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A ameaça da bitcoin

A menos que uma moeda tenha sido autenticada por um governo, é improvável que seja totalmente confiável. Mas isso não significa que não se possa tornar um brinquedo para o ingénuo e o crédulo, ou uma arma de destruição financeira em massa para os beligerantes políticos em todo o mundo.

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A extraordinária volatilidade da bitcoin e outras criptomoedas tornou-se uma ameaça não só para o sistema financeiro internacional, mas também para a ordem política. A tecnologia blockchain na qual as criptomoedas se baseiam promete um método de pagamento melhor e mais seguro do que qualquer coisa jamais vista, e alguns acreditam que as criptomoedas substituirão o dinheiro electrónico em contas bancárias tradicionais, assim como as transferências electrónicas substituíram o papel-moeda, que sucedeu o ouro e a prata.

 

Mas outros suspeitam, com razão, que essa nova tecnologia pode ser manipulada ou abusada. O dinheiro faz parte do tecido social. Durante a maior parte da história da civilização humana, forneceu uma base para a confiança entre pessoas e governos, e entre indivíduos através do intercâmbio. Quase sempre foi também uma expressão de soberania, e as moedas privadas têm sido muito raras.

 

No caso do dinheiro metálico, as moedas costumavam ter emblemas da identidade do Estado, sendo um dos primeiros exemplos a coruja que simbolizava a cidade de Atenas. No entanto, havia geralmente alguma confusão sobre se os emblemas nas moedas representavam soberania ou divindade. De quem é a cabeça nesta moeda? É Filipe da Macedónia ou Alexandre o Grande, ou é Hércules? Mais tarde, os imperadores romanos explorariam essa ambiguidade, estampando moedas com o seu próprio rosto "divino". E até hoje, as moedas britânicas têm palavras em relevo que ligam a monarquia a Deus.

 

Seja qual for o caso, há um padrão claro ao longo da história: Estados maus produzem dinheiro mau, e o dinheiro mau leva a Estados falhados. Durante períodos de inflação ou hiperinflação, a desvalorização radical da moeda destrói a base da ordem política. Por exemplo, a Guerra dos Trinta Anos na Europa Central durante o século XVII foi alimentada em grande parte pela desintegração social após um período de instabilidade monetária.

 

Da mesma forma, durante a Revolução Francesa, a especulação num papel-moeda indexado à propriedade "nacional" que havia sido confiscado dos aristocratas e da igreja minou a legitimidade dos jacobinos. No século XX, os períodos de inflação durante e depois das duas guerras mundiais destruíram as instituições políticas da Europa e alimentaram as chamas do radicalismo. De facto, Vladimir Lenin considerava a impressão de moeda como a "maneira mais simples de exterminar o próprio espírito do capitalismo" e a democracia burguesa.

 

Além de ser um dos principais factores por trás da desintegração dos Estados, o dinheiro mau também tem sido uma característica fundamental dos conflitos entre Estados. Para Estados beligerantes, criar ou explorar a turbulência monetária tem sido historicamente uma forma barata de destruir opositores. Mesmo em tempo de paz, alguns Estados responderam à deterioração das relações plantando dinheiro falso para semear a discórdia fora das suas fronteiras.

 

O exemplo mais conhecido de uma guerra monetária desse tipo é o esquema da Alemanha nazi de imprimir notas dos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial. As notas contrafeitas podiam, naturalmente, ser usadas para comprar recursos escassos ou pagar espiões. Mas a Alemanha também planeou o uso de bombardeiros de longo alcance para lançar notas falsas sobre a Grã-Bretanha. Não dá para imaginar a desmoralização e o caos que isso teria provocado. Qualquer pessoa com uma grande quantidade de dinheiro seria automaticamente suspeita, e a confiança pública desapareceria rapidamente. Lançar dinheiro pode ser muito mais devastador do que lançar bombas.

 

O dinheiro é ainda mais fácil de manipular quando é internacionalizado. Na era moderna, Estados párias, como a Coreia do Norte, falsificaram notas com alguma regularidade, particularmente as dos Estados Unidos. E as transferências electrónicas transfronteiriças entre bancos são muitas vezes usadas para fins maliciosos e criminosos. Até agora, porém, não houve nenhum ataque monetário globalmente devastador fora do domínio da fantasia cinematográfica.

 

É claro que houve muitos esforços políticos para minar ou substituir o dólar como a moeda global dominante. A alternativa mais atractiva parece ter sido o ouro. Em 2001, o primeiro-ministro da Malásia, Mahathir Mohamad, tentou introduzir um "dinar de ouro" como resposta ao sistema monetário baseado nos EUA. E em 2005, o chefe de segurança da al-Qaeda, Saif al-Adl, sugeriu usar o ouro para derrubar o dólar.

 

A bitcoin parece uma versão do século XXI do ouro, e os seus criadores ainda aceitaram essa analogia. É produzida - ou "minada" - através do esforço. E assim como o preço do ouro reflectiu o esforço humano necessário para extraí-lo do chão em locais remotos, a criação de bitcoins implica uma quantidade exorbitante de poder de computação, impulsionada por energia barata em áreas remotas da Ásia ou da Islândia.

 

Mas a ascensão da bitcoin representa uma mudança na forma como a sociedade percebe o valor. Enquanto as moedas metálicas pré-modernas serviram de base para a teoria do valor do trabalho - em que os bens e os serviços valem a quantidade de trabalho humano que eles implicam - a tecnologia blockchain atribui valor a uma combinação de poder de computação e energia armazenada, sendo que nenhum deles é humano.

 

Ao mesmo tempo, as criptomoedas como a bitcoin tornaram quase impossível fazer a distinção entre criminalidade do sector público e do sector privado. A Coreia do Norte tem sido suspeita de continuar as suas tentativas de manipulação monetária pela mineração e criação de bitcoin, o que levou a China e a Coreia do Sul a começar a encerrar as bolsas de bitcoin. As principais plataformas de criptomoedas como a Coincheck no Japão também impediram a negociação.

 

E, no entanto, já chegámos ao ponto em que um crash da bitcoin poderia ter sérias implicações globais. A actual exposição das instituições financeiras às criptomoedas não é clara, e provavelmente não seria totalmente revelada até acontecer um desastre financeiro. É um estranho paralelo de 2007 e 2008, quando ninguém sabia realmente qual era a exposição a hipotecas de alto risco. Até ao crash, era impossível saber que instituições poderiam colapsar.

 

Assim como não se pode dizer instantaneamente se uma notícia é "fake news", também não se consegue discernir imediatamente a validade de novas formas monetárias. A menos que uma moeda tenha sido autenticada por um governo, é improvável que seja totalmente confiável. Mas isso não significa que não se possa tornar um brinquedo para o ingénuo e o crédulo, ou uma arma de destruição financeira em massa para os beligerantes políticos em todo o mundo.

 

Harold James