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Há cada vez mais investidores que querem investir em títulos de impacto social, com especial relevo para as novas gerações. E Portugal faz parte do grupo de países, com o Reino Unido, os EUA e os Países Baixos que está mais desenvolvido nesta área, tendo como investidores fundações e empresas. António Miguel, que fundou há dez anos a Maze, uma organização de investimento de impacto, afirma que os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas escondem oportunidades de mercado. Convidado desta semana das "Conversas com CEO", integradas na iniciativa Negócios Sustentabilidade 20|30, numa entrevista de mais de meia hora mostra, com exemplos, como projetos sociais podem prosseguir objetivos de políticas públicas com maior eficiência oferecendo retorno para quem investe.
Passou por vários países, dois europeus e um na América do Sul. Quais as diferenças?
Foram experiências muito diferentes. No México, um país mais latino, foi onde comecei a ter uma noção de que era possível criar empresas e inovar. A Noruega e o Reino Unido levaram-me mais para as políticas públicas, como é que podemos influenciar a forma como o Estado se relaciona com os cidadãos e as empresas. Foi dessa complementaridade que surgiu a minha paixão pela inovação social e pelo investimento de impacto que me levou a criar a Maze há 10 anos.
E que faz a Maze?
A Maze é uma organização de investimento de impacto, em que o dinheiro é suposto ir e voltar, idealmente com retorno. E de impacto significa um filtro positivo nas decisões de investimento. Ou seja, enquanto gestor de ativos posso dizer ‘não vou investir na indústria de combustíveis fósseis ou de armamento’ e isso é um filtro negativo. No investimento com um filtro positivo invisto em projetos para melhorar a empregabilidade ou numa tecnologia para encontrar novos materiais para acelerar a descarbonização. Na Maze ajudamos os investidores que querem alocar o seu capital em projetos de impacto social e ambiental positivo e encontramos os empreendedores que têm essas soluções.
Como se consegue retirar retorno de projetos na área social?
Por exemplo, na inclusão de jovens no mercado de trabalho. Um jovem sem emprego tem um custo para o Estado à volta dos nove mil euros por ano. Se um projeto de inovação social, como a Academia de Código que ensina alunos a serem programadores júnior, tiver um custo de formação mais reduzido, de cinco mil euros, por exemplo, com uma taxa de empregabilidade perto dos 90%, pode poupar recursos ao Estado ao evitar o desemprego. Uma parte das poupanças do Estado pode ser utilizada para reembolsar os investidores e remunerá-los. Há uns anos lançámos a onevalue.gov.pt, com indicadores unitários do investimento público em várias áreas, em que conseguimos perceber quanto é que o Estado investe, por exemplo, para ajudar um jovem a integrar-se no mercado de trabalho. E conseguimos convocar as organizações a dizerem se têm projetos inovadores e mais eficientes do que o Estado. É nesses ganhos de eficiência que existe o retorno financeiro.
Estão a contribuir para uma maior eficiência das políticas públicas?
Exatamente. E aplica-se a outras áreas. Estive envolvido num projeto de redução da reincidência criminal no Reino Unido, com a mesma lógica. Cerca de 60% dos reclusos que saíam dos estabelecimentos prisionais voltavam a reincidir no espaço de um ano, o que tinha um custo grande para o Ministério da Justiça. Conseguimos provar que se reduzíssemos a reincidência em 10%, o Estado inglês poupava. E pode partilhar parte dessa poupança para remunerar os investidores que tiveram o risco de investir no projeto. Utilizamos para isso os títulos de impacto social ou ‘social impact bonds’.
Há investidores interessados nesses títulos?
A nível internacional cada vez mais. E os países mais desenvolvidos são o Reino Unido, EUA, Países Baixos e Portugal, que está bastante avançado nesta área e na qual devemos ter bastante orgulho. Em Portugal, os investidores típicos são fundações, empresas, através dos seus programas de inovação e responsabilidade social corporativa, porque é uma solução complementar a utilizar orçamentos de filantropia, que desta forma são reciclados. Há um professor de Oxford que diz que as melhores empresas do futuro são as que lucram enquanto resolvem problemas sociais e ambientais, por oposição às que lucram, aproveitando problemas sociais e ambientais. Resolver problemas sociais e ambientais pode ser um excelente negócio.
Há uma contradição entre a empresa maximizar o lucro e ter impacto social e ambiental positivo? Conciliar os dois aspetos não sacrifica a rentabilidade?
Está em grande debate nos EUA, com uma reflexão sobre o que é o dever fiduciário e o que significa valor ou maximização de valor para outros ‘stakeholders’. A legitimidade acaba por estar em quem aloca o capital, em definir o que é valor para si. Mas quando investimos em empresas que estão a desenvolver novos materiais para a descarbonização de indústrias, quando olhamos para soluções tecnológicas que ajudam a combater problemas como o aumento da prevalência de situações de saúde mental, estamos a falar de grandes negócios e mercados, que resolvem problemas sociais. Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas estão calculados num potencial de mercado de 12 biliões, o que significa que se conseguirmos soluções de mercado que resolvam estes problemas, podemos ter grandes empresas. A Tesla parece-me ser um bom exemplo: tem tido um grande papel na mobilidade elétrica e é bastante lucrativa.
