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Recompensar quem recicla

Portugal continua sem cumprir as metas da reciclagem. Para tentar ultrapassar este cenário persistente está a ser estudado um novo sistema - Sistema Depósito e Reembolso (SDR). Pretende funcionar como complemento ao sistema existente e tem a vantagem de, por um lado, incentivar a reciclagem ao cobrar um valor que será devolvido com as embalagens usadas e ao “atacar” toda a cadeia de valor, diga-se o canal Horeca.

02 de Fevereiro de 2022 às 12:00
Leonardo Mathias diz que o sistema só será bem-sucedido “caso proporcione elevada conveniência para o consumidor”. Bruno Colaço
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Para muitos portugueses, separar os resíduos sólidos e colocar o papel, o plástico e o vidro nos contentores já se tornou um hábito. Mas não para todos. É verdade que, no ano passado, os portugueses reciclaram mais 6,4% do que em 2020. Acontece que, como refere a Sociedade Ponto Verde, as embalagens são o único fluxo de resíduos urbanos a cumprir com as metas nacionais.

Seja porque as pessoas não querem ter o trabalho de separar os resíduos, seja porque não associam uma vantagem (mesmo que apenas ambiental) a esse comportamento, o certo é que os valores nacionais continuam aquém do pretendido.

Mas este cenário pode estar a ponto de mudar. Há umas décadas, antes da massificação do plástico, principalmente do de uso único, o vidro dominava. As pessoas compravam o leite, as bebidas... em frascos de vidro, pagavam um depósito que depois era devolvido com o frasco vazio. O Sistema de Depósito e Reembolso (SDR) é algo semelhante. Como explica Leonardo Mathias, presidente da Associação SDR Portugal, entidade responsável pelo projeto, trata-se de um sistema de gestão de resíduos de embalagens de bebidas que consiste na cobrança de um valor de depósito no momento da venda (a antiga "tara ou caução") que será reembolsado ao consumidor aquando da devolução das embalagens vazias.

A vantagem é evidente. À partida há um aumento de embalagens recolhidas (taxa de retoma). E depois, não tão evidente, esse aumento repercute no "cumprimento das metas e na redução do impacto e proteção do ambiente, além do enorme aumento potencial da reciclagem destes materiais e da qualidade do reciclado obtido". O presidente da Associação SDR Portugal acrescenta que o sistema permitirá gerar menos littering, menos deposição em aterro, menos incineração e, consequentemente, cidades mais limpas e mais saudáveis.

Mas atenção. A ideia não é substituir os atuais contentores por este sistema. Como explica Leonardo Mathias, trata-se de um sistema complementar ao sistema integrado já existente. "Apenas vai substituir a deposição nos ecopontos das embalagens de bebidas, criando uma maior conveniência para o cidadão e diminuindo os custos fixos associados à gestão pelo efeito de escala", refere.

Na prática, os consumidores são incentivados (a recompensa económica é sempre aliciante) a devolver as embalagens de bebidas de uso único usadas, colocando-as em máquinas automáticas disponíveis nos espaços aderentes em todo o país ("recolha automática") ou através de uma devolução manual ("recolha manual"). E esta parte é importante porque, como reconhece Leonardo Mathias "este sistema só será bem-sucedido caso proporcione elevada conveniência para o consumidor no processo de devolução, que seja operacionalmente eficaz e eficiente por forma a assegurar uma recolha mais seletiva, mais limpa, de modo a permitir a produção de material reciclado de alta qualidade, indo ao encontro dos desafios exigentes que encontramos na circularidade das embalagens de bebidas".

Mas, talvez, a grande curiosidade do projeto reside no facto de, também, "atacar" o canal Horeca. O que, reconhece o presidente da Associação SDR Portugal, potencia os resultados a obter, dado que "pressupõe a participação de todos os agentes, em toda a cadeia de valor". No entanto, Leonardo Mathias reconhece que, dada a "dimensão do canal Horeca, não é possível atingir o desafio das metas já referidas sem o envolvimento pleno dos estabelecimentos da hotelaria e restauração, por exemplo".

Massificação faseada ao resto do país

O projeto, assente na assinatura "Quando do Velho se Faz Novo", foi inicialmente testado em 23 zonas do Norte e Sul de Portugal, com a introdução de máquinas de recolha automática para retoma de garrafas de bebidas em plástico. Como resultado foram recolhidas mais de 16,6 milhões de embalagens de bebidas de plástico. O que, afirma Leonardo Mathias, permitiu a reciclagem de 472 toneladas de plástico PET para dar origem a material reciclado de elevada qualidade destinado à produção de novas garrafas de bebidas, com o objetivo de promover a sustentabilidade ambiental através de uma economia mais circular. Atualmente na segunda fase o objetivo é de "conhecer e avaliar com maior especificidade o sistema, a sua operação e a forma como melhor pode servir os consumidores".

