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Nuno Matos: “Usamos os resíduos para produzir o primeiro combustível sustentável do mundo”

A indústria é o cliente deste combustível nascido dos resíduos. O desafio da Eco-Oil para 2024 é alimentar também veículos e navios, revela o seu diretor-geral.

29 de Novembro de 2023 às 11:00
Bruno Colaço
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    Bilhete de identidade

    Idade: 53 anos 

    Cargo: Eco-Oil, Diretor-geral; vice-presidente da Associação Portuguesa de Reciclagem de Fuelóleo; Galp, gestor sénior (1988-2006); EDP, engenheiro de projeto, (1995 a 1998) 

    Formação: Licenciado em Química Tecnológica, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa

    Nascida para fazer o tratamento de águas contaminadas, a Eco-Oil acrescentou a esse negócio um combustível produzido a partir dos resíduos oleosos e que vende para indústria. Mas sabe que a eletrificação vai ser uma realidade e como a fiscalidade também não ajuda, está a desenvolver, com as universidades, uma fórmula que permita ser usada na mobilidade terrestre ou marítima. Estes são os desafios que Nuno Matos, um químico que gere a empresa, aponta para 2024. E lamenta que no Portugal 2030 exista um "boicote a tudo o que é fóssil" quando foi graças aos apoios do Portugal 2020 que chegaram ao Eco Green Power, "um combustível industrial com uma pegada de carbono muito inferior ao que sai de uma refinaria". O diretor-geral da Eco-Oil é o convidado desta semana de "Conversas com CEO", entrevistas enquadradas na iniciativa Negócios Sustentabilidade. Durante mais de meia hora percebemos também que a transição energética é mais complexa do que a simples eletrificação. Custa dinheiro, não é imediata e é preciso fazer bem as contas para perceber o seu impacto ambiental. Uma conversa aqui editada e que pode ser ouvida na íntegra em podcast.

     

    Porque entrou para esta área?

    Depois de ter feito um percurso pela EDP e Galp, afastei-me das áreas técnicas e entrei na gestão. Há 15 anos surgiu a oportunidade de integrar esta empresa, que estava a meio caminho entre a indústria química e o ambiente. Estando esta área com um enorme potencial de desenvolvimento, pareceu-me uma excelente oportunidade para colocar em prática os meus conhecimentos de base de química. Mas o que gosto mais é de gerir pessoas. Só se consegue atingir os objetivos com todos e não apenas com alguns.

     

    E o que faz a Eco-Oil?

    A Eco-Oil começou em 2001 para tratar resíduos perigosos, o "tratamento de águas contaminadas". Não havia a ideia de circularidade. Tratávamos apenas resíduos no sentido mais puro dos anos 90, que era evitar que fossem para aterro. Hoje usamos os resíduos para produzir o primeiro combustível sustentável do mundo.

     

    O rio Sado tem a terceira colónia de golfinhos da Europa. Orgulha-nos saber que a nossa atividade não os põe em causa.

    A taxa de circularidade da economia portuguesa é das mais baixas da União Europeia. Quer partilhar connosco como é este processo?

    Recebemos resíduos por navio, uma grande parte importada porque conseguimos produzir um combustível de maior valor acrescentado. Esses resíduos, que são essencialmente água, óleo e sedimentos, como areias, vão para tanques de armazenagem. O primeiro tratamento é por diferença de densidade: os hidrocarbonetos começam a sobrenadar no tanque, no meio fica a fração aquosa contaminada e no fundo os sedimentos. Depois, podemos chamar à unidade de tratamento apenas a água que está contaminada. É um processo longo, físico-químico, seguido de um tratamento biológico até se conseguir atingir o ponto em que se pode fazer a descarga no rio Sado. O rio Sado tem a terceira colónia de golfinhos da Europa. Orgulha-nos saber que a nossa atividade não os põe em causa e não tem impactos percebidos no ambiente.

     

    Além da água limpa devolvida ao Sado, em que resulta mais?...

