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Fogo põe à prova sustentável leveza de ser do mercado de Kantamanto

Um dos maiores mercados de roupa em segunda mão do mundo, em Acra, tenta renascer das cinzas depois de um incêndio ter desencadeado uma crise num ecossistema que promove a economia circular, enquanto serve de escape para os excessos da produção alimentados pelo consumo em massa.

29 de Janeiro de 2025 às 13:30
Pelo mercado de Kantamanto passam todas as semanas 15 milhões de peças de vestuário usadas. Julius Tornyi
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Foto em cima: Pelo mercado de Kantamanto passam todas as semanas 15 milhões de peças de vestuário usadas.

À entrada de 2025, um fogo tomou conta de Kantamanto, um dos maiores mercados de roupa em segunda mão do mundo, localizado na capital do Gana, por onde passam, todas as semanas, 15 milhões de peças de vestuário usadas, procedentes do Reino Unido, China ou União Europeia, transformadas por um universo de 30 mil pessoas que, todos os meses, voltam a colocar em circulação 25 milhões de artigos. Mas as chamas arrasaram milhares de barracas e afetaram pelo menos um terço daqueles que ali encontram uma forma de subsistência pondo à prova um ecossistema que tenta ser sustentável a partir do insustentável.

Esta comunidade está a contribuir mais para a circularidade do que qualquer empresa no Norte Global.Liz Ricketts
Cofundadora e diretora executiva da The Or Foundation

"Conhecer o mercado de Kantamanto é compreender duas verdades: se, por um lado, é o recetor final de uma indústria global da moda que é linear, por outro, é também o ecossistema de retalho mais sustentável do mundo", diz Liz Ricketts, cofundadora e diretora executiva da The Or Foundation, uma organização sem fins lucrativos que opera nos EUA e no Gana desde 2011, em declarações ao Negócios. E explica porquê: "A comunidade dá uma segunda vida a roupa em segunda mão que outros países viam como lixo através de reparações, reutilização, alterações e reciclagem" pelo que "o conjunto de competências e a cultura desta comunidade está a contribuir mais para a circularidade do que qualquer empresa no Norte Global".

"Kantamanto é o futuro da moda e as suas pessoas os heróis anónimos de uma indústria global que em vez de serem ignorados por ela merecem ser apoiados e estimulados. Sem eles, o panorama da moda entraria em colapso e, agora, como resultado do incêndio, toda a indústria global de artigos em segunda mão será afetada", assevera a dirigente da organização que tem como missão de "identificar e manifestar alternativas ao modelo dominante da moda que tragam prosperidade ecológica, em oposição à destruição, e que inspirem os cidadãos a formar uma relação com a moda que se estenda além do seu papel de consumidor".

A The Or Foundation diz que, até 8 de janeiro, tinha confirmado a destruição de 8.890 bancas e que "seguramente mais de 10 mil foram impactadas", entre vendedores, alfaiates, recicladores, operadores de bancas de armazenamento, seguranças ou mulheres que trabalham como "kayayei" (carregadoras-chefes). "Os seus meios de subsistência foram reduzidos a cinzas", sendo que "muitos vendedores contraíram empréstimos para comprar fardos de roupa agora destruídos" e outros tantos "não têm poupanças para se manterem à tona", realça Liz Ricketts, indicando que "menos de 20% faz lucro a partir de um fardo", cujo custo varia consoante a origem e o tipo de materiais, mas anda, em média, na casa dos 200 dólares.

"Presentes envenenados" carregam aterros

Segundo estatísticas da OCDE, o Gana importou, em 2022, roupa usada avaliada em 164 milhões de dólares, com o Reino Unido e a China a responderem por quase dois terços (64,2%) do total. Como terceiro maior exportador surge a União Europeia, com os Países Baixos, a Polónia e a Alemanha na dianteira, sendo que no caso de Portugal, refere a mesma responsável, é comum que os produtos sejam agregados aos de outros países como a Alemanha antes de serem reexportados. Um relatório da Greenpeace, denominado "presentes envenenados", denuncia que frequentemente os resíduos têxteis são "disfarçados" de vestuário em segunda mão e exportados do Norte Global para o Sul Global para evitarem a responsabilidade e o custo de lidarem com o problema da roupa descartada, com quase metade ir parar diretamente a aterros ou aos rios ou a acabar queimada a céu aberto.

