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As vidas que não são aproveitadas do vidro

Uma garrafa retornável pode ter 20 vidas. E depois ainda incorporar, como vidro reciclável, as vidas de outra garrafa. No entanto, as taxas de reciclagem de vidro em Portugal são ainda extremamente baixas, principalmente tendo em conta o seu potencial. O problema está no desajuste entre o modelo de recolha existente e o setor corporativo, nomeadamente o canal horeca.

09 de Novembro de 2022 às 10:00
Ana Morais, CEO da Sociedade Ponto Verde, diz que o país ficou aquém das metas de reciclagem definidas. Duarte Roriz
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É um pouco anacrónico. Portugal tem uma longa tradição vidreira e, no entanto, não aproveita todo o seu potencial de reciclagem desse material. No ano passado pouparam-se quase 2.500 toneladas de vidro, mas, mesmo assim, o país ficou aquém das metas de reciclagem definidas. E curiosamente, lembra Ana Morais, CEO da Sociedade Ponto Verde, o vidro foi o primeiro resíduo embalagem a começar a ser reciclado. Há já 25 anos. E se no início o país reagiu muito bem na criação da infraestrutura, para a recolha dos recicláveis que resultam do grande consumo, o certo é que, na opinião da responsável pela Sociedade Ponto Verde, tem havido alguma lentidão na forma como o país tem desenhado as suas soluções nacionais para aumentar a reciclagem e com especial ênfase no vidro.

O grande problema, para Ana Morais, prende-se com a estrutura e os serviços que os cidadãos têm no pós-consumo. A solução, acredita, passa pela digitalização da cadeia de valor, para a tornar conveniente. "Falta serviço", afirma, acrescentando "falta forma de ir buscar os recicláveis, falta capacidade para o consumidor ter confiança no sistema". É certo que os números da recolha do vidro cresceram - 11% até agosto, segundo os últimos dados - mas "é um crescimento pequeno para a ambição da Sociedade Ponto Verde".

Os números recolhidos indicam que, no primeiro semestre do ano, foram enviadas para reciclagem 100.119 toneladas de vidro. A Sociedade Ponto Verde destaca o desempenho do vidro, "material que é destinado ao ecoponto verde e cuja tendência de crescimento está a verificar-se, de forma consecutiva, nos últimos dois anos". A associação acredita que o bom desempenho se deve ao "compromisso assinado entre os agentes do setor de superar as metas da reciclagem deste material para 2025". Atualmente, a taxa de reciclagem do vidro é de 56% em Portugal e o objetivo é chegar aos 75% até 2025.

A principal questão prende-se com o canal horeca, principal consumidor da embalagem vidro. Acontece que a estrutura existente não se adequa às especificidades deste negócio. Não faz sentido que um restaurante, por exemplo, vá reciclar as dezenas de garrafas no final do expediente. As pessoas que moram perto do estabelecimento não gostam, com certeza, do barulho das garrafas a partirem-se quando entram no vidrão. É por isso que Ana Morais defende uma reformulação do circuito de recolha, com "planos" específicos para o setor corporativo, nomeadamente para o canal horeca.

A CEO da Sociedade Ponto Verde lembra que, em Portugal, o sistema de reciclagem assenta nos cerca de 70 mil ecopontos que estão distribuídos pelo país. "Há um modelo de serviço e de reciclagem que não distingue o consumo dentro de casa do consumo fora de casa", o que levanta o problema, o que faz com que "o incentivo esteja deslocado do objetivo".

Para resolver este desajustamento estão a ser feitos pilotos no país com um novo serviço ao canal horeca que basicamente passa por disponibilizar uma forma mais fácil de os espaços, no final do dia, despacharem o vidro para um ecoponto. O projeto começou no ano passado e apesar de, segundo Ana Morais, os resultados ainda serem incipientes, mostram "uma capacidade extraordinária de escalar para todo o país".

