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São precisos governos “criativos” para a transição

Até agora, os governos têm tido um papel “relativamente pequeno” no combate às mudanças climáticas, afirma Bill Gates, reforçando a importância da ação dos mesmos. O empresário apela a medidas “criativas” e que estimulem a inovação.

24 de Fevereiro de 2021 às 15:00
Bill Gates,Copresidente da Fundação Bill & Melinda Gates Hannah McKay
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Os governos  serão cruciais para contrariar as alterações climáticas, defende Bill Gates. O empresário apela a criatividade nas políticas, de forma a facilitar o surgimento de  soluções adequadas e atempadas.

 

Diz que os governos tentaram, muitas vezes, usar regras que já tinham sido adotadas para resolver outros problemas, agora no sentido de reduzir as emissões – uma abordagem semelhante a tentar "criar inteligência artificial usando um computador ‘mainframe’ dos anos 60". Porém, introduzir legislação nova e abrangente é difícil, até porque os produtores incumbentes resistem a padrões mais elevados e a outras mudanças caras. Como alguém que está do lado "regulado" da equação regulatória, que soluções vê para resolver o problema das políticas desadequadas?

Precisamos de ação governamental para resolver este problema – trata-se de fazer a transição de todo o sistema de energia do mundo a uma velocidade sem precedentes. Os investimentos do setor privado por si só não terão sucesso, a menos que tenhamos condições de mercado que recompensem a inovação e permitam que as tecnologias limpas sejam competitivas. Precisamos do governo para ajudar a criar esse ambiente. Portanto, necessitamos de ação governamental que seja direcionada, robusta e previsível. É por isso que não falo sobre inovação apenas no que diz respeito à tecnologia, mas também no que toca às políticas e mercados. Precisamos que os legisladores pensem de forma criativa sobre as maneiras certas de estimular a inovação em energia limpa, criar condições equitativas e acelerar a transição energética. A minha equipa na Breakthrough Energy está a trabalhar com líderes do governo para desenvolver e defender as políticas que são necessárias para obter zero emissões líquidas.

 

Além da política, sugere que os governos devem ser mais ousados??no investimento em investigação relacionada com o clima. Que papel devem as universidades desempenhar, tanto em termos de investigação quanto na transmissão do conhecimento necessário para moldar as políticas?

As universidades oferecem um ambiente onde se fomentam ideias e desenvolvem tecnologias limpas. A ciência, a pesquisa e a engenharia nas universidades do mundo inteiro estão entre os fatores mais importantes para nos ajudar a atingir as zero emissões líquidas. Obviamente, as descobertas precisam de sair do ambiente universitário para dar forma a novas políticas e moldar o mercado. Algumas instituições académicas estão a esforçar-se por ajudar os seus professores a  comunicarem com mais eficácia, a tornarem as suas investigações mais relevantes para quem formula as políticas e a impulsionarem as suas descobertas tecnológicas para que estas cheguem às empresas e aos mercados. Estas peças são cruciais para se evitar um desastre climático.

 

Enfatiza que o argumento moral para a ação climática é tão forte quanto a argumentação económica, porque as alterações climáticas prejudicam desproporcionalmente os mais pobres do mundo. Mas a ação climática também tem implicações na distribuição de riqueza. Como aponta, mesmo um prémio verde muito baixo para descarbonizar todo o sistema elétrico dos Estados Unidos pode não ser acessível para as famílias de rendimentos mais baixos, e os países em desenvolvimento estão numa posição muito mais fragilizada para realizar uma transformação destas. Como se podem superar estes desafios? O seu trabalho de implementar outras tecnologias em cenários de rendimentos mais baixos contém lições relevantes?

Este é um tópico extremamente importante. Os países de rendimentos baixos e médios vão usar mais energia nas próximas décadas, à medida que saem da pobreza. Todos nós devemos querer que essa energia seja limpa – mas eles só se comprometerão a usar energia limpa se ela for tão barata quanto os combustíveis fósseis são hoje. Portanto, quando se é um líder de um país rico, a pergunta que deve ser feita é o que o respetivo governo ou empresa está fazer para tornar a energia acessível para o mundo inteiro se tornar verde – incluindo países de rendimentos médios e, eventualmente, baixos. O alargamento do investimento em investigação e desenvolvimento (I&D) e outras políticas deve ter isto como objetivo. Muitas das empresas em que estou a investir estão a trabalhar em ideias que seriam acessíveis em países de rendimentos baixos.

