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Temos uma epidemia de obesidade que começa na infância e uma incidência de diabetes tipo 2, doença comportamental que alimenta muitas outras. E temos uma sociedade envelhecida com pouca saúde, um dos únicos indicadores em que Portugal compara mal. É perante este retrato que Maria de Belém Roseira alerta para a necessidade de atuar na prevenção. Convidada das "Conversas com CEO", entrevistas integradas no projeto Negócios Sustentabilidade 20|30, a ex-ministra da Saúde faz parte do júri do Prémio Nacional de Sustentabilidade. Durante mais de meia hora, que pode ser ouvida na íntegra em podcast, Maria de Belém fala dos problemas do SNS em Portugal e considera que é no ambiente que está o maior desafio global. E olha para a nova geração com esperança.
Qual foi o acontecimento mais marcante na sua carreira?
É difícil escolher. Mas há um com um significado especial: quando fui eleita presidente da Assembleia da Organização Mundial de Saúde, a única pessoa de Portugal até hoje. Tinham-me preparado uma intervenção. Só que aquilo não tinha a ver comigo. Fiz o meu próprio discurso e foi arrebatador. As pessoas aplaudiram de pé e representantes de variadíssimos países vieram felicitar-me. Não me lembro das frases [do discurso], mas aquele momento inspirou-me imenso, porque o "keynote speaker" dessa reunião foi o Amartya Sen, um economista-filósofo com uma obra muito vasta sobre a importância dos direitos humanos. Hoje sentimos é que há muita gente com palavras fantásticas, mas depois as ações não correspondem às palavras.
E qual é a personalidade que lhe vem logo à memória?
Várias. Em termos nacionais, temos muita falta de um D. João II, com uma visão global para o país. Uma pessoa muito importante na minha vida foi a engenheira Maria de Lurdes Pintassilgo. Também gostei muito de trabalhar com António Guterres que, além de uma superior inteligência, capta o que é absolutamente fulcral em cada momento. E depois, em termos de personalidades com as quais convivo e que são fascinantes, posso falar de Manuel Alegre, como poeta e como pessoa.
Nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, qual o que considera mais desafiante?
O ambiente, sem dúvida.
António Guterres referiu que estamos em colapso ambiental. Está consensualizado que temos um problema ambiental?
Está consensualizado que temos um problema ambiental, mas não estão consensualizadas as ações que têm de ser tomadas para resolver ou tentar minorar esse problema. E esse é que é o drama. Esta inconsciência no sentido de um individualismo é completamente contrária àquilo que permitiu o nosso aparecimento e o desenvolvimento da humanidade.
Estamos a caminho de uma geração mais participativa?
Sim, mais exigente e sobretudo uma geração que vê, diante dos seus olhos, que está em causa a sua sobrevivência.
Mas vemos cada vez menos jovens a quererem participar na atividade política. Onde é que vê os mais exigentes?
Não estou a falar dos que já estão a trabalhar. Tivemos uma geração que investiu muito no enriquecimento material e agora temos uma geração que começa a perceber que o consumo exagerado, que é mais vício do que satisfação de uma necessidade, tem um impacto negativo na sustentabilidade global. Os jovens começam a ter bastante noção disso e não querem viver desta maneira. Tivemos um modo de vida extrativo, delapidador de recursos e agora temos de ter um modo de vida regenerativo, que cure as feridas que essa mentalidade extrativa produziu a nível global.
Como é que avalia o que temos feito para garantir o acesso à saúde de qualidade? Há risco de retrocedermos na saúde?
O que acho – e isto pode ser a manifestação de uma profunda ignorância da minha parte – é que evoluímos muito em várias ciências e muito pouco na economia. É a obsessão do lucro. E quando tenho como único fito o lucro, normalmente mal distribuído, é evidente que tenho enormes problemas sociais que saem muito caro à comunidade em geral. Temos muito poucos que lucram, que normalmente levam vidas completamente vazias e não ajudam ninguém a sair das suas condicionantes, e depois temos uma multidão de deserdados. Já Adam Smith dizia que ninguém pode ser feliz se tiver uma grande riqueza e vir à sua volta só gente completamente deserdada. Mas esses princípios básicos da economia, enquanto instrumento do desenvolvimento social, têm-se perdido. Não aceito, por exemplo, que continuemos a ter escravatura. Quando vemos situações, mesmo em Portugal, de pessoas às quais são retirados os documentos, que vivem em condições infra-humanas, que são completamente espoliadas de tudo, até do seu amor próprio, da sua dignidade, isto não é aceitável.
Há aqui alguma saída? Por exemplo, em Portugal as desigualdades agravaram-se, a diferença entre o salário médio e o salário alto é enorme…
Não se agravaram só, agravaram-se de uma maneira absolutamente escabrosa. Quando vemos que a riqueza está tão assimetricamente distribuída é porque alguma coisa está mal. Do ponto de vista económico as coisas não evoluíram. Há pensadores que condenam isso. O Amartya Sen mas também Piketty ou outros Prémios Nobel da Economia.
E como é que se soluciona este desequilíbrio na economia?
