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A intensificação tecnológica agrícola é indispensável

O desafio de alimentar mais três mil milhões de pessoas nas próximas décadas obriga a uma inevitável intensificação da produção de alimentos. Como o podemos fazer de forma sustentável e qual o contributo que a digitalização e a agricultura de precisão podem dar foram as questões de base colocadas a dois especialistas do setor: Francisco Avillez e Ricardo Braga.

16 de Junho de 2021 às 11:00
A intensificação agrícola que permita produção em quantidade e de baixo custo é uma inevitabilidade. Getty Images
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"Nas próximas décadas, vamos ter de alimentar mais três mil milhões de pessoas com base em dietas saudáveis e acessíveis a todos, baseadas em sistemas alimentares sustentáveis. Sistemas que, na minha opinião, têm de estar baseados em culturas, animais, tecnologias de produção e práticas agrícolas que sejam capazes de contribuir para, pelo menos, três coisas fundamentais: para a descarbonização da economia; para uma gestão mais sustentável dos recursos naturais e mais eficiente dos fatores de produção; e para promover a biodiversidade e as paisagens agrícolas", defende Francisco Avillez, professor emérito do Instituto Superior de Agronomia (ISA), especialista na Política Agrícola Comum (PAC) e responsável pela equipa que elaborou a parte da Agricultura no RNC2050 - Roteiro para a Neutralidade Carbónica.

"Todos os sistemas que, de uma forma ou de outra, sejam capazes de contribuir para isto - e contribuir significa melhorar em relação à situação atual -, do meu ponto de vista, são sistemas sustentáveis". Francisco Avillez destaca, por exemplo, a agricultura de conservação ou regenerativa, "porque temos mesmo de regenerar os nossos solos, que são quase todos muito pobres em matéria orgânica, para que possamos reter mais água no solo e aumentar o sequestro de carbono".

O professor salienta que "a definição da FAO de agricultura sustentável admite a necessidade de utilização adequada e precisa de produtos orgânicos, mas também de produtos de síntese".

"Será preciso mais 60 a 70% do volume de alimentos"

Uns destes sistemas irão ser necessariamente mais produtivos do que outros, até porque, em última análise, "o que é importante nestes sistemas, que vão procurar responder a estes três objetivos - que, aliás, fazem parte dos objetivos específicos do Plano Estratégico português para a Política Agrícola Comum (PEPAC) -, é, por um lado, conseguir fazer isso assegurando um rendimento adequado e equitativo dos produtores, por outro lado, contribuir para uma maior coesão territorial nas zonas rurais, sobretudo das mais fragilizadas, e, finalmente contribuir para a segurança alimentar".

Para que isso aconteça, o professor lembra que "toda a gente que reflete nestas coisas, nomeadamente os especialistas internacionais da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), está consciente de que para conseguirmos alimentar todas as pessoas será preciso mais 60 a 70% do volume de alimentos que hoje produzimos".

Para conseguirmos alimentar todas as pessoas será preciso mais 60 a 70% do volume de alimentos que hoje produzimos. Francisco Avillez

Neste contexto, assegura Francisco Avillez, "teremos de ter dois tipos de sistemas de agricultura - de ocupação e uso do solo -, os que produzam alimentos mas que tenham como principal função contribuir para os tais três objetivos que referi, e outros que, salvaguardando a necessidade de terem um impacto o menos negativo possível, possam permitir um aumento significativo da nossa produção. E é aí que entram os sistemas intensivos de agricultura, que são capazes de aumentar a produtividade, e que se baseiam, cada vez mais, em modelos tecnológicos de intensificação sustentável. E, no nosso país, estes sistemas ocupam apenas cerca de um milhão de hectares, tudo o resto são sistemas agroflorestais que têm as tais funções ambientais e sociais, tendo, por isso de ser apoiados, uma vez que a sua função de produzir alimentos dificilmente será competitiva".

