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Infância condiciona futuro profissional

A escolaridade em Portugal é obrigatória até ao 12.º ano. Mas isso não significa que todas as crianças tenham as mesmas oportunidades. Porque nem todas partem do mesmo ponto de partida. E isso condiciona o seu percurso educacional e profissional.

14 de Setembro de 2022 às 12:30
Alunos com mães licenciadas têm mais probabilidade de suceder nos estudos, revelam estudos.
Alunos com mães licenciadas têm mais probabilidade de suceder nos estudos, revelam estudos. Sydney Bourne/Getty Images
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As crianças são os adultos de amanhã. Isso significa que as devemos proteger, acarinhar e dar-lhes as melhores condições possíveis para que "floresçam". Isto no mundo ideal. Que não existe. A verdade é que cada criança é criada na sua própria envolvente e que cada uma tem realidades que condicionam a sua prestação escolar e, com isso, o seu futuro.

"Portugal é dos países da OCDE onde o contexto socioeconómico das crianças mais condiciona o seu sucesso escolar", afirma Catarina Ferreira, gestora de marketing e comunicação da Teach For Portugal, que acrescenta que no nosso país a escolaridade das mães está diretamente correlacionada com o sucesso académico dos seus filhos.

Os estudos indicam que a probabilidade de uma criança cuja mãe completou o 9.º ano ter sucesso escolar, ou seja, ter positiva a Português e Matemática no 9.º ano e nunca ter reprovado, é de apenas 31%. Já se a mãe tiver uma licenciatura, essa probabilidade é de 71%.

A taxa de reprovação entre os alunos de comunidades desfavorecidas é de 52%. Catarina Ferreira
Gestora de marketing da Teach For Portugal 
Imagine o seguinte cenário. Um grupo de crianças alinhadas junto a uma linha que dão um passo em frente quando confrontadas com questões como "dê um passo em frente se a sua família nunca teve de se preocupar com ter dinheiro suficiente para comer", "dê um passo em frente se os seus pais não têm a escolaridade suficiente"... e assim por diante. Onde antes se via um grupo de crianças alinhadas há uma transformação por completo, com algumas, nitidamente, a ficarem para trás. É esta a realidade que existe nas nossas escolas. "Ao longo do percurso escolar, a taxa de reprovação entre os alunos de comunidades desfavorecidas é de 52%, cinco vezes superior à dos colegas de um contexto social mais favorecido", constata Catarina Ferreira.

Joaquim Ramos Pinto, presidente da Associação Portuguesa de Educação Ambiental (ASPEA), acrescenta que com as desigualdades na infância a sociedade corre o risco de se tornar cada vez mais desigual condicionando o percurso escolar das crianças e o percurso profissional dos jovens e adultos, acentuando-se cada vez mais as diferenças, sejam elas de origens étnicas, linguísticas, religiosas, culturais, económicas etc., que, por sua vez, agravará mais ainda as desigualdades socioeconómicas, contribuindo para mais grupos em risco de exclusão e o aumento da marginalidade social.

O problema prende-se com o facto de esta não ser uma situação pontual e ter consequências que se prolongam no tempo. "Estes problemas afetam diretamente a qualidade de vida das comunidades e as condições ambientais dos espaços onde se inserem agravando, por sua vez, as relações de vizinhança. Aumentando também a desigualdade na infância", afirma Joaquim Ramos Pinto.

Já Catarina Ferreira explica que o contexto socioeconómico de uma criança determina o sucesso académico que esta irá ter, o que por sua vez condiciona as suas escolhas profissionais e a remuneração.

Um problema sistémico

Poder-se-ia pensar que, uma vez identificado o problema, seria fácil adotar uma solução. Mas não. A desigualdade educativa é um problema sistémico e, como tal, tem múltiplas causas e consequências. Sendo uma delas, aponta Joaquim Ramos Pinto, o absentismo escolar, porque "muitas vezes, essas crianças não acreditam que são capazes de conseguir os objetivos e prosseguir os seus estudos como as ‘outras’ crianças".

É importante que ao conceito de educação esteja subjacente o conceito de igualdade de oportunidades. Joaquim Ramos Pinto
Presidente da ASPEA 
O presidente da ASPEA acrescenta ainda que muitas vezes se verifica um esforço acrescido das famílias com rendimentos mais baixos a terem de procurar trabalho em vários locais e mais horas diárias deixando de ter tempo para acompanhar os seus filhos ou educandos e outras vezes terem mesmo de gastar as suas poupanças levando ao endividamento familiar. E é por isso mesmo que "é importante reforçar para que ao conceito de educação lhe esteja subjacente o conceito de igualdade de oportunidades, tendo em conta que não se tem dado suficiente atenção à diversidade cultural e persistem, na sociedade contemporânea, as desigualdades sociais a nível dos diferentes contextos socioculturais onde se incluem os grupos socialmente desfavorecidos e as minorias étnicas passando estes a grupos invisíveis com muito pouca atenção de parte de setores da sociedade, assim como de parte de decisores políticos".

