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O presidente executivo da Thingle era um comprador de equipamentos em segunda mão, de música e de cinema. E são estes "hobbies" que desencadeiam a ideia de criar uma plataforma que garantisse a qualidade de produtos ou equipamentos em segunda mão, que em geral são caros. É no dia em que compra uma máquina de filmar, que afinal não era o que anunciava, que expressa o desejo: que bom seria se houvesse um sítio onde comprar com confiança. E a partir daí começou a programar. João Pedro Neto é o convidado desta semana de "Conversas com CEO", entrevistas integradas no projeto Negócios Sustentabilidade 20|30. Durante cerca de meia hora, que pode ouvir-se na íntegra em podcast, conta como nasceu a ideia e como é que se distingue do muito que já existe nesta área.
Como consegue ter tempo para dois projetos, o trabalho na TAP e na Thingle?
Quem sofre acaba por ser a família, a mulher e os filhos. E dormir pouco, três a quatro horas. É preciso arranjar tempo para o trabalho, para a nova empresa e para a família. E não é fácil. Mas como a vontade é muita, tudo se faz. Esta ideia de criar a Thingle começou quase há quatro anos. Sempre adorei comprar produtos em segunda mão, desde logo porque tenho muitos interesses, como a música e o cinema. Como nestes mercados é tudo caro, procurava os produtos mais baratos em segunda mão.
O que o mobilizou primeiro foi o preço e não as preocupações ambientais?
Digamos que sim. Nestas aquisições fui tendo vários problemas. Comprar produtos em segunda mão é quase como uma roleta russa. Nunca sabemos o que está do outro lado. Por vezes corre bem e muitas vezes corre mal. E o risco vai aumentando com o preço. Se comprarmos uma peça de roupa por cinco euros, se não vier bem, pronto, foram cinco euros. Mas se quisermos comprar um telemóvel em segunda mão, o risco é muito maior. E muitos dos produtos que comprei não estavam como eram descritos.
Que tipo de produtos? Ligados à música? Faz música?
Sim. Tenho um pequeno estúdio em casa. Andei na Academia de Música de Santa Cecília dos 3 aos 18 anos. E houve uma compra, por exemplo, que me transmitiu a sensação de perigo. Tive de me encontrar com uma pessoa, que não conhecia de lado nenhum, com algum dinheiro no bolso, de noite, sozinho, num lugar que não era o mais apetecível. Correu tudo bem…
...Teve de se encontrar para verificar se o produto estava em condições? Porque podia receber pelo correio.
Pelo correio há sempre o risco de não estar em condições ou até de se receber uma caixa vazia. Há plataformas que permitem a devolução. Mas ficamos com o problema de provar que não se recebeu, ou que não correspondia ao que estava descrito. Apercebi-me que algo não estava bem neste modelo. Havia uma série de lacunas.
E foi o seu pior caso?
O que desencadeou o processo foi um caso por causa de um outro "hobby", relacionado com o cinema. Desde criança que na minha família se fazem filmes e vídeos caseiros e quis comprar uma câmara de cinema. Tinha de ser em segunda mão, porque as novas são caríssimas. Encontrei uma no eBay, nos EUA, a um bom preço. Vi a descrição e estava tudo impecável. Quando recebo a câmara, passado umas semanas, apercebi-me que o sensor não era o que estava descrito. Aí tinha duas hipóteses: devolvia, com a expectativa de um dia recuperar as taxas alfandegárias, ou ficava com ela. Acabei por me dar por vencido. Foi aí que tive a ideia. Lembro-me perfeitamente, estava na sala a pensar no que fazer, se devolvia ou não. E penso: ‘Que bom que seria se alguém verificasse se estes produtos estavam de facto em condições’. E penso, porque não criar isso? Mas a ideia parecia parva. Como é que ia arranjar um processo de verificação? Mas fui maturando a ideia. E comecei logo a pôr mãos à obra, a programar… Devia ter 11 anos quando descobri programação através do meu pai.
Mas lembrou-se que ia entrar num lago de tubarões, há o eBay, a Amazon… em Portugal a OLX e a Vinted?
Toda a gente me disse isso. Mas nós queríamos que o processo fosse todo diferente. A ideia da Thingle nasce da lacuna das plataformas de venda em segunda mão. O que nos apercebemos foi que todas as plataformas se salvaguardavam a si próprias e nunca os consumidores. E quando avançámos com a Thingle partimos sempre de duas bases. Uma foi construir a plataforma do ponto de vista do consumidor, para que fosse o mais cómodo possível, para quem vende e para quem compra. E a segunda pedra basilar era a sustentabilidade. E todos os processos que fomos desenvolvendo tinham de ter estas duas características.
Sustentabilidade, em que sentido?
Antes de o produto ser entregue ao comprador, é enviado para um parceiro que o avalia e confirma se está de acordo com o que foi descrito e só depois é entregue. Existem dois movimentos de transporte. Inicialmente pensamos, ‘não, isto não pode ser’. Por causa da pegada. Quase descartamos inicialmente esta ideia.
Mas a vossa diferenciação é a garantia de qualidade do produto em segunda mão?
