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Miguel Araújo: “Se disseminarmos os veículos elétricos não temos capacidade para os abastecer”

A indústria automóvel europeia atrasou-se e está a ficar obsoleta e hoje a Europa tem um plano, mas que tem de ser posto em marcha com celeridade, afirma Miguel Araújo.

Helena Garrido | Miguel Baltazar - Fotografia 10 de Abril de 2024 às 12:30
Miguel Baltazar
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    Bilhete de identidade Idade: 42 anos
    Cargo: Diretor-geral, Mobinov - Cluster Automóvel Portugal (desde 2023); Diretor-geral na empresa Morangos - serviços de educação (2018-2021); Adjunto do ministro adjunto do Desenvolvimento Regional (2013-2015)
    Formação: Doutorando em Ciências da Administração, Universidade
    do Minho; Licenciatura em Relações Internacionais, Universidade do Minho

    Devíamos ter aqui uma fábrica de baterias, atrair mais investimento para a indústria automóvel e estamos a desperdiçar o potencial de possuirmos as maiores reservas de lítio da UE, oportunidades que estão a ser aproveitadas por outros países. Esta é uma das perspetivas do diretor-geral da Mobinov, convidado das “Conversas com CEO” integradas na iniciativa Negócios Sustentabilidade 20|30. Numa entrevista de mais de meia hora, que pode ser ouvida em podcast, Miguel Araújo considera que a atração de investimento estrangeiro tem de envolver o primeiro-ministro e defende que, na Operação Influencer, o novo Governo tem de ser capaz de “separar aquilo que é um projeto estruturante do que é a investigação”. Falamos ainda das iniciativas do cluster automóvel em Portugal, como o maior envolvimento na mobilidade e a participação em consórcios coma Airbus e Renault. O Hub Digital, financiado pelo PRR, está atrasado porque há regulamentos por publicar.

    Tem um percurso no poder local e central. O exercício da política é muito diferente?

    É diferente. O nível local tem a proximidade com as pessoas. Na escala nacional senti muito esse afastamento em relação à realidade. E por isso é que quem já passou pelo poder local tenderá a ser provavelmente melhor político a nível nacional. É uma aprendizagem que faz muita falta quando pensamos as políticas públicas a nível macro. É difícil escolher um, mas o mais bonito, e permitam-me usar esta palavra, é o poder local. Porventura, um desafio intelectual mais interessante poderá ser o nacional.

    Qual é o objetivo da Mobinov, Cluster Automóvel de Portugal?

    A Mobinov tem como visão promover de forma sustentável o crescimento, a internacionalização e a competitividade da indústria automóvel. Os fundos comunitários, particularmente o PRR, aceleraram a aposta estratégica na criação de redes que geram inovação e valor. Contacto com outros clusters europeus e Portugal tem potencialidades, conhecimento, capacidade de inovar que não ficam nada a dever às suas congéneres. Faço muita questão de evidenciar a importância de unir o que está disperso no contexto de uma indústria. Estas redes permitem gerar projetos ao nível da inovação. E estamos inseridos em vários que têm em vista gerar vantagens competitivas para as empresas.

    Quer falar de algum?

    Temos projetos, por exemplo, na reconversão dos materiais e dos componentes usados nos veículos a combustível para adequá-los a elétricos. Cerca de 30% dos materiais que são usados num veículo de combustível deixam de existir ou são substituídos num veículo elétrico. Os carros no futuro não são apenas elétricos, vão ser mais tecnológicos, mais conectados. O papel de um cluster é de perceção de tendências, que permite antecipar o que está ou poderá acontecer e sermos os ‘first movers’ em torno do que é a inovação.

     

    “Quem já passou pelo poder local tenderá a ser provavelmente melhor político a nível nacional.”



    Uma das tendências é a eletrificação da mobilidade. Como é que a podíamos aproveitar?

