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Afonso Arnaldo: “Os salários são o reflexo final da nossa perda competitiva”

Se quisesse faturar a uma empresa portuguesa o preço do Reino Unido era impossível, estava fora do mercado, afirma o responsável de sustentabilidade da Deloitte.

04 de Outubro de 2023 às 13:45
Vítor Chi
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    Porque é que os salários são tão baixos em Portugal? Devíamos ser mais empreendedores, diz Afonso Arnaldo, que vê nos baixos salários o reflexo da perda e competitividade do país face a outros com que concorremos. “O valor horário que consigo passar por um recurso em Portugal é inferior ao que se consegue no Reino Unido”, refere como exemplo. Alertado para o tema do ambiente desde 2014, quando participou na Comissão para a Reforma da Fiscalidade Verde, o responsável da área de Sustentabilidade da Deloitte é o convidado das “Conversas com CEO” integradas no projeto Negócios Sustentabilidade 20|30. Durante mais de meia hora, que pode ser ouvida na íntegra em podcast, falamos da sua carreira, de como nasceu a preocupação ambiental, dos desafios que enfrentamos. Diz-se um otimista, mas nos objetivos para o ambiente vê o tempo a esgotar-se.

    Começou a carreira na Deloitte há 27 anos. Não é vulgar este emprego quase para a vida…

    Não é vulgar, mas acontece e é bom sinal. Fui passando por várias áreas. Especializei-me em impostos indiretos, em especial o IVA que ainda mantenho. Adicionei mais tarde esta área da responsabilidade social e sustentabilidade. Pouco depois da minha participação na Comissão da Reforma da Fiscalidade Verde em Portugal, em 2014, fiquei mais alerta para estes temas e assumi a área de responsabilidade social e sustentabilidade enquanto preocupação interna da Deloitte. E mais recentemente a área de sustentabilidade e clima enquanto área de negócio, já como prestação de serviços aos nossos clientes. A responsabilidade social carrego comigo desde criança.

    Também pratica responsabilidade ambiental, andando em geral de bicicleta na cidade… O que o levou a preocupar-se?

    Tenho a sorte de não viver a uma grande distância do trabalho e consigo fazer muitas vezes essa deslocação de bicicleta. Em 2014, a comissão teve oportunidade de ouvir especialistas de muitos setores. Não há como fugir às evidências. No início, confesso, tive sempre aquela dúvida: sou um no meio de milhares de milhões, que diferença pode fazer a minha atuação? Mas penso que se fizermos a nossa parte, não vamos mudar o mundo, mas vamos dar o exemplo. Muitas vezes não temos a noção da influência que podemos ter sobre quem nos está a observar.

    Para se mudarem os comportamentos é melhor a regulação ou sinalizar com o preço, ou seja, com impostos e o princípio do poluidor-pagador?

    Depende. A regulação, proibir é mais impositivo. A fiscalidade permite manter o consumo ou o comportamento, mas colocando o ónus sobre a pessoa, dizendo: ‘bom, se estás a ter um comportamento que a sociedade entende não ser o melhor, deves então compensar a sociedade’. Pode ser um bocadinho hipócrita este raciocínio, porque são taxas ou impostos que, por um lado, querem evitar aquele consumo, por outro, dão muito jeito como receita. Mas um dos grandes defeitos da taxação, em vez da regulação, é que vai penalizar principalmente os que menos têm.

    Nas empresas, identifica mais preocupações com o ambiente ou com o social?

    Em ambas, embora o foco esteja muito no tema ambiental, com particular ênfase nas emissões. Mas há também o tema da água, do consumo e da circularidade. Na maior parte das vezes, tudo o que vamos consumindo tem uma lógica linear na nossa economia: extraímos, utilizamos e deitamos fora. O ser humano inventou o conceito de lixo. Na natureza não existe. No tema social, vejo as empresas também bastante preocupadas, muito pelo efeito da pandemia. As empresas e a força de trabalho estão hoje alertadas para novos temas, como o ‘burnout’, o ‘well being’.

    Os líderes das empresas estão mais convencidos de que estamos perante um colapso climático?

    Estão. Fazemos anualmente, a nível global, um estudo ‘C-level’ [questões dirigidas a CEO ou presidentes executivos]. No último, cerca de 96% dos inquiridos dizem que nos próximos três anos o clima terá algum ou muito impacto nos seus negócios. Veja-se a Autoeuropa, que teve de parar a produção porque houve cheias, em agosto, num outro país europeu, impedindo o fornecimento de peças. Na nossa economia tudo está interligado. Não podemos pensar que não nos chegam muitos efeitos climáticos.

    E no caso português estão identificados os setores em que se espera maior impacto?

    Sim. A agricultura, com alterações de tipos de colheitas que é possível realizar. O tema da água na agricultura e a tudo aquilo que a ela seja ligado. A floresta: se desatamos a ter incêndios, não se chega a tirar partido do investimento. O calor pode também ser disruptivo.

    Os problemas das auditoras e consultoras são em regra de governação, relacionados com corrupção ou excessos no planeamento fiscal. A Deloitte tem estado alerta nessas questões?

    Diria que quer a Deloitte como qualquer empresa de consultoria. É importante que os erros, que muitas vezes são individuais, sejam corrigidos. A prevenção é o ideal. As empresas de consultoria estão expostas ao risco, mas devem ter programas, como é o caso, que tentem prevenir situações como essas. Têm um código de ética e formação dada às pessoas.

    Na sua carreira foi confrontado alguma vez com uma situação em que teve de dizer não?

    Felizmente não, mas de cada vez que tenho um potencial novo cliente ele tem de passar por um processo de aceitação. Existem regras que devem ser cumpridas. Não é uma invenção da Deloitte, mas levamos isso muito a sério.