Por isso, sublinha o professor, "para mim, a intensificação tecnológica agrícola é absolutamente indispensável. Tem riscos para o ambiente? Tem. Tem riscos de utilização do solo, para a qualidade da água, para a biodiversidade e do ponto de vista das emissões, mas o que estes sistemas - pejorativamente chamados de intensivos - têm vindo a fazer, e têm condições de fazer ainda mais, é adotar tecnologias e práticas agrícolas que minimizem ao máximo esses impactos". E acrescenta: "As vacinas também têm riscos, mas os benefícios que delas resultam são muito maiores do que o ‘custo’ que têm."

Esta agricultura intensiva moderna "é capaz de produzir muito mais por unidade/hectare de produto, e com o apoio da tecnologia, é capaz de minimizar e até ultrapassar muitos desses riscos".

Agricultura de precisão tem papel fundamental

"A digitalização e a agricultura de precisão são transversais a todos os sistemas e modos de produção agrícola", defende Ricardo Braga. O professor do ISA, especialista em agricultura de precisão, concorda com Francisco Avillez em relação à "inevitabilidade da intensificação agrícola que permita produção em quantidade e de baixo custo", mas por outro lado, salienta que "quem quer produtos provenientes de sistemas que privilegiem a sustentabilidade ambiental e social terá de os pagar". E adianta que "há vários estudos científicos que concluem que não seria possível que toda a agricultura fosse, por exemplo, biológica, porque não produziria o suficiente para alimentar toda a população mundial".

Há dez anos a agricultura de precisão era quase desconhecida e, neste momento, todo o agricultor com alguma perspetiva de futuro a aponta como uma solução. Ricardo Braga

Ricardo Braga lembra ainda que "a FAO tem estatísticas que demonstram que a superfície agrícola só pode aumentar ligeiramente em algumas zonas, como África, por exemplo, pelo que o necessário crescimento da produção alimentar terá de ser feito pelo aumento da produtividade".

Sobre a contribuição que a agricultura de precisão pode dar para a sustentabilidade do setor agrícola, o especialista frisa que "o sucesso que a digitalização e a agricultura de precisão têm tido é inegável: há dez anos era quase desconhecida e, neste momento, todo o agricultor com alguma perspetiva de futuro a aponta como uma solução".

Porque "estes sistemas, através de sensores diversos, informam os agricultores da quantidade de água e nutrientes que existem no solo e, com base nisso, permitem tomar decisões muito mais criteriosas de aplicação de água, nutrientes e fitofarmacêuticos - no momento certo, na quantidade certa, no local certo e do produto certo. Há, por isso, uma redução de custos e um enorme aumento da eficiência das aplicações, uma vez que a planta, no caso dos nutrientes, vai absorver tudo o que se coloca, não havendo perdas no solo de produtos que poderiam depois ser lixiviados e contaminarem águas, e aumentando a produtividade".

A agricultura de precisão contribui, assim, para a sustentabilidade ambiental e económica do setor. Ao nível da sustentabilidade social, Ricardo Braga reconhece que "não se pode ignorar o debate em torno do facto de a digitalização poder reduzir algum emprego, mas destaca que uma das formas, e que muitos agricultores o estão a fazer, é dar formação aos seus colaboradores, de forma a permitir que se possam manter relevantes nesta nova forma de gestão das explorações agrícolas".

Europa não se pode alhear do problema

Francisco Avillez afirma: "Sou claramente apologista deste tipo de sistemas de agricultura intensiva, mas reconhecendo que têm de ser feitos com consciência dos riscos que existem e exigindo que quem os faz seja capaz de respeitar uma série de condições mínimas que mitiguem esses riscos."

E sublinha: "Diabolizar estes sistemas é castrar uma agricultura que é mais capaz de responder ao desafio mais importante de todos que é: como vamos alimentar toda esta população mundial?"

O professor diz ainda que "a ideia de que a Europa, porque está relativamente bem alimentada, não tem nada de se preocupar com estas questões e que a agricultura biológica e as ‘urban farms’ podem resolver as nossas necessidades - não podem porque não são suficientes - é uma utopia. Além de que, não podemos ficar à margem deste problema, a segurança alimentar é um problema mundial porque, tal como a pandemia, não resolve lidar com a questão só nos países ocidentais temos de o fazer à escala mundial".

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