    Não podemos pensar no automóvel de forma isolada, mas sim numa perspetiva de mobilidade. E já estamos a fazer esse trabalho. Temos de perceber que o contexto citadino está a alterar-se profundamente. Cada vez mais falamos da ‘smart city’ e o comportamento dos utilizadores é e será completamente diferente. O carro tem de ser pensado numa perspetiva holística de mobilidade e de partilha de várias soluções. A eletrificação é o tema da indústria automóvel. As grandes marcas tendem a favorecer as baterias elétricas. Mas podem surgir novas tecnologias. O caminho está a ser acelerado por causa da pandemia, do conflito militar na Ucrânia e do israelo-árabe que pode escalar para outro patamar.

    Qual o desafio mais difícil de vencer nesta área da eletrificação?

    O primeiro é ganhar escala na produção destes veículos. Ainda não temos capacidade de produção de baterias suficiente, pelo menos na Europa. A Comissão Europeia tem um plano até 2030, mas há um longo caminho a percorrer. Há também o acesso democrático aos veículos elétricos. São muito mais caros. As novas gerações ou a classe média seriam as mais aptas a adquirir esses veículos, mas não conseguem ter capacidade.

    E como estão a ver a invasão dos carros chineses na Europa?

    Há uma imagem do início do século XX, em Nova Iorque, com uma rua repleta de charretes movidas a cavalo. Na altura os carros também eram inacessíveis. Foi o Sr. Henry Ford que resolveu o problema com o processo de produção em massa. Foi isso que a China conseguiu fazer com escala e antecipação.

    E nós o que é que estamos a fazer?

    A Europa despertou tarde para este problema e de uma forma muito enredada sob o ponto de vista dos regulamentos e das diretivas. Estamos num processo de reindustrialização que tem de andar de braço dado com a sustentabilidade ambiental, mas também com a económica e social. Não podemos dizer a determinados países, que têm um modelo de negócio sustentado em combustíveis fósseis, vamos lá acabar com isso e mudar de paradigma. A indústria automóvel é considerada a joia da coroa da Europa.

    E está a ficar obsoleta?

    Está a ficar obsoleta. E este batismo também pode ser dado à indústria automóvel portuguesa. O nosso cluster automóvel tem um volume de negócios de 16 mil milhões de euros e 99% são exportação.

    E com um extraordinário peso da Autoeuropa, não é?

    Com um extraordinário peso da Autoeuropa e que deveria ter sido também em bom tempo trabalhado para termos mais fabricação de carros em Portugal. Temos de criar condições para atrair investimento estrangeiro para a indústria automóvel. A Hungria tem já cinco fábricas como a Autoeuropa e conta com investimento direto estrangeiro, chinês. E Portugal tem de conseguir captar também estes investimentos.

    Como é que na Europa não conseguimos apanhar nenhuma destas carruagens?

    Provavelmente houve um erro de perceção de tendências. Não lideramos a carruagem, mas estamos a caminhar para recuperar espaço. Na indústria automóvel e nas baterias, a União Europeia tem de facto um plano. Agora tem de ser posto em marcha com celeridade, tal como em Portugal, com o equilíbrio entre as várias dimensões.

    Era fundamental termos aqui uma fábrica de baterias?
    É determinante. E não só para a indústria automóvel. As baterias elétricas vão estar em qualquer área de atividade. A eletrificação é transversal. Aparentemente temos das 10 maiores reservas de lítio do mundo e seguramente a maior da Europa. Temos um potencial que está a ser desperdiçado e aproveitado por outros países, como a Hungria, Eslovénia, Estónia e Roménia.

    Porque não estamos a atrair investimento para alavancar estas oportunidades?

    A dimensão internacional da indústria automóvel tem de ser feita ao mais alto nível, de primeiro-ministro. Na Hungria foi um trabalho diretamente de Viktor Orbán. E há uma outra dimensão. Temos aqui ao lado o segundo maior fabricante de carros da Europa, Espanha. Provavelmente temos de criar um ecossistema ibérico de indústria automóvel que permita criar escala e trabalho conjunto com Espanha. Temos muitas empresas a produzirem componentes para automóveis, eles têm a produção dos automóveis. Há sinergias que têm sido pensadas e trabalhadas por nós, mas que têm de ser aprofundadas.

