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Carlos Mendes Gonçalves: “Não há nenhuma sociedade que se desenvolva com salários baixos”

Produzir mais matérias-primas de que precisam é uma das respostas da Paladin ao choque da guerra na Ucrânia, mas também pela sustentabilidade e “pelas nossas pessoas”, defende Carlos Mendes Gonçalves.

03 de Abril de 2024 às 12:30
Bruno Colaço
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    Bilhete de identidade Idade: 57 anos
    Cargo: Casa Mendes Gonçalves, administrador desde 1982
    Formação: Gestão e Liderança para PME Líder, Universidade Católica; 12.º ano de escolaridade 

    Porque não conseguimos ter salários mais altos? Porque não queremos, a sociedade em geral, o Governo, responde o administrador da Casa Mendes Gonçalves conhecida especialmente pela sua marca Paladin. Os impostos são um dos problemas que identifica. Convidado desta semana da "Conversas com CEO" integradas na iniciativa Negócios Sustentabilidade 20|30 numa entrevista que pode ser ouvida na íntegra em podcast, Carlos Gonçalves fala-nos de como começou a trabalhar ainda adolescente para ajudar a família a ultrapassar os tempos difíceis que enfrentava e, por isso, não conseguiu continuar a estudar. Hoje quer construir uma escola na Golegã, para todos, e tem um projeto de agricultura regenerativa que passa por fomentar a produção das matérias-primas de que o grupo precisa e pela sua estratégia ambiental e social. Ao longo da conversa quem trabalha consigo é tratado por "colega" e na sua perspetiva as empresas familiares, como a sua, têm a oportunidade de pensar a prazo e a responsabilidade de trabalharem na sua terra com a sua gente.

     

    O que é um CEO do sonho e da instabilidade, como se apresenta?

    O que faço é sonhar o futuro, na medida das minhas possibilidades e consoante o que se me abre à frente. E provocar a instabilidade boa, para podermos ter o desenvolvimento que temos tido de inovação e evolução. É um pouco uma brincadeira, mas também muito séria, procurando refletir aquilo que faço todos os dias na empresa. Começou adolescente a trabalhar com o seu pai, a fazer vinagre de figo. Foi o que o impediu de continuar a estudar? Foi. Portugal era em 1982 completamente diferente. Havia alguma urgência e não pude estudar. Mas é algo que não procuro valorizar porque fez-me falta, e continua a fazer. Procuro hoje aprender todos os dias, muito com os meus colegas e procurando formações naquilo que é importante para a atividade que desenvolvo na empresa.

     

    O seu sucesso pode levar alguns jovens a pensarem que não é preciso uma licenciatura?

    É preciso uma licenciatura. Tinha 15 anos e o meu pai, com 60, tinha um cancro e não sabíamos se havia muito tempo. A licenciatura faz falta e deve-se fazer.

     

    E quando nasceu a ideia de expandir o negócio?

    Fazíamos vinagre de figo por algo que nos marca muito: ainda hoje temos pavor de ser mais um. O figo é de Torres Novas, está ali ao lado [da Golegã]. E durante muitos anos produzimos vinagre, inovando, em produtos e embalagens. Entretanto apareceram os supermercados em Portugal...

     

    Muitas empresas morreram com as grandes cadeias de distribuição. Conseguiu resistir às ilusões de compra de grandes quantidades e pagamentos a prazo?

    Mais do que resistir adaptámo-nos que é a nossa forma de estar: procurar descobrir e chegar antes ao que vai ser o futuro e estarmos preparados para ele. Isso hoje é determinante, num mundo que muda todos os dias. Estivemos na primeira linha a fazer as marcas deles e a valorizar as nossas. Tínhamos 20 ou 30 vinagres diferentes. E para continuar a crescer precisávamos diversificar e assim aparecerem os molhos. Seis meses depois de termos a nossa fábrica de molhos começámos a produzir a Paladin, que veio para Portugal pelas mãos de uma multinacional e nós comprámo-la. A Paladin era apenas uma referência de mostarda vendida nas roulottes, tipicamente nos jogos de futebol. E transformámo-la no na nossa marca de inovação e de internacionalização, transportando muito daquilo que somos, a inovação, a irreverência.

