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Lei Europeia do Clima está no caminho certo mas não é suficiente

Apesar de a Europa assumir a dianteira nas medidas contra as alterações climáticas, as metas não serão suficientes para alcançar o Acordo de Paris. Principalmente se as restantes regiões não assumirem um compromisso semelhante.

05 de Maio de 2021 às 11:00
Filipe Duarte Santos diz que a descarbonização na UE se fará, maioritariamente, através de processos regulatórios. Luís Manuel Neves
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As regras têm de ser mais rígidas, as metas têm de ser mais ambiciosas. E foi assim que, há dias, a presidência portuguesa do Conselho da União Europeia (UE) e o Parlamento Europeu chegaram a um acordo político provisório sobre a Lei Europeia do Clima. Mas o que difere do que estava previamente estabelecido? Para Filipe Duarte Santos, professor catedrático do Departamento de Física da FC-UL, regendo disciplinas nas áreas da Física, Ambiente e Alterações Globais, e diretor do Centro de Física Nuclear da Universidade de Lisboa, a resposta é simples: "A principal diferença foi um acordo de princípio de aumentar a redução das emissões de gases com efeito de estufa de 45% para 55% até 2030, relativamente a 1990, para ficar em melhores condições de atingir a neutralidade carbónica em 2050." No entanto, isso não "vale" para todos os países, acrescenta, apontando o caso da Polónia, onde "80% da energia elétrica provém atualmente da combustão do carvão das suas minas".

Já Pedro Nunes, da ZERO - Associação Sistema Terrestre Sustentável, considera que "anteriormente não havia uma lei do clima, havia uma arquitetura climática constituída por diversas políticas no âmbito do clima, entre as quais as diretivas europeias na área da energia e clima se incluem. A nova Lei do Clima da União Europeia, que para já existe apenas na forma de acordo político entre o Parlamento, a Comissão e o Conselho, é mais uma peça, uma peça-chave, dessa arquitetura". Quanto às metas anunciadas há que ter em conta que "os -55% são em termos líquidos, isto é, incluem as emissões ‘negativas’ dos sumidouros, nomeadamente florestas, que absorvem CO2". O que levanta um problema. "As emissões negativas não correspondem a efetivos cortes nas emissões - que é o que é impreterivelmente necessário -, podem ser mal contabilizadas, demoram muito tempo a materializar-se (uma floresta demora dezenas de anos a crescer, e pode entretanto arder), e portanto não deviam ter sido incluídas". Isto levou à decisão de dar prioridade às reduções de emissões sobre os sumidouros, tendo sido introduzido um "limite de 225 Mt de CO2 equivalente à contribuição das remoções para a meta líquida", o que significa que, "na prática, a meta de redução de emissões é de 52,8%, bem abaixo dos 60% pedidos pelo Parlamento Europeu". Um ponto importante (e preocupante) está relacionado com as "medidas que estavam em negociação, como a de tornar a meta de neutralidade climática vinculativa não só a nível da UE mas também a nível dos Estados-membros, e a eliminação gradual dos subsídios aos combustíveis fósseis até 2025, e caíram".

Mas este não pode ser apenas um movimento europeu. Sendo que Filipe Duarte Santos acredita que a descarbonização, na UE, dar-se-á principalmente através de processos regulatórios enquanto nos EUA será sobretudo por meio de incentivos, fiscais e outros.

A única forma de os países europeus conseguirem cumprir as metas estabelecidas passa, no caso de soluções tecnológicas, por "introduzir energias renováveis em larga escala, complementadas com armazenamento energético, no sentido de descarbonizar completamente os sistemas elétricos, e aumentar a eficiência energética, nomeadamente do edificado", refere Pedro Nunes. A par de uma eletrificação da sociedade, diga-se recurso à mobilidade elétrica, quer dos particulares, quer do transporte pesado. A forma de o conseguir poderá passar pelo "financiamento por fundos públicos exclusivo a projetos que cumpram os objetivos climáticos, benefícios fiscais a tecnologias sustentáveis, medidas que recompensem o autoconsumo, o fim dos subsídios aos combustíveis fósseis, os regulamentos e normas (por exemplo na eficiência energética ou nos combustíveis), os roteiros nacionais na área da energia e clima, as metas climáticas, as políticas que façam diminuir os custos de investimento em projetos de energias limpas, a lei do clima, o estímulo à investigação e aplicação científica, entre muitas outras políticas".

Independentemente da tecnologia e/ou políticas utilizadas, estas por si só não conseguirão nada se o comportamento das pessoas não mudar.

