua pergunta. Temos desafios muito grandes nas áreas dos resíduos. O desafio é a expressão moderna para problema. O grande desafio não devia ser dos resíduos, mas dos materiais que produzimos e consumimos. Porque o setor recebe aquilo que lhe dão. Temos mesmo de pensar nas soluções do lado do que se consome e do que se produz a nível de ecodesign, dos materiais que são utilizados. É possível melhorarmos e vamos ter de melhorar a gestão dos resíduos urbanos. Temos mesmo de diminuir drasticamente a quantidade de resíduos urbanos entregue em aterros, que estão a esgotar a sua capacidade. Mas não queria falar disso sem sublinhar que estamos no fim da linha. A linha é longa, é suposta ser circular, o início da linha tem de se juntar ao final e, por isso, a produção aqui tem um papel relevantíssimo.

    A verdade é que as pessoas não estão a separar [os resíduos] em casa.

    O que podia a produção fazer mais? Eles queixam-se imenso.

    Eu sei, toda a gente se queixa. Uma coisa que é dificílima de tratar na gestão de resíduos é todas as embalagens que misturam materiais, que têm etiqueta de papel colada ao plástico. Mas vamos agora então à pergunta. Nos resíduos, temos o tema do preço.

     

    Muito mais grave do que na água?

    Muito mais grave do que na água.

     

    Devíamos estar a pagar muito mais pelos resíduos?

    Sim. Mas nós não pagamos os resíduos tal como não pagamos água, pagamos o serviço de gestão de resíduos urbanos. E temos municípios que não têm sequer tarifa para a gestão de resíduos urbanos. Cobram tarifa zero. E isso faz com que o cidadão não valorize o serviço prestado. Outro problema é o preço estar indexado à fatura da água. Não há um incentivo a que as pessoas produzam menos resíduos. Nós incentivamos os municípios a implementarem o sistema PAYT – "Pay As You Throw", paga à medida que deposita. Mas é difícil de implementar, tem alguns custos. Temos bons exemplos, como o município da Maia, que tem já PAYT e com bastante sucesso.

     

    Não pode aplicar multas?

    Não temos um regime sancionatório. O único regime sancionatório que temos é na qualidade da água para consumo humano e, aí sim, aplicamos contraordenações.

     

    O que levará uma câmara a passar do zero para ‘paga o lixo que fazes’?

    O município tem um incentivo grande em implementar o PAYT, porque as pessoas vão separar mais e reduzir os resíduos indiferenciados. E isso seria bom para o município, que deixaria de pagar tanto aos sistemas em alta. A grande evolução que temos de ter é na diminuição dos indiferenciados. Os biorresíduos correspondem a 40% do que produzimos. Se os separarmos em casa, se forem recolhidos seletivamente e, depois, tratados, o composto orgânico pode ser utilizado para agricultura, por exemplo. Isso é um grande passo para a gestão de resíduos urbanos. 

    As pessoas separarem em casa é mais fácil. O mais difícil é as empresas e as autarquias começarem a preocupar-se com esse problema?

    Apesar de, na teoria, ser fácil, a as pessoas não estão a separar em casa. Ou então acham que estão a separar. No outro dia, fui a um sistema de triagem, porque gosto de ir ver a operação, e nas embalagens estava uma havaiana. A pessoa achou que era plástico. Na recolha seletiva temos esse problema.

    A prioridade [na água] é medir, medir, medir…

    Se mandasse qual a medida na água e nos resíduos que adotava com maior urgência?

    Na água determinaria a obrigatoriedade de medir e verificar o uso de toda a água em Portugal continental, independentemente de ser pública ou privada. A prioridade é medir, medir, medir… para depois partirmos para a ordenação dos usos e termos a visão global de uma só água, que é o que temos de ter.

     

    E nos resíduos?

    Nos resíduos é muito difícil, porque havia várias medidas importantes. Não vou sugerir uma medida legislativa porque não é pela lei que se alteram comportamentos. Mas se calhar criaria fiscais dos resíduos, para que houvesse controlo e disciplina sobre a forma como as pessoas depositam os resíduos sólidos urbanos. E a recolha seletiva começasse a ser feita mesmo nas nossas casas.  Como controlaram o estacionamento...

     

    Criar a ‘EMEL’ dos resíduos?

    Uma ‘EMEL’ dos resíduos. Não é nada popular. Já estou habituada a que a grande maioria das medidas que a ERSAR propõe não sejam populares. Tenho a certeza de que um dia alguém vai olhar para trás e perceber que as medidas impopulares que tentámos estabelecer foram essenciais.

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