     

    Como estão a tentar resolver o vosso problema do plástico?

    O plástico é um problema, mas o maior problema somos nós. É uma invenção tremenda, que está em muitos dos aparelhos necessários para a nossa vida. Tornou-se um problema porque o tornámos barato e descartável. Nunca ninguém viu uma garrafa de plástico ir a correr para o oceano. É sempre um ser humano que a coloca no sítio errado. Na Paladin estamos a olhar para ter praticamente toda a nossa gama com material reciclado ainda este ano, 30% seguramente, até porque se colocam questões de segurança alimentar onde houve uma evolução gigante nos últimos anos. Hoje é praticamente impossível alguém ficar doente com um produto comprado no supermercado e temos de salvaguardar isso. Sempre que possível queremos deixar de ter o plástico, mas nalguns casos é bastante difícil ser competitivo. Temos alguns produtos com valor acrescentado, mas há outros básicos, como o vinagre, que está nos lares todos em Portugal. Seria utópico...

     

    … Aumentar muito o preço?

    Não só o preço. Mesmo em matéria de sustentabilidade. Não é líquido que com uma embalagem de vidro sejamos mais sustentáveis do que com plástico, porque pesa mais, há os fornos que trabalham com energia que não são painéis solares… Se pusermos tudo na conta não será assim uma diferença tão grande, muitas vezes pode ser pior.

     

    Já têm o vosso retrato de sustentabilidade? As grandes empresas e a banca têm-vos pedido indicadores?

    Claro que sim. Mas vamos adiantar-nos. Este ano vamos ter um relatório único, o económico e o de sustentabilidade, porque para nós é a mesma coisa. A empresa, para ter futuro, tem de ser apenas uma.

     

    E seguem princípios na relação com os clientes e com os fornecedores?

    Desde aquele primeiro dia em que, com 15 anos, fiquei responsável por pagar o empréstimo pedido pela família, e era a minha assinatura que lá estava, fiquei consciente do que era defender o nosso nome. Como o meu pai dizia, o melhor bem que me podia transmitir era o nome. Temos clientes e fornecedores que estão connosco desde o primeiro dia, tal como colegas a trabalhar na empresa.

     

    No setor agrícola, um dos problemas é a mão de obra imigrante ilegal. Estão atentos aos vossos fornecedores?

    Temos de estar, por obrigação moral, por aquilo em que acreditamos e por via das regras. Não só em Portugal, mas fora. Fomentamos cada vez mais produzir as nossas matérias-primas. E do lado social promovemos a empregabilidade de pessoas que vieram em condição de refugiado. Temos uma parceria com a Fundação Aga Khan, em que recebemos refugiados afegãos que vieram com as suas famílias. Empregamos estes nossos colegas afegãos como qualquer colega português. Temos 12 nacionalidades a trabalhar connosco.

     

    Os salários são muito baixos em Portugal. Também é assim na Casa Mendes Gonçalves?

    Já há algum tempo que não pagamos salário mínimo. E fizemos um esforço grande para, a partir deste ano, entre prémios e salário, não ter ninguém que ganhe menos de mil euros. Não é favor nenhum e mesmo assim é muito pouco. Temos um problema que é a taxação que existe. Damos um prémio de 100 euros, que se fosse refletido na folha de salário teríamos de dar 300 para levarem o mesmo. E temos situações pontuais, como o caso de uma colega que com o aumento ficaria a ganhar menos. Nós felizmente temos condições para isso. Agora, há empresas que não podem e não as podemos condenar. Sabemos como é o tecido empresarial português onde esta decisão não pode ser tomada de ânimo leve porque pode significar o fim da empresa.

     

    Porque não se consegue dar um salto nos salários em Portugal?

    Porque não queremos, a sociedade em geral, o Governo. Não há nenhuma sociedade que se desenvolva com salários baixos. Nós vendemos bens de consumo, as pessoas consomem turismo, vão jantar ou almoçar fora, vão ao cinema…Vão se tiverem dinheiro. É um círculo vicioso. A sociedade não
    se desenvolve, as empresas não se desenvolvem, porque as pessoas não têm dinheiro no bolso.