Exato. O vendedor regista-se, tal como nas outras plataformas, insere o seu produto, tirando as melhores fotografias, fazendo a descrição e uma autoavaliação. Nós fazemos uma pré-validação e atribuímos o parceiro que fará a avaliação. Quando o produto é vendido, é recolhido na casa do vendedor e entregue no parceiro que confirma se tudo está de acordo com a descrição, limpa e testa. E se estiver tudo bem, segue para o comprador. Se não estiver – e aqui também é algo que nos distingue da concorrência – o produto pode ser reparado. Entramos aqui numa economia circular, porque o produto volta a entrar no mercado. E é sempre da responsabilidade do comprador que tem três hipótese: aceita o produto como está, desiste de comprar ou opta pela reparação. E é ele que paga.
É uma plataforma mais cara. Como é que garantem a rentabilidade?
Por cada venda, a Thingle recebe uma comissão de 6%. O comprador paga o produto, a avaliação e o transporte.
E esse serviço é valorizado ao ponto de se estar disposto a pagar por ele?
Sim. Está a superar claramente as nossas expectativas. Embora tenhamos começado há um ano, lançamos de facto a plataforma no início de outubro e temos estado a divulgar de forma muito calma. Temos já milhares de utilizadores a visitarem a página, centenas de pessoas que já se inscreveram. E também nos procuram para serem nossos parceiros. Abrimos também mais dois modelos de negócio, um da parte de validação e outro também de venda. Há muitas empresas interessadas em fazer vendas de produtos em segunda mão. Temos vindo sempre a ajustar a plataforma em função da procura. O nosso objetivo é tão rapidamente quanto possível fazer a internacionalização da plataforma.
E por isso é que tem um nome ‘estrangeiro’?
Exatamente [risos]. É uma palavra inventada por nós, que tem origem na expressão "single things" [coisas únicas]. Porque todos os produtos em segunda mão são únicos.
Quando se lançaram não pensaram que era um projeto amigo da sustentabilidade?
Inicialmente pensávamos que teria uma pegada enorme por causa dos dois transportes, de e para o parceiro que ia verificar o produto. E fomos avaliar. Começamos por comparar a pegada de carbono de um telemóvel em segunda mão com um novo. E concluímos que a pegada de carbono dos dois transportes era irrisória face ao que se poupa por comprar o produto em segunda mão. Cerca de 80% da pegada de um produto vem da extração do material e da produção. O restante é o transporte, a utilização e a reciclagem.
Poupa-se 80% em CO2 se comprarmos um telemóvel em segunda mão?
Acaba até por ser superior a esses 80% porque os transportes dos novos são longos, em geral vêm da China para a Europa… A poupança de emissões, mesmo com dois transportes é largamente superior. E concluímos que fazia sentido seguir este caminho. E quem comprar ou vender um produto na Thingle conhece a sua poupança de CO2. Isto foi muito complexo. Porque pensávamos que íamos ao Google e encontrávamos a pegada de cada produto novo. Mas isso não existia [risos]. Há alguns estudos, mas em geral por categorias. Então começámos a fazer esse trabalho que continua em progresso.
São vocês que avaliam a pegada do produto novo?
Exatamente. Depois inserimos numa base de dados e, por via do modelo que construímos, é feito o cálculo da poupança de CO2 por comprar o mesmo produto em segunda mão. Criámos também uma página em que cada um pode ver a poupança que fez ao longo do tempo. A comprar e a vender, porque a poupança é para quem compra, mas também para quem vende. Muitas vezes ouvimos falar da importância da economia circular, mas não tinha a noção da grandeza de valor. Quando começamos a ver os primeiros valores, estávamos a falar em quilos, 50 ou 600 kg. Isto é surreal. Podíamos fazer várias viagens entre Lisboa e o Porto que continuava a compensar.
Com esses dados, têm outro serviço que podem prestar paralelamente.
Exatamente. Não sei se será um serviço. Ainda vamos ter de falar internamente e se calhar não devia dizer isto. Mas uma das coisas que gostava muito era que partilhássemos estes dados [de pegada de CO2 dos produtos] livremente, mesmo com outras empresas que queiram fazer o mesmo.
Quando é que se vai sentir seguro para largar a TAP?
[risos] Espero que ninguém na TAP me esteja a ouvir neste momento.
Mas não é esse o seu objetivo?
Não devia dizer isso, mas claro que sim. Isto é quase como uma criança que que nasceu e que é preciso tomar conta. Já comentei isso lá em casa, que está a ficar muito complicado esta gestão de dois empregos. Não é fácil. A vontade é muita e consigo sempre dar vazão a um e a outro. Mas vamos ver como se desenvolve a Thingle. Está a correr melhor do que estávamos à espera. E não começamos ainda com qualquer tipo de publicidade, porque queremos dar um passo de cada vez e garantir que está tudo a funcionar. Já recebemos alguns fundos do PT 2030 que nos permitem também respirar um pouco em termos financeiros. Temos de garantir que a Thingle tem sustentabilidade financeira para depois tomar uma decisão.
Como vê a Thingle daqui a cinco anos?
Espero estar pelo menos em alguns países da Europa. Temos a expectativa de ir para Espanha, França, Luxemburgo e Alemanha. Quando estivemos na Web Summit muitos alemães adoraram a ideia. Só que para irmos para a Alemanha temos de arranjar parceiros ali. O que nos parece mais óbvio é Espanha, até porque se não tivermos lá algum parceiro, a avaliação pode ser feita em Portugal. E depois irmos avançando país a país como no jogo do risco.