Atribuo grande importância – pelo que pode influenciar nas mentalidades – àquelas reuniões nas grandes empresas nos EUA, considerando indispensável que as empresas tenham um propósito. Porque as empresas também devem o seu sucesso ao retorno que a sociedade dá. Temos de investir nessas ideias e nessa exigência.
Ou seja, esta ideia de converter o Desenvolvimento Sustentável em estratégias ambientais, sociais e de governação é fundamental para se humanizar o capitalismo ou para o salvar dele próprio?
Exatamente, para evitar todos os excessos que causam sofrimento, destruição e morte. Porque essa não é a nossa vocação.
O sistema tem condições para se autocorrigir ou estamos em risco de desequilíbrio?
Se olharmos para os novos equilíbrios geoestratégicos – que são novos desequilíbrios geoestratégicas – evidentemente que temos uma grande preocupação.
A correção será por colapso?
Poderá ser. Hoje estamos numa situação bastante mais perigosa, uma vez que temos o planeta em risco, coisa que nunca tinha acontecido até agora. E várias guerras. Estamos a criar riscos que estão para além da nossa capacidade de os controlar. Temos tido exemplos, como as novas pandemias que podem acontecer por causa destes desequilíbrios da biodiversidade. Teremos ainda muitas zonas verdes no planeta depois deste flagelo de incêndios em todos os continentes?
O que se passa com a Saúde?
São as consequências do mau planeamento e de falta de modernização administrativa na saúde. Se o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não incorpora a modernização, é muito difícil captar pessoas para aguentarem metodologias burocráticas, insensíveis e desajustadas. Neste momento, temos um problema grave em termos de recursos humanos, uma vez que a falta de planeamento não levou a que se formassem pessoas com as competências necessárias. E ainda por cima não tenho um quadro normativo que me permita atrair as pessoas e dar-lhes um projeto que seja interessante, galvanizador – porque a saúde é galvanizadora.
Aquilo que o Governo está agora a fazer é o caminho para se resolver esse problema?
É o caminho identificado como o mais viável, no sentido de garantir que as pessoas não andam perdidas no sistema, neste caso no SNS. Tomar conta delas na sua relação com os vários atores. E termos também capacidade de oferecer aos profissionais um projeto que os atraia.
Isso significa pagar melhor.
Não é só pagar melhor. É pagar de maneira inteligente e reconhecer.
Avalia positivamente o que tem vindo a ser desenvolvido pelo novo CEO do SNS?
O novo CEO tem várias qualidades que aprecio. Obra feita, inteligência, sensibilidade e humildade.
E tem ferramentas para fazer o que é preciso?
As ferramentas têm demorado a acontecer. Se quero ter uma estrutura, para gerir o SNS, autónoma e desligada dos títulos políticos, tenho de ter uma estrutura que tenha esse poder. Agora, dizer que tenho uma estrutura e depois não ter competências de planeamento, de gestão de recursos humanos e de gestão de recursos financeiros… não sei que CEO é este.
É um conjunto vazio?
Pois, com certeza. Atirou-se isto como se fosse uma grande coisa. Posso ir por esse modelo, para, de certa forma, desligar a saúde da querela partidária permanente. Sou defensora de um entendimento sobre a saúde bastante mais alargado, porque se tem de trabalhar durante muitos anos para se obter resultados. Não é uma coisa de uma legislatura, é quase de regime. Posso até concordar com a criação de uma figura dessa natureza [CEO do SNS], mas ela tem de ter os poderes.
Se fosse hoje ministra da Saúde, que medida adotava?
A medida que adotava de imediato era sentar-me com todos os representantes das organizações profissionais. Tenho de ter as pessoas motivadas. Estamos numa época muito exigente. Portugal é uma sociedade extraordinariamente envelhecida. E o envelhecimento das gerações que tiveram vidas muito duras transformam-se em doença. O grande desígnio nacional na saúde é melhorar a esperança de vida saudável a partir dos 65 anos. Se não atuo aí e continuo a gastar tudo a tratar doenças, não vou ter capacidade para introduzir inovação. E os portugueses também têm de ter o direito à inovação. Há gente que padece de doenças evitáveis e tenho de ser capaz de atuar aí. Tenho uma epidemia da obesidade que começa na infância, e que vai ser uma doença brutal. Tenho uma incidência de diabetes tipo 2, uma doença comportamental que alimenta muitas doenças complicadas e incapacitantes…
O que é que a preocupa mais do seu ponto de observação?
Estou a assistir a cada vez mais despesa e a cada vez mais incapacidade de resolver problemas básicos que já deviam ter sido resolvidos. O problema da saúde é que posso criar uma coisa agora, mas só traz resultados daqui a 15, 20 anos. Não posso estar sempre a desmanchar e a começar, independentemente de quem fez. Se tem uma boa avaliação, deve ser replicado, se tem uma má avaliação, abandona-se. O drama em Portugal é este: uma coisa pode ser mal avaliada e isso não tem importância nenhuma, continua a ser aplicada. Temos de mudar esta cultura comportamental.
Ministra para a Igualdade (1999-2000)
Ministra da Saúde (1995-99)
Formação: Licenciada em Direito, Universidade de Coimbra