A CEO da Sociedade Ponto Verde deu o exemplo de Vouzela onde, em seis meses de operação, tiveram 62% de crescimento de recolha de vidro embalagem. "Em Guimarães, com a disponibilização dos equipamentos adequados, tivemos um aumento de 10 toneladas de vidro recolhido em mês e meio."

Face aos resultados obtidos com os projetos-piloto a convicção de Ana Morais é de que "precisamos de mudar o modelo de recolha de recicláveis", isto porque "o sistema de ecopontos já não é suficiente", nomeadamente no canal horeca.

Uma garrafa retornável tem 20 vidas

Felizmente, nem todo o vidro consumido em hotéis, bares, cafés, restaurantes, pastelarias... vai parar ao contentor (ou ao lixo). Como refere Nuno Bernardo, administrador de marketing do Super Bock Group, 86% do volume de cervejas que é vendido no horeca é feito através de tara retornável. "Fazemos isso através de barril, que tem décadas de vida que pode retornar e fazemos isso através de garrafas de vidro retornável quando o barril não é solução para esse ponto de venda."

A verdade é que são dois negócios indissociáveis: a reciclagem e a produção e venda de bebidas. Porque os produtores - que têm como objetivo a incorporação de vidro reciclado nas suas embalagens - não terão acesso a matéria-prima se a taxa de reciclagem não aumentar. Uma espécie de pescadinha de rabo na boca. Sobre isso Nuno Bernardo refere que a prioridade do grupo é sempre a tara retornável. "Uma garrafa retornável tem 20 vidas", afirma, acrescentando que hoje já cerca de 50% do vidro que se encontra nas garrafas retornáveis e de tara perdida é reciclável.

A importância da consciencialização

O consumidor tem de perceber que tudo o que não vai parar ao ecoponto acaba num aterro. O que não só é mau para o planeta como implica custos extras, que irão ser pagos pelo consumidor. "Vai ser um custo acrescido no seu próximo momento de consumo", aponta Ana Morais. Falta a valorização das embalagens como matéria-prima. Pelo que "a consciencialização é fundamental". E se é verdade que há inúmeras campanhas de sensibilização, a opinião da CEO da Sociedade Ponto Verde é a de que "não é por aí que vamos resolver o conjunto do problema". A solução está sim, "no serviço e na forma como desenhamos o ecossistema para servir os diferentes segmentos de utilizadores de vida da embalagem". Porque no final das contas o reciclar não deve ser isto como um esforço.

E, numa altura em que o preço das matérias-primas não pára de aumentar - a par de uma grande escassez - "é uma irracionalidade termos uma escassez de vidro para alimentar até os nossos colegas da cadeia de valor da indústria vidreira e, em vez de estarmos a colocar o vidro nos ecopontos para entregar à indústria, estamos a enterrá-los ou a valorizá-los energeticamente e o país tem de importar". Afirma Ana Morais, acrescentando que, com isto, estamos a causar um grande prejuízo ambiental ao país.


Vantagens da reciclagem das embalagens de vidro

Poupança de matérias-primas
Menor consumo de recursos minerais e industriais. Para produzir 1 tonelada de vidro é suficiente 1 tonelada de casco de vidro (em alternativa a 1,2 toneladas de matérias-primas originais).

Economia de energia
Quer diretamente na fusão (por cada 10% de casco de vidro incorporado, reduz-se 2,5% de energia, em termos unitários) quer, indiretamente, nas matérias-primas substituídas.

Proteção do meio ambiente
Resulta numa menor poluição global porque:
Evita a deposição em aterro das embalagens usadas (apesar de o vidro ser inerte);
Reduz os efeitos das emissões gasosas, quer as do processo de fusão do vidro, quer as do fabrico de certas matérias-primas.

Hábitos sociais de poupança
Cria hábitos na população, quer através da proteção ambiental, quer através da consciencialização de que os recursos naturais são limitados.

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