A Europa num esforço que tem de ser global

As metas definidas para 2030 e 2050 são (aparentemente) ambiciosas. A questão é se serão suficientes. E se o esforço europeu bastará tendo em conta o panorama mundial. Pedro Nunes refere que "no caso da UE, a redução das emissões domésticas até 2030 compatíveis com o Acordo de Paris terá de ser de 58-70% com referência a 1990". O que significa que "o acordo da UE de reduzir as emissões em 55% até 2030 não é compatível com a limitação do aquecimento global em até 1,5°C do Acordo de Paris". O ambientalista afirma mesmo que "uma meta de -65% de emissões seria o ajuizado". Já Filipe Duarte Santos considera que bastaria reduzir 60% até 2030. Nesse caso, a "UE juntar-se-ia assim ao Reino Unido, que adotou metas domésticas totalmente compatíveis com o Acordo de Paris", aponta Pedro Nunes, acrescentando que "uma maneira de compensar esta meta frouxa da UE é através do apoio a nações menos ricas para que elas consigam reduzir as suas emissões, contribuindo assim a UE de forma mais justa para o objetivo planetário de mitigação das emissões". Filipe Duarte Santos, por seu lado, afirma que, "no grupo de países e regiões que são os maiores emissores de gases com efeito de estufa, a UE é de longe aquele que mais se aproxima do que é necessário fazer globalmente para cumprir o Acordo de Paris". E dá o exemplo dos Estados Unidos da América. "O objetivo enunciado pelo Presidente Joe Biden de reduzir de 50 a 52% as emissões em 2030 relativamente a 2005 corresponde a uma redução inferior a 45% relativamente a 1990, que é o ano de referência adotado pela UE."

Aliás, a "entrada" de Biden trouxe uma nova postura dos EUA, regressando ao Acordo de Paris. O que isso significa concretamente? Que, como afirma o ambientalista da ZERO, "na próxima década vão ter de fechar todas ou quase todas as duzentas centrais a carvão que no país ainda operam, e introduzir renováveis em substituição; a maior parte dos novos automóveis terão de ser elétricos; as frotas de autocarros terão de ser descarbonizadas; e o uso de gás em construção nova deixará de existir, entre muitas outras medidas".

Nos EUA (e não só, na verdade em todo o mundo) nas próximas décadas terão de se registar alterações profundas "na indústria pesada, na agricultura, nas estratégias de uso do solo e no transporte aéreo e marítimo, responsáveis por grande parte das emissões de carbono e metano". Como refere Pedro Nunes ainda não se sabe muito bem como os EUA vão fazer isso. "No global, o plano de recuperação americano é um plano que só tem precedentes com o New Deal de Franklin Roosevelt. O investimento é megalómano, e a sua total aprovação pelo Congresso não é trivial, mas muitos republicanos já estão convencidos da emergência climática em que vivemos, pelo que não é de todo impossível conseguir a aprovação". Um processo que o professor da FC-UL considera ser complexo. Mesmo porque "nada nos garante que o próximo Presidente dos EUA não reverta os esforços de transição energética feitos pelo Presidente Joe Biden".

E depois convém não esquecer de que este é um problema à escala global e onde não há uma solução fácil, porque, como lembra Filipe Duarte Santos, "os países que não pertencem à OCDE, ou seja, as economias emergentes e em desenvolvimento, estão com aumentos anuais das emissões muito superiores às dos países da OCDE". O que significa que necessitam "não só do exemplo dos países da OCDE, como da sua ajuda em grande escala".

No caso dos países asiáticos, o professor da FC-UL acredita que estes "estão plenamente convencidos da perigosidade das alterações climáticas e não duvidam de que sejam de origem antropogénica", no entanto, alerta, "o seu ponto de partida é muito diferente dos EUA e da UE, que são economias avançadas". Basta pensar que em 2019 "os EUA, UE-27, China e Índia emitiram 16,06; 6,7; 7,1 e 1,9 toneladas de CO2 por pessoa, o PIB por pessoa foi de 65.281, 34.944, 10.262 e 2.104 dólares e as populações eram 328, 448, 1398 e 1366 milhões, respetivamente". Para Filipe Duarte Santos, estes números revelam a natureza do problema. E questiona: "Por que razão a China e a Índia não podem ter a ambição de atingir os mesmos níveis de prosperidade económica e de bem-estar dos EUA e da UE?" Isto apesar de, acrescenta, a China estar a fazer um grande esforço para descarbonizar a sua economia. "Atualmente, à escala global, a China produz 70% dos painéis fotovoltaicos, 50% dos veículos elétricos e 31% da potência eólica." E isto é extremamente importante dado que "a China é de longe a economia asiática com mais peso nas emissões", refere Pedro Nunes. Já a Índia, acrescenta "que pesa cerca de 7% nas emissões mundiais, é mais delicada, dado o caráter ainda muito subdesenvolvido da sua economia".

Feitas as contas, todas as medidas anunciadas, quer pela UE, quer pelos outros países, não são suficientes para cumprir o Acordo de Paris. Como afirma Pedro Nunes, "é preciso pensar em estratégias de adaptação, para além de mitigação das emissões". E pensar já.

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