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Bilhete de identidade Cargo: Investigadora Coordenadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; Coordenadora do OBSERVA - Observatório de Ambiente, Território e Sociedade; Colabora no Expresso, coluna "Qualidade Devida" desde 1990; Membro da Comissão Científica do Programa Doutoral em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável
Formação: Doutorada no ISCTE - UL
É absolutamente inaceitável que nuns sítios se estejam a demolir casas na frente de mar, enquanto noutros, como no Alentejo e Algarve, se continue a aprovar urbanizações em zona costeira, que sabemos que vai ser afetada pela subida do nível do mar, a erosão e os eventos extremos. Criando-se, ao mesmo tempo, uma noção de injustiça ambiental. Esta é uma das mensagens de Luísa Schmidt, a convidada de Conversas com CEO, do projeto Negócios Sustentabilidade 20|30 e cuja entrevista pode ser ouvida na íntegra em podcast. Investigadora coordenadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, membro do júri do Prémio Nacional de Sustentabilidade do Jornal de Negócios e uma das personalidades que há mais tempo se dedica às questões ambientais e de ordenamento do território, Luísa Schmidt alerta que se "a lei das zonas costeiras não mudar, somos nós, o Estado, que ainda vai indemnizar as pessoas que perderem a casa nesses sítios". Formação: Doutorada no ISCTE - UL
Na sua vida profissional, em que até antecipou o que estamos a viver, qual foi o desafio mais interessante?
Foi escrever sobre defesa do consumidor e perceber como a sociedade portuguesa sofreu mudanças rapidíssimas nos anos 90 [altura em que me interessei por estes temas]. Primeiro com a revolução [do 25 de Abril] e depois com a entrada na União Europeia, nos anos 80, entrámos na sociedade de consumo de forma muito rápida e criámos imensas externalidades [negativas]. Mudámos em 10 anos o que outras sociedades ocidentais fizeram em 30 e de repente, sem qualquer legislação ambiental. Tivemos um aumento exponencial dos resíduos por causa da entrada em força na sociedade de consumo. Também não havia legislação de ordenamento do território. Toda a gente construía o que queria e onde lhe apetecia. O desordenamento do território criou situações que ainda hoje sofremos.
As regras de ordenamento de território são hoje melhores?
Continua a ser o problema ambiental maior. O desordenamento, os seus impactos e a incapacidade de os planos criarem uma visão estratégica para o território continua a ser um dos grandes problemas. Agora, não tem comparação com a situação de 90. O problema é sempre a ausência de planeamento e ordenamento ou a fragilidade dos instrumentos. E depois a indústria da construção civil é uma das mais fortes em Portugal. Vai desde o pato-bravo ao banco, todos com interesses alinhados. Era preciso regras mais fortes. Basta olhar para a zona costeira em Portugal, a quantidade de urbanizações que se fizeram e que hoje criam problemas gravíssimos, por causa da subida do nível médio do mar e da erosão.
Mas hoje já há regras para que esses erros não se repitam?
Precisamos de ter políticas públicas muito mais preventivas do que é nossa tradição. Somos muito mais virados para as políticas curativas do que para as preventivas. Por exemplo, a transição energética tem de ser considerada ao nível de aumentar a nossa produção de eletricidade com renováveis, mas também temos de investir na eficiência energética com a melhoria das habitações. Há algumas políticas do Fundo Ambiental, mas não há uma política sistemática. Muitas vezes deveria ser levada a cabo até pelas próprias autarquias, para que os bairros se reconvertessem. Há um conjunto de políticas que continua a ser o parente pobre das políticas ambientais. E aí estamos outra vez a ser interferidos pelos interesses da construção civil articulados aos grandes interesses económicos. Podíamos ter muito mais políticas, mais generalizadas e mais atentas à necessidade de reconversão das habitações. E também ligada à questão da mobilidade. Desinvestimos completamente na ferrovia. É impressionante os quilómetros de ferrovia que nós pura e simplesmente deixámos de utilizar.
Já vimos que o curativo não está a correr muito bem. E o preventivo?
Ainda deixa a desejar. Há municípios que estão empenhados nisso, mas muitas vezes não têm poder para se opor, por exemplo, aos chamados PIN, projetos de Potencial Interesse Nacional.
Quer dar um exemplo de um município?
Por exemplo, Loulé, é um município exemplar. Ou Castelo de Vide. Há um ‘upgrade’ visível na qualidade dos autarcas. O presidente da câmara de Esposende vai agora demolir 100 casas na sua frente de mar. Conseguiu perceber que aquelas casas estavam condenadas, que poderia haver ali perdas de vidas humanas e também materiais. Conseguiu o envolvimento e o consenso das populações e da Agência Portuguesa do Ambiente, que também teve ali um papel importante. E tomar a decisão.
Mas o que falta exatamente?
A força do Ministério do Ambiente, que devia ser muito mais transversal a todos os outros ministérios, acaba por ainda não se fazer sentir. Temos medidas no sentido de melhorar uma série de coisas, mas depois temos outras, como o Simplex Ambiental, em que há coisas que fazem sentido e outras não. Por exemplo, reutilizamos menos de 2% de água tratada e continuamos a limpar ruas e a regar com água de consumo. Facilitar esse tipo de burocracias faz todo o sentido. Mas dispensar estudos de impacto ambiental em determinado tipo de instalações agropecuárias ou mesmo em 100 ha de energia solar… Não podemos agilizar determinados processos. E depois temos os projetos de potencial interesse nacional que quando vamos ver são sobretudo urbanizações, grandes projetos imobiliários que ultrapassam todas as regras. Isto não pode ser.