    Só se muda alguma coisa pela educação e pelo conhecimento.

    Um dos projetos que tem é o Vila Feliz Cidade. Em que fase é que está?

    A Vila Feliz Cidade foi criada há uns anos, assim chamada pela Graça, que nos faz a comunicação. Começou por ser um projeto agrícola e a vontade de construir uma escola nos nossos terrenos. Hoje, fruto das pessoas que se juntaram à nossa casa, é um projeto muito maior. Será uma associação para a agricultura regenerativa e, mantendo a ideia original, o meu pequeno sonho, uma escola para a Golegã, pública e com todas as condições. Para já temos em mente construir um berçário. Temos esse problema desde o berçário ao primeiro ciclo. A educação é crucial, só se muda alguma coisa pela educação e pelo conhecimento. Estamos a falar com o Centro Escolar da Golegã, a Câmara, os ministérios da Educação e da Segurança Social para construirmos um projeto conjunto para todos. Nunca quisemos construir um colégio privado só para alguns. Mas a Vila Felicidade é também um projeto de agricultura regenerativa. Os nossos pimentos picantes já são produzidos nesse espaço. E através da Vila Felicidade estão a fazer integração vertical. Por isso criámos a Fundação, que é a cabeça de tudo, e duas associações, uma para a educação e outra para a agricultura regenerativa. Pretendemos criar um movimento a que se possam associar outros pequenos agricultores que queiram produzir segundo estes princípios de agricultura regenerativa, instituições do conhecimento, faculdades e empresas como nós, agroindústrias. Produzimos produtos alimentares, onde o sabor é fundamental. E quando trazemos algo de longe, quando congelamos, quando refrigeramos, perdemos sabor. Para além de todas as questões de sustentabilidade, que são muito importantes para nós.

    Vamos plantar a nossa própria mostarda.

    Mas estão a regenerar outras espécies?

    Temos uma parceria com o Land Institute, norte-americano, a experimentar o cereal "kernza", substituto do trigo, mas que fica 20 anos no terreno. E temos maçãs, uvas, figos. Produzimos grande parte disto em agroflorestal para regenerar o solo, mantendo-o sempre coberto, não tendo tanta necessidade de água e não fazendo sempre a mesma produção no mesmo sítio. E vamos plantar a nossa própria mostarda, um bom exemplo da aberração do nosso sistema. Produzida em geral no Canadá, também alguma coisa na Ucrânia, vem de navio para Roterdão e dali para Dijon, de onde é famosa a mostarda. Não faz sentido importar de outro continente uma cultura que podemos produzir, que se adapta ao nosso clima e terreno.

     

    A guerra na guerra da Ucrânia e antes a pandemia foi bastante violenta para vocês. Como está a olhar para este futuro tão incerto?

    A guerra afetou-nos e continua a afetar muito. Todos os dias nos falta alguma coisa e já não é notícia. O abastecimento de matérias-primas cada vez mais próximo, que não seja a autossuficiência, mas que dê maiores garantias, é algo para que olhamos cada vez mais, também pela sustentabilidade e pelas nossas pessoas.

     

    Há outras ferramentas para enfrentar esta insegurança?

    Ou para terminarmos como começamos a tal atitude do sonho e da instabilidade? Sim, essa tem de ser a básica. Não adianta pensarmos que era bom que fosse assim ou assado. Temos de viver com o que temos e o que temos é isto. As empresas familiares têm uma oportunidade e uma responsabilidade gigantes. A oportunidade é ‘vamos lá mudar o mundo, começando por mudar o nosso mundo’. Nós podemos pensar a cinco, dez, 20 anos, porque em princípio vamos ficar lá, não precisamos de pensar no prémio ao fim de um ano, ou três ou quatro. E, o mais determinante, estamos na nossa terra com a nossa gente. Se todas as empresas fizerem isso na sua região, na sua terra, mudamos com as nossas pessoas.
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