Embora muitas pessoas no Norte Global possam não conhecer, Kantamanto tem sido uma válvula de escape conveniente para os seus excessos.Liz Ricketts
Cofundadora e diretora executiva da The Or Foundation

Com efeito, há uma diferença entre o que entra e o que sai de Kantamanto, dado que 15 milhões de peças por semana dão 60 milhões por mês período durante o qual "apenas" 25 milhões são novamente postas em circulação. A diretora executiva da The Or Foundation atesta que "perto de 40% das peças acabam por abandonar o mercado como lixo", explicando que "o fator mais crítiaco é a existência de muita roupa e muita roupa de baixa qualidade", o que faz com que "o seu valor seja inferior aos custos operacionais necessários para as revender, reparar ou reciclar". No entanto, ressalva, "só entre 4 e 6% de um fardo médio de roupa é considerado imediatamente lixo". "A distinção entre o que chega ao mercado como resíduo e o que acaba por sair como resíduo é essencial para garantir que políticas como a Responsabilidade Alargada do Produtor, que tem um potencial significativo para catalisar uma transição, liderada pela justiça, de uma economia linear para uma economia circular, apoiam soluções". Neste sentido, sustenta, "melhores práticas de triagem nos países exportadores não vão resolver o problema", já que "a maioria da roupa já foi triada e classificada como vestível ou reutilizável". "Regular o comércio de segunda mão sem regular em primeiro lugar a produção não é solução", vinca.

"Fast fashion" baixou qualidade

Liz Ricketts afirma que "Kantamanto tem uma taxa de vendas impressionante, muito mais elevada do que a de instituições de caridade ou plataformas de revenda do Norte Global, mas não é uma utopia de retalho onde cada peça de roupa passível de ser usada é realmente vendida e reutilizada", até porque "a ‘fast fashion’ reduziu a qualidade geral das roupas que chegam a Kantamanto" e "os gastos comerciais ultrapassam o valor do produto deixando os retalhistas sem o lucro que antes teriam investido na reabilitação de artigos de segunda e terceira seleção através de tingimento, reparação, redimensionamento e redesenho, entre outras, resultando em ‘stock’ não vendido". "Precisamos de ter uma visão crítica e holística da cultura de descartabilidade do Norte Global. Embora muitas pessoas no Norte Global possam não conhecer, Kantamanto tem sido uma válvula de escape conveniente para os seus excessos", sublinha.

A ‘fast fashion’ reduziu a qualidade geral das roupas que chegam a Kantamanto.Liz Ricketts
Cofundadora e diretora executiva da The Or Foundation

"É na origem que se condiciona o processo, pelo que é na origem que se devem exercer todos os princípios da sustentabilidade", sublinha o diretor da Zero Desperdício, que opera na área da circularidade têxtil, parceira da The Or Foundation na divulgação na União Europeia da campanha "Speak Volumes", que "pede às pessoas que contem as peças de roupa que têm no armário confrontando-as em permanência com o que usam, com o objetivo de criar uma maior consciência no consumidor e de diminuir a compra".

Perante a crise em Acra, explica António Peres, a Zero Desperdício "tem apelado à capacidade mobilizadora" de governos, empresas e instituições ligadas à moda para ajudar "a manter a cultura de reutilização de que Kantamanto foi pioneira ao longo de décadas", dado que, apesar de a organização que trabalha ao serviço de Kantamanto ter anunciado um financiamento inicial de um milhão de dólares para ajuda de emergência, "muito mais será necessário".

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