A solução, para o executivo, passa pela criação de espaços de comunicação e convivência democrática onde se potencie a cidadania, o respeito pela diversidade e pelas minorias, se discutam alternativas e se tomem decisões sobre compromissos e ações que atuem a favor de sociedades ambientalmente responsáveis e socialmente justas.

Já Catarina Ferreira considera que, dada a complexidade do problema, se deve pensar a dois tempos: a longo prazo, como combatemos as causas do problema; e a curto prazo, como minimizamos o impacto negativo nas crianças que já estão a ser afetadas pela desigualdade educativa, tendo à sua disposição um conjunto de recursos adicionais para garantir que têm iguais oportunidades de desenvolvimento. "Reduzir a desigualdade de oportunidades é algo que só se começa a notar no médio prazo e, para isso, é importante perceber como atuar agora para provocar esse impacto", constata, acrescentando que a intervenção para reduzir as desigualdades educativas não pode passar apenas pelo contexto escolar e pela política pública de educação. "Passa também por, por exemplo, enquanto empresa privada ser responsável pelas condições dos seus profissionais, apostando na sua formação ao longo da vida ou tendo recursos disponíveis para os filhos dos colaboradores que estes não possam garantir, ou mesmo investirem na educação nas regiões onde se encontram", afirma.

Sem esquecer um outro lado: o de implementar medidas que diminuam a dependência dos resultados académicos do contexto socioeconómico, isto é, que sejam mais promotoras da mobilidade social. Um exemplo? A "maior mistura de alunos de diferentes comunidades e origens socioeconómicas; o sistema de avaliação dos alunos ter também em conta o progresso além do resultado; a seleção e formação de profissionais motivados para trabalharem em contexto educativo e em particular em comunidades desfavorecidas; ou a alocação de recursos humanos suficientes".

Face a tudo isto, Catarina Ferreira defende que, a curto prazo, se devam alocar recursos humanos adicionais a escolas que servem comunidades desfavorecidas (sejam professores, psicólogos, educadores sociais, mediadores interculturais, entre outros); investir na qualidade da formação especializada para trabalhar neste tipo de contextos; e apostar no acompanhamento a estes professores que trabalham em circunstâncias particularmente difíceis. E dá o caso da instituição para a qual trabalha, a Teach For Portugal, que seleciona e contrata profissionais para trabalharem em escolas que servem comunidades desfavorecidas.

Pensando um pouco mais longe, também na educação ambiental, Joaquim Ramos Pinto afirma que "se a educação tem como finalidade contribuir para o exercício da cidadania e para o espírito crítico dos cidadãos, dando-lhes a possibilidade de melhorarem a sua qualidade de vida, é importante que os currículos e programas educativos se enquadrem em marcos estratégicos integrais devendo contemplar a dimensão ambiental e educativo-ambiental como um dos seus principais eixos transversais". E lembra que a UNESCO tem vindo a alertar para o papel da educação, não como um fim em si mesmo, mas como um meio para alcançar um futuro ambientalmente responsável, social e economicamente justo.

No caso concreto de Portugal, o presidente da ASPEA lembra que, ao nível do poder central, há documentos de referência que nos ajudarão a responder a alguns dos desafios para a igualdade na infância e a sua relação com o ambiente. E dá exemplos: a Estratégia Nacional de Educação Ambiental, o Referencial da Educação Ambiental para a Sustentabilidade e a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, que podem vir a ser utilizadas em contextos diversos e que envolvam organismos públicos, escolas e sociedade civil.

Aqui, as escolas têm um papel essencial. Estas devem ser pensadas como "um lugar privilegiado onde se podem promover e experimentar estratégias que tenham, em si mesmas, um extraordinário valor educativo para viver de acordo com os princípios de sustentabilidade, defendendo os direitos das crianças, a inclusão de todos os atores da comunidade, incluindo as minorias étnicas e/ou grupos invisíveis, conjugando com políticas de igualdade na infância".

"Antes da pandemia, Portugal estava num caminho de progresso para atenuar as desigualdades e melhorar os resultados académicos, conforme demonstrado nos resultados no PISA." É desta forma que Catarina Ferreira avalia a prestação nacional. A pandemia, acrescenta, trouxe um retrocesso, no entanto, "há poucos dados publicados que permitam concluir com exatidão o estado da situação", acrescentando que "da experiência da Teach For Portugal no terreno, ao longo dos últimos três anos letivos, percebemos que o contexto da pandemia agravou as desigualdades já sentidas".
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