Estes testes são importantes porque há toda uma logística que é importante definir. Desde onde pôr as máquinas, quem é responsável pela sua manutenção, a periodicidade com que são "esvaziadas", entre muitas outras questões. Como refere Leonardo Mathias, estes projetos são essenciais para obter conhecimento sobre o funcionamento destas máquinas e os fluxos de recolha, mas principalmente para promover a sua divulgação junto dos consumidores, preparando-os para o futuro sistema de depósito que será obrigatório.

A pouco e pouco a ideia é massificar o projeto para o resto do país. No entanto, primeiro, há que desbloquear certos requisitos. Como a obtenção de uma licença, explica Leonardo Mathias, decorrente do que vier a ser determinado pela Portaria que regulará a Diretiva (UE) 2019/904 em Portugal, acrescentando que "o nosso objetivo, do modelo que propomos, é administrar e organizar a recolha, transporte, contagem, triagem e reciclagem de embalagens de bebidas não reutilizáveis em todo o território nacional".

Qualquer consumidor, independentemente do local de consumo, terá direito ao reembolso do valor de depósito da embalagem de bebidas que devolver, desde que abrangida pelo SDR. Leonardo Mathias, Presidente da Associação SDR Portugal 
O processo pode parecer simples - afinal basta entregar as embalagens vazias e obter uma recompensa, certo? Errado. Como explica o presidente da Associação SDR Portugal o processo é complexo e exigente. "Os embaladores terão de, mediante uma definição rigorosa de requisitos técnicos de codificação de embalagens, alterar os rótulos das bebidas abrangidas pelo SDR (para que sejam criteriosamente aceites ou rejeitadas através da leitura ótica das máquinas). Qualquer consumidor, independentemente do local de consumo, terá direito ao reembolso do valor de depósito da embalagem de bebidas que devolver desde que abrangida pelo SDR", explica. E todo esse processo demora o seu tempo. Dois anos, de acordo com os estudos e avaliação levados a cabo pela Associação SDR Portugal.

100 milhões de euros de investimento

Implementar o SDR pressupõe, revela Leonardo Mathias, um investimento superior a 100 milhões de euros, dos quais 70 milhões deverão ser realizados nos primeiros dois anos (prazo mínimo de implementação do sistema após a atribuição da licença ou da concessão), e a criação de mais de 1.500 postos de trabalho diretos e indiretos. No total, e feitas as contas, deverão ser instaladas, em todo o território nacional, cerca de 3.600 máquinas de venda reversa, equipamento de retoma com tecnologia integrada que permite a aceitação de embalagens usadas. Além destas, está ainda previsto a instalação de máquinas nas grandes superfícies de retalho - 2.600. Sem esquecer, claro, a recolha das embalagens depositadas em mais de 90.000 pontos a instalar no comércio tradicional e no canal Horeca.

Economia circular

"A economia circular, em que um resíduo passa a ser um recurso, é uma das transformações mais urgentes e prioritárias uma vez que permite a produção de matérias-primas secundárias que preservam o valor da original, evitando perdas ou desperdícios", afirma Leonardo Mathias. Cada vez as empresas (e os Estados) se preocupam com dar nova vida a produtos e materiais, afinal, "do ponto de vista de sustentabilidade ambiental é incomportável mantermos uma economia linear dependente de matérias-primas virgens, pois são recursos finitos, e a sua utilização recorrente com uma gestão a jusante ineficaz provoca impactos ambientais indesejáveis".

A grande diferença do SDR, quando comparado com os sistemas de reciclagem tradicional, segundo Leonardo Mathias, é que nestes o "reciclado obtido não apresenta o mesmo padrão de qualidade, seja devido à presença de contaminantes, ou à escassez de materiais corretamente separados". E é aqui que entra os objetivos do novo sistema: atingir as metas de retoma de 77% em 2025 e de 90% em 2030. Relativamente à produção de garrafas de bebidas em PET, pretendem-se níveis de reincorporação de rPET de 25% em 2025 e de 30% em 2030. Mas sobre o alcance dos mesmos, alerta o presidente da Associação SDR Portugal, está condicionado à publicação da Portaria que regulamentará as condições para o funcionamento deste sistema.
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