Opinião
O valor da banha da cobra
O colapso do negócio do rendimento garantido nos selos vai ter efeitos colaterais. É bom que os tenha. Se não, é porque não aprendemos nada com isto.
«Isto» era uma proposta de negócio perfeitamente legal: o investidor comprava lotes de selos, que ficavam depositados nos cofres da empresa em troca de um certificado de garantia (o que é normal por exemplo quando se compra ouro) e era-lhe garantida uma taxa de retorno até 10% bem como uma opção de venda dos selos à empresa, a exercer alguns anos depois. Mas «isto», acusam as autoridades espanholas, escondeu outras coisas: fraude, sobreavaliação do preço dos selos, venda de selos que não existiam e suspeitas de branqueamento de capitais.
«Isto» foi um negócio que durou anos. E que não foi considerado pelas autoridades dos mercados financeiros e de capitais como sendo actividade por si regulável. Que não, que era pura actividade comercial, de compra e venda de selos.
Mas «isto» também só foi possível por ignorância dos investidores. Ignorância sobre o mercado, ignorância sobre os activos em questão e ignorância sobre as garantias que achamos ter dessa coisa difusa chamada «autoridades». E por mais que agora se diga e escreva que a impossibilidade de garantir aqueles retornos era evidente, que só os lorpas cairiam naquele conto do vigário e que até toda a gente já sabia do esquema, a verdade é que não podemos estar tranquilos. Porque a ignorância persiste. Sobre os selos (que têm sido, factualmente, um bom investimento) e sobre outros investimentos de bens ditos «tangíveis». Numismática, ouro, antiguidades, arte contemporânea.
Estes são mercados de «investimentos alternativos». São alternativos porque neles falta o que de melhor têm por exemplo os mercados de capitais: transparência, liquidez e supervisão. Num leilão de arte, por exemplo, tudo parece transparente. Afinal, o preço forma-se através do cruzamento puro da oferta e da procura, certo? Não, não é certo que assim seja. Porque a «oferta» é mais inteligente que muita «procura». Em Portugal, a procura de arte está cheia de novos ricos ignorantes, que compram obras de jovens promessas porque lhes dizem que sim e pagam balúrdios por obras de artistas consagrados porque é investimento seguro. Mas seria curioso ir a Paris ou Roma tentar vender alguns dos «valores seguros» da nossa produção consagrada. Alguns talvez valessem muito pouco. Há valores que só são seguros até ao limite do quintal da casa.
Há quem compre arte por razões afectivas - e aos afectos é difícil dar um preço. E há quem compre por investimento. E muitos fazem-no amadoramente. Mas comprar activos que não estão cobertos por fundos de garantia, em mercados que não estão sujeitos a supervisão (do Banco de Portugal ou da CMVM) é um risco. E é bom termos noção que os mercados de «bens tangíveis» estão repletos de fraudes, peças falsificadas, empolamento de preços, leilões viciados e casos de branqueamento de capitais. Em países como Itália, que tem o património que tem, a própria polícia, os «carabinieri», tem uma divisão específica para o mercado de arte - e trabalho não lhe falta. Em Portugal, a vulnerabilidade é imensa.
Selos, arte, moeda, antiguidades podem ser um bom investimento. Ou uma patranha. São os próprios intervenientes nestes mercados que o dizem. Leiloeiros, galeristas, artistas, coleccionadores e investidores são todos prejudicados pela «roda livre», que só beneficia um tipo de especialistas: os burlões.