Os Millennials e a Geração Z estão mais disponíveis para sacrificar o lucro e abraçar projetos com mais impacto?
As novas gerações estão muito mais preocupadas com estes temas e a atuarem em conformidade com os seus valores. Só quero desconstruir a narrativa "estão mais disponíveis para sacrificar o lucro", porque não é necessariamente verdade. Algumas vezes podemos perder, outras é igual, noutras vezes mais. Na Maze temos esta missão de provar que investir em impacto social e ambiental é a maior oportunidade económica dos nossos tempos e tem muito a ver com estas preferências geracionais. Falamos da regra dos 2/3. Dois terços dos consumidores estão cada vez mais disponíveis e interessados em consumir produtos que têm considerações de impacto. Não é por acaso que as empresas na liderança destas áreas são de consumo, as que sofrem o primeiro escrutínio dos consumidores. Temos 2/3 do talento a querer trabalhar em empresas com propósitos e por isso as grandes incumbentes de indústrias sabem que não vão lá apenas com uma lógica de maximização de lucro. É muito interessante ver grandes instituições financeiras ou de consultoria de gestão a alterarem a forma como comunicam, porque sabem que têm de falar com o talento. E as novas gerações querem cada vez mais investir com impacto. Quando juntamos tudo, há uma macrotendência impossível de ignorar e que se verifica muito nas gerações mais jovens.
Há algum projeto que o tenha impressionado especialmente?
Posso falar em dois, um ambiental e outro social. Na área social, temos um projeto nos Países Baixos que desenvolveu um algoritmo que, recebendo os dados, consegue estabilizar níveis de glucose no sangue e, por isso, ter bons resultados em pacientes com diabetes tipo 2, que as pessoas desenvolvem ao longo da vida por más escolhas alimentares e de hábitos. Ataca um enorme problema social de saúde pública com uma solução de base tecnológica e já está a ser reembolsada em todas seguradoras nos Países Baixos. E na área ambiental, uma equipa que apoiámos, que veio da Deep Mind, a empresa da Google de inteligência artificial, está a utilizar esses modelos para simular o mundo físico e desenvolver novos materiais químicos em laboratório que podem melhorar a absorção de CO2. Chama-se Orbital Materials e tem um enorme potencial, porque neste momento existe uma grande limitação na captura de CO2 da atmosfera.
Qualquer desses projetos seria abraçado por investidores que gostam de ganhar muito dinheiro.
Espero que sim e muito do nosso trabalho é exatamente criar essas pontes. Temos um desafio, enquanto sociedade, de resolver os grandes problemas sociais e ambientais. E não vamos conseguir fazê-lo em silos, com o setor de impacto a fazer uma coisa e o mais tradicional a fazer outra. A nossa remuneração está dependente do desempenho de impacto, e não só do financeiro, e ficamos muito orgulhosos quando investidores tradicionais também investem nas nossas empresas. Obviamente que na Maze temos também projetos de características menos de negócio. Tenho muito orgulho num que apoia crianças e jovens em risco e as suas famílias, evitando que sejam institucionalizadas através da melhoria de competências parentais. Com a Fundação Calouste Gulbenkian e o Banco Montepio investimos numa intervenção precoce junto de famílias sinalizadas e com uma taxa de sucesso bastante interessante de redução das institucionalizações. Conseguimos provar que essas institucionalizações evitadas tiveram uma poupança para o Estado, esse montante foi reembolsado e agora está a ser reinvestido noutros projetos.
Os dois conflitos a rodear a Europa podem significar menos recursos para esta área?
Na área de tecnologia, há cada vez mais interesse do capital de risco no investimento em defesa. Os fundos de capital de risco não achavam que tinham aí um papel. Mas está cada vez mais tecnológica, por isso justifica a entrada deste tipo de investidores. Mas, ao mesmo tempo, tudo o que é investimento na área climática continua a aumentar. Por isso não tenho a perceção de que uma esteja a acontecer por exclusão da outra. Do ponto de vista de recursos financeiros, esse foi o comportamento em 2023 e a tendência em 2024 mantém-se. Nos recursos naturais, levantam-se muitas questões a nível europeu e isso parece-me estar a funcionar para procurar novas soluções, por exemplo, em termos energéticos, que representem menos dependência de outros países, como a Rússia. É uma oportunidade para a transição energética. Por fim, é impossível dissociar a parte ambiental da social. Quando apostamos em energia solar, os painéis fotovoltaicos vão ter de ser colocados em algum lugar, onde existem comunidades e, por isso, o impacto social vem associado ao ambiental.
Continuamos neste admirável mundo novo de mudar valores e de colocar as empresas a estabelecerem prioridades que não seja só maximizar o lucro?
É, mas há aqui uma versão da história em que resolver estes problemas sociais e ambientais escondem grandes oportunidades de mercado. Por isso, quem lidera grandes empresas tem uma oportunidade de olhar para os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas e tenho a certeza que encontra boas oportunidades de negócio.