 

Está entre os líderes empresariais que reconhecem publicamente o papel crucial do governo em qualquer grande desafio, como é o caso das mudanças climáticas. Enfrentá-las exigirá um papel mais alargado para o setor público do que até mesmo as vozes mais adeptas da intervenção do governo estão acostumadas?

A transição para uma economia de energia limpa terá que ser impulsionada tanto pelos governos quanto pelo setor privado, trabalhando em conjunto – tal como aconteceu com a revolução dos computadores pessoais. Isto significa um papel maior para o governo, tão somente porque esse papel tem sido relativamente pequeno até agora. Consideremos o aumento de cinco vezes em I&D do setor público [que Bill Gates recomenda]. Este aumento colocaria a investigação em energia limpa ao mesmo nível da investigação em saúde nos Estados Unidos. E, assim como temos os Institutos Nacionais de Saúde para supervisionar e coordenar esse trabalho, deveríamos criar os Institutos Nacionais de Inovação Energética (INIE) para evitar a duplicação e fazer o melhor uso desses recursos. Além disso, um Instituto de Descarbonização do Transporte seria responsável pelo trabalho em combustíveis de baixo carbono. Outros institutos teriam responsabilidades e uma autoridade semelhantes para a investigação sobre armazenamento de energia, energias renováveis, ??e assim por diante. O INIE também seria responsável pela coordenação com o setor privado. O objetivo seria ter investigação vinda de laboratórios nacionais que levassem a produtos inovadores e que estes chegassem ao mercado numa muito grande escala. Precisamos de políticas que acelerem todos os canais de inovação, desde a investigação inicial até a implementação em massa.


"Não temos tempo a perder" e há que mudar hábitos

Bill Gates revela-se "otimista" quanto à capacidade de travar as alterações climáticas, embora sublinhe a urgência da ação para que tal seja de facto possível. O próprio garante que avalia as consequências ambientais das suas ações e tenta compensá-las, além de procurar ter um comportamento mais amigo do ambiente. Algo que aconselha especialmente nos países ricos.

Em determinado ponto do livro, escreve que "além de encontrar maneiras de produzir materiais com emissões zero, podemos simplesmente usar menos coisas". Alguns argumentariam que o capitalismo depende do consumo - quanto mais, melhor. Uma verdadeira solução para a crise climática depende de uma nova visão do capitalismo para o século XXI? Poderia um novo conceito mais qualitativo de "crescimento" ser a base de um sistema deste tipo?
Acho que as pessoas no mundo rico podem e devem reduzir um pouco as suas emissões. Como mencionei no livro, estou a tomar uma série de medidas para reduzir e compensar minhas próprias emissões. Mas o uso de energia vai duplicar em todo o mundo até 2050, impulsionado por um importante crescimento em países de rendimentos baixos e médios. Esse crescimento é bom, na medida em que indica que as pessoas estão a viver a sua vida de forma mais saudável e produtiva. Mas precisamos de fazer isto de uma forma que não torne o problema climático mais difícil de resolver. É por isso que precisamos de inovação que torne a energia barata o suficiente para que todos, em todo o mundo, eliminem as emissões.

O Bill Gates escreve que o seu "livro é sobre o que será necessário para [evitar uma catástrofe climática] e por que acho que podemos fazer isso". Honestamente: acredita que vamos agir em conjunto e a tempo?
Sim, como escrevi no final do livro, estou basicamente otimista porque vi o que a tecnologia pode fazer e o que as pessoas podem fazer. O que precisamos é de passar a próxima década a implementar políticas corretas, tecnologias e estruturas de mercado para que a maior parte do mundo possa ter emissões zero até 2050. Não temos tempo a perder.
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