     

    “Temos de criar condições para atrair investimento estrangeiro para a indústria automóvel.”



    Há em Portugal um estrangulamento, além do preço dos automóveis, que impede que se comprem mais carros elétricos?

    De facto, há aqui constrangimentos. Se disseminarmos os veículos elétricos não temos capacidade nem energia para os abastecer. Provavelmente vamos ter de começar a retirar os carros das grandes cidades ficando só os que prestam serviços. Ou a pessoa desloca-se até à entrada da cidade, deixa o seu carro e pega numa bicicleta ou trotinete elétrica. Somos o maior fabricante europeu de bicicletas, mas mais de 50% das peças são importadas da China. A indústria automóvel tem de saber integrar-se com as outras da mobilidade e se calhar já não vamos ter de importar tantas peças. Na Mobinov estamos a iniciar o caminho de nos integrarmos na mobilidade e criarmos sinergias com outras indústrias.

    Há projetos mais ou menos parados por causa da Operação Influencer. Era fundamental que tudo isto se desembrulhasse para se concretizarem?

    Muito rapidamente. É importante o novo Governo perceber que é preciso separar aquilo que é um projeto estruturante do que é uma investigação. Temos de ver isto para além de 2030. E este projeto tem de ser trabalhado de forma muito carinhosa e especial pelo Governo e à escala do primeiro-ministro.

    Em que ponto está o projeto Hub Digital, para acelerar a digitalização das empresas?

    É um projeto em que primeiro é feito um questionário para perceber a situação da empresa e as áreas de intervenção prioritárias. E depois há o caminho a fazer ao nível da cibersegurança, da introdução da inteligência artificial e da robotização. Esperávamos já estar no terreno. É um projeto PRR, mas que, lamentavelmente, ainda está no emaranhado administrativo. Porque ainda não saíram regulamentos que nos permitam pô-lo em marcha.

    Há o risco de se perder esse dinheiro?

    Espero que não. E estamos inseridos noutros projetos neste trabalho da transição digital e verde. Fomos provavelmente o primeiro cluster a apresentar um roteiro para a descarbonização da indústria automóvel, no final do ano passado, com medidas de mitigação e adaptação. E estamos a medir a pegada carbónica das empresas da indústria automóvel, para que possam intervir. Temos também um projeto europeu, envolvendo Portugal, Espanha e França. Nós representamos o automóvel e está também o cluster aeroespacial francês com a Airbus e a Renault, empresas que vão identificar um conjunto de necessidades e desafios na eficiência energética. O trabalho dos clusters é promover iniciativas para ideias de negócio ou startups com soluções para os problemas identificados por estas duas empresas. Este é um caminho que temos também de percorrer em Portugal.

    Isso tem acontecido em Portugal?

    Tem de ser aprofundado. Sou um grande defensor do intraempreendedorismo. Muitas vezes as empresas têm nos seus colaboradores a capacidade de criar negócios porque conhecem melhor do que ninguém os problemas. E essa será também uma possibilidade de retermos o talento.

    Vivemos mudanças geoestratégicas, com a Europa rodeada por duas guerras e num quadro de transição energético e digital. Onde deve estar focada a nossa atenção?

    A nossa atenção deve ser portuguesa e europeia. Hoje a energia é uma fonte de poder. E as outras potências tiveram uma estratégia de criar dependência energética nos países europeus. E nós deixámo-nos aprisionar. Temos de pensar numa estratégia a longo prazo para ter uma política energética autossustentável e independente na Europa. Não podemos ter só conhecimento e centros tecnológicos e a indústria fora da Europa. E a energia a baixo custo é fundamental porque é um fator de competitividade.

     

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