    Outro problema das consultoras é serem conhecidas por terem estagiários com formação superior que trabalham horas infindáveis por salários baixos. Essa prática tem vindo a ser corrigida ou continua a explorar-se estagiários?

    Vou recusar as duas afirmações. Primeiro os ‘baixos salários’. Nós concorremos globalmente. A perceção das novas gerações é de que o mundo é a sua casa. Temos muitos cursos em Portugal lecionados em inglês. A preparação dos nossos jovens é excelente e podem desempenhar funções em qualquer parte do mundo. Temos de dar uma proposta de valor melhor do que a que apresentávamos no passado. E digo ainda melhor, porque foi aquela que me foi apresentada há 27 anos.

    Não foi explorado há 27 anos?

    Nunca me senti explorado. Senti-me sempre num local onde aprendia. A Deloitte é vista como uma boa aposta, onde se pode aprender. E isso é levado em conta no momento da escolha do primeiro emprego. Não vejo que haja uma exploração, até porque as pessoas estão mais alerta para estes temas. E temos programas, seja para prevenção de ‘burnout’, seja para bem-estar. Por exemplo, estamos a receber candidaturas para a criação de um grupo de teatro. E não considero que paguemos salários baixos, porque senão não conseguiríamos recrutar ou reter as pessoas. Além disso, com uma proposta de valor numa das poucas empresas onde, começando como analista saído da formação, me posso tornar dono da empresa.

    Como aconteceu consigo?

    Como aconteceu comigo e com a maior parte dos sócios que estão na Deloitte onde o elevador social, de que se costuma falar, funciona. O meu avô era um órfão da Casa Pia. É certo que os meus pais conseguiram dar-me uma boa formação. Mas fui a primeira pessoa na minha família direta a tirar um curso superior. Consigo olhar para a Deloitte como tendo uma componente de elevador social.

    O elevador social funciona?

    Funciona. Vão lá chegar todos? Não. A maior parte não porque o mercado vê na Deloitte um local para ir buscar pessoas com elevada competência, com elevados hábitos de bom trabalho e de trabalho em equipa. E perdemos muitas pessoas que não queríamos perder.

    Um dos problemas do país e das empresas é exatamente a saída de licenciados. Como é que têm combatido esta emigração dos licenciados em Portugal? Contratando estrangeiros?

    É ainda residual a contratação de estrangeiros. Não que não estejamos abertos a isso. A nossa maior fonte de recrutamento continua a ser portugueses. É preciso não esquecer que a Deloitte também está em Espanha, Itália, França, Reino Unido. Não posso abrir aqui uma concorrência.

    E têm sentido esta emigração dos jovens licenciados?

    Sente-se. Não só quando terminam os cursos, com propostas de outras geografias, mas também no mercado. Então, após a pandemia, há algumas propostas com salários bastante acima dos nacionais. E a ficar a trabalhar a partir de casa, com bom tempo, mas com um salário do Reino Unido. Isto é imbatível. São casos que acontecem, mas não em massa.

    Porque é que os salários são tão baixos em Portugal? Porque é que um quadro na Deloitte portuguesa ganha menos do que um quadro em Espanha?

    É impossível identificar um fator. Há um conjunto de fatores. Deveríamos ser um país mais empreendedor, com mais aposta nas possibilidades de serviços e de indústria. Os salários são o reflexo final da nossa perda competitiva em relação a outros países que connosco concorrem. Mesmo dentro da União Europeia temos vindo a perder posições.

    Na Deloitte ganham menos por causa do país como um todo? Porque são tão produtivos em Portugal como em Espanha?

    Sim. O valor horário que consigo passar por um recurso em Portugal é inferior ao que se consegue no Reino Unido. Se quisesse faturar a uma empresa portuguesa o preço do Reino Unido, era impossível, estava fora do mercado. Temos de viver no mercado em que nos inserimos. Somos pequeninos, mas conseguimos criar parcerias em mercados como o Canadá, o Médio Oriente, a América do Sul, nos países nórdicos, na Dinamarca, onde temos presença portuguesa a trabalhar em parceria com a Deloitte desses países. E aí, de facto, conseguimos criar mais oportunidade. Em setembro, ultrapassámos pela primeira vez as 6.000 pessoas na Deloitte em Portugal.

    Qual é o maior desafio nas estratégias ambientais, sociais e de governação das empresas?

    O maior desafio é a humanidade acreditar que esse é um caminho que tem de ser seguido, sob pena de isto ir correr muito mal.

    Mas ainda vamos a tempo no caso ambiental?

    Cientificamente, diz-se que sim. O relatório recente de avaliação do Acordo de Paris diz que não estamos na rota certa. A rota em que estamos aponta para uma subida da temperatura média de três graus centígrados. Estamos a falhar os dois graus e já nem falo do grau e meio. Mas ainda assim esse mesmo relatório diz que o caminho ainda é possível, embora comece a ser muito exigente. Vamos ver o que faz a humanidade. Embora seja um otimista por natureza, aquilo que vejo é o tempo a esgotar-se.

     

    “(…) Cerca de 96% dos [CEO] inquiridos dizem que nos próximos três anos o clima terá algum ou muito impacto nos seus negócios.”

     

    “Após a pandemia, há algumas propostas [do exterior] com salários bastante acima dos nacionais. E a ficar a trabalhar a partir de casa, em Portugal, com bom tempo, mas com um salário do Reino Unido. Isto é imbatível.”
    Bilhete de identidade Idade: 49 anos
    Cargo: "Partner" da Deloitte Portugal; Responsável pela área de Sustentabilidade; Especialista em Impostos Indiretos; Membro da Comissão para a Reforma da Fiscalidade Verde (2014)
    Formação: Licenciado em Direito, Universidade Católica.
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