Qual seria a medida mais urgente nesta matéria do ordenamento do território?
Devíamos ter um planeamento ligado à conservação da natureza e da biodiversidade. Mas é preciso uma coisa básica, ter diretores de áreas protegidas. Outro tema absolutamente central é o ordenamento do território na zona costeira que devia ser drástico, no sentido em que vivemos em emergência climática. Portugal já perdeu 13 km quadrados de zona costeira. Temos o exemplo de Esposende, que está a demolir as casas na frente do mar, e depois, ao mesmo tempo, continuamos a aprovar no Alentejo e no Algarve urbanizações em zona costeira. Isto é absolutamente inaceitável.
Como consegue compreender que a Agência Portuguesa do Ambiente e outras entidades aprovem aqueles projetos no Alentejo?
Uma das coisas mais tóxicas no ordenamento do território são os chamados direitos adquiridos. Todas as ciências evoluem menos o direito. Muitos desses projetos aí planeados têm a ver com os chamados direitos adquiridos por vezes com 20 ou mais anos. Como é que podíamos resolver isto? Temos de criar a figura de emergência climática, em que os direitos adquiridos têm de ser repensados e recuados. Com a subida do nível médio de mar, a erosão costeira e com os eventos extremos já tivemos casas que foram abaixo e vamos continuar a ter. Mas continuamos a deixar construir nos mesmos sítios que já sabemos que vão ser afetados. Quem é que vai pagar isso? Se a lei das zonas costeiras não mudar, somos nós, o Estado, que ainda vai indemnizar as pessoas que perderem a casa nesses sítios. Isto não pode ser. Isto tem de ser resolvido.
Enquanto uns estão a ter de demolir, outros continuam a construir [na zona costeira]. Isto cria uma noção de injustiça ambiental ou climática.
Mas temos de acabar com os direitos adquiridos?Tem de ser resolvido juridicamente. Se calhar vão ter direito a indemnizações. Tem de haver um quadro jurídico novo, que não nos leve a cometer os mesmos erros e a criar injustiças. Enquanto uns estão a ter de demolir, outros continuam a construir. Isto cria uma noção de injustiça ambiental ou climática que é absolutamente nefasta na sociedade. Tal como não podemos deixar construir em cima dos leitos de cheia para não termos outra vez problemas. Tudo aquilo que é a REN, a reserva ecológica nacional, é demarcada em 83 por Ribeiro Telles justamente porque eram zonas de risco, de arriba, encostas, leitos de cheia e de erosão costeira. Mas não foi respeitado.
Tem alguma expectativa de que se venha a corrigir esta situação?...
…Com as novas gerações, que já estão muito mais sensibilizadas para este assunto. Até há maior sensibilidade dentro do Ministério do Ambiente para este tema, agora era preciso que outros assumissem também isto.
Quem são os outros?
Os ministérios das Finanças, da Economia… Estamos a falar em questões jurídicas, é sempre a última ciência a mudar. Mas temos de encarar isto seriamente para não deixarmos a herança gravíssima para as gerações futuras.
Preocupa-me a ansiedade climática nas novas gerações.
Interromper estradas é contraproducente.
Como é que tem visto as ações da Climaximo?Interromper estradas é contraproducente.
As ações da Climaximo criam visibilidade. Julgo que há aqui uma intenção de chegar aos media, que sabemos como é hoje difícil. Sou um bocadinho desfavorável a situações que criam ruturas. Interromper estradas é contraproducente, porque as pessoas que andam na Segunda Circular [em Lisboa] não são propriamente os donos dos jatos privados que andam aí a poluir de um lado para o outro. É preciso um certo cuidado. Sou muito atenta e muito apoiante das gerações mais novas. Tenho ido muito às escolas secundárias porque me convidam. Estou preocupada com a ansiedade climática nas novas gerações, porque ela já existe. Temos uma comissão de sustentabilidade na Universidade de Lisboa, a que pertenço, em que estamos atentos às associações de estudantes e a esta questão. É preciso que as escolas e as universidades assumam um papel prioritário. Nas escolas secundárias há jovens muito preocupados com o tema. E há outros que nem sequer querem ouvir falar no assunto. E isto cria até uma certa conflitualidade entre eles.
Há algum país, cidade ou até pessoa que seja para si uma referência?
Há vários países. E há várias pessoas. Ribeiro Telles foi importante, tal como Mariano Gago para a ciência. Temos carência dessas visões estratégicas e dessas pessoas que veem à frente do seu tempo, que tomam medidas, que são determinantes para o nosso futuro e que nos beneficiam. E há países que vemos sempre nos indicadores de desenvolvimento sustentável, como os nórdicos, com um estado social que funciona… Mas quero deixar uma nota positiva relativamente a Portugal que tem a ver com o projeto do ODS Local. Já trabalhamos com 117 municípios em Portugal que estão empenhados em melhorar os seus indicadores de desenvolvimento sustentável. Estes processos transformativos à escala local criam muita esperança, porque não é só o município em si e os seus técnicos, é também a sociedade civil local. Temos muitas luzinhas a brilhar no nosso país, que depois têm pouca visibilidade nos media ‘mainstream’.
Há uma mudança a acontecer de baixo para cima?
De baixo para cima e nesta plataforma ODS Local pode-se ver isso bem. São essas novas políticas de proximidade. Estes processos à escala local já se estão a manifestar e podem trazer esperança.
É a esperança da mudança?
A esperança é algo em que é sempre bom continuar a investir.