    Numa mistura de vários hidrocarbonetos, dependendo daquilo que o navio transportou. São resíduos já sem água que são destilados. Há uma operação de refinação e de melhoria. A seguir são analisados e enviados para o mercado.

     

    Temos água por um lado e uma matéria-prima que produz um combustível. Que é usado em quê?

    Temos uma marca própria. O Eco Green Power é um combustível industrial com uma pegada de carbono muito inferior ao que sai de uma refinaria, porque não usa matéria-prima, mas um resíduo. E é destinado à indústria para produzir vapor ou energia térmica.

     

    E pode ser usado na mobilidade?

    Esse é o grande desafio para 2024. Já fizemos uma tese com a academia que nos permitiu despertar para a possibilidade de uma parte importante deste combustível, hoje para a indústria, poder ser destinado à mobilidade, quer terrestre, quer marítima. O International Sustainability Carbon Certification certifica que temos um grau de emissões 99% inferior [ao combustível tradicional]. Na primeira tese de mestrado, com a Universidade Nova de Lisboa, a FCT, identificámos que 30% a 40% deste combustível pode ser transformada num gasóleo ou num destilado, que pode ser incorporado no gasóleo. Tem a enorme vantagem de permitir ter um novo escoamento para este produto, mas também ficar menos exposto à descarbonização da indústria, porque a sua eletrificação é uma realidade.

     

    Porque vai a indústria preferir a eletrificação a um combustível que resulta da economia circular?

    A fiscalidade verde não se aplica a este combustível, o que deveria preocupar o legislador. Apesar de ter menos emissões, tem a mesma fiscalidade de um combustível tradicional. Penso que tem a ver com o facto de ser o primeiro combustível sustentável do mundo e de termos uma certificação como novidade. Não somos os únicos, existem outras empresas no mundo a produzir um combustível semelhante, mas somos o primeiro na Europa a ter esta certificação, aliás, os primeiros no mundo.

     

    E o que é que está a ser feito para que este combustível se aplique também aos motores de combustão?

    Deixámos o desafio à Universidade de Coimbra para realizar três teses de mestrado a aprofundar este tema, que procurarão, no final, entregar uma solução técnica para que o acionista possa decidir da bondade do investimento e assim entrar na área da mobilidade. Esse é o grande desafio, a grande aposta para 2024.

     

    O problema é a rentabilidade?

    Sim, perceber se o processo é ou não rentável. Deixe-me dar nota de uma situação até um pouco anacrónica face aos discursos políticos de apoio à descarbonização e à circularidade. O nosso primeiro grande investimento foi apoiado pelo Portugal 2020 e permitiu a inovação produtiva que nos fez passar de um combustível indiferenciado para o Eco Green Power, com este potencial de primeiro fuel sustentável do mundo. Mas neste novo quadro de apoios, o 2030, há um boicote a tudo o que é fóssil. Temos feito saber no IAPMEI e no Gabinete do ministro da Economia, que o facto de estarmos na circularidade e na descarbonização não devia bloquear o acesso a incentivos. Se tivermos apoios, seguramente iremos entrar na mobilidade. Se não, teremos de verificar porque, enfim, os recursos são sempre limitados.

     

    É a perspetiva de que o vosso negócio é insustentável?

    Não é insustentável, porque do ponto de vista ambiental já temos, inclusive, uma certificação de sustentabilidade. E é sustentável enquanto existirem hidrocarbonetos. A EMSA - Agência Europeia da Segurança Marítima tem previsto que até 2050 pelo menos 19% dos navios vão continuar a usar fuel óleo. Não há uma solução que sirva para todos. Até agora tínhamos a economia centrada no carbono, no futuro não sabemos no que será. Sabemos que será um misto de várias coisas. Por outro lado, não somos um país rico, e esta é uma questão muitas vezes esquecida pelos atores da sustentabilidade e pelos governantes. Substituir a frota de camiões ou veículos por elétricos custa muito dinheiro. E não é claro que a substituição de um carro funcional, ainda que a combustão, seja mais eficaz do ponto de vista ambiental. A eletrificação de um conjunto de setores não é imediata.

    Visões muito afuniladas não enriquecem a discussão.

    Alguns países, como a Alemanha, opuseram-se ao fim da produção de motores a combustão. Foi uma boa decisão?

    Os propósitos das objeções são claros: proteger a indústria. Mas a eletricidade é produzida nalgum sítio e ainda não é toda verde. Não podemos ter uma indústria que está 100% assente na eletrificação e depois não ter óleos lubrificantes. Há um equilíbrio que tem de se manter. Os motores a combustão por si só não são o elo mais fraco do processo. Temos de encontrar soluções e combustíveis mais descarbonizados que, na análise do ciclo de vida, possam ter menos emissões que os tradicionais. E isso hoje já é possível. Visões muito afuniladas não enriquecem a discussão.

     

    Qual o investimento que vai ser necessário para aplicar esse combustível na mobilidade?

    Podemos estar a falar num investimento entre dois a quatro milhões.

     

    O sistema financeiro tem de descarbonizar a sua carteira de crédito. Têm tido facilidade em aceder à banca?

    Sim, a Eco-Oil é, nos últimos três anos, uma PME Excelência e temos sido quase sempre PME Líder. E recebemos este ano um prémio de inovação da banca. Somos vistos como um exemplo de circularidade e de boas práticas na gestão dos resíduos. Quando abordei o secretário de Estado da Economia e do Mar sobre esta questão [do Portugal 2030] ele achou um disparate não termos acesso simplesmente por estarmos na área do fóssil. Com certeza que os resíduos são fósseis, mas o que estamos a fazer é descarbonizar esses resíduos, a aproveitá-los da forma mais inteligente.

     

    A igualdade de género não é fácil neste setor?

    Neste momento, das sete pessoas que temos em lugares de decisão três são mulheres. Não temos senhoras operadoras, mas estamos a fazer um balneário para permitir fazer esse recrutamento. Com a escassez de mão de obra, quando se coloca um anúncio para operador, mais surpreendente do que ter poucas respostas é ter tantas candidaturas femininas. Quando começámos a recrutar senhoras para a gestão intermédia e de decisão foi claro que trazem muita riqueza ao processo de decisão, com formas diversas de abordar os mesmos problemas. 

     

    Estamos a viver uma crise política relacionada com processos judiciais ligados à transição digital e à transição energética. Isto pode atrasar a nossa transição?

    A transição faz-se essencialmente com as empresas, não se faz com o Estado. O Estado tem instrumentos que podem motivar ou desincentivar. Para os grandes projetos, eventualmente para o hub de Sines, pode haver algum revés nos investimentos estrangeiros. Mas as grandes empresas nacionais com a sua estratégia já definida, não acredito que sejam abaladas. Poderá haver um menor enquadramento do ponto de vista legal e dos processos de licenciamento. Mas mesmo esses, com a competência que reconhecemos na Agência Portuguesa do Ambiente, ainda que tenha muito poucos meios, não afetará o dia a dia do país. Não vejo que sejamos prejudicados.

     

    E os conflitos que rodeiam a Europa, podem gerar atrasos na transição?

    Sim, desaceleram a transição. Basta ver a Alemanha, que fechou centrais nucleares e abriu centrais a carvão. Desfoca a capacidade de alocar recursos para a transição energética. Quando temos a Europa a militarizar-se novamente, quando temos este conflito na Europa e no Médio Oriente, com o Brent a subir e a descer de forma difícil de compreender e ao sabor das reuniões da OPEP, empresas como a Eco-Oil, que importa resíduos indexados ao valor do Brent para transformar em combustível, pode ter margens de refinação negativas, o que não contribui para a estabilidade e para a solidez financeira. São instabilidades a acrescentar aos desafios diários de uma empresa como a Eco-Oil e que está no mercado a tentar fazer a sua parte no contributo para a sustentabilidade, quer do nosso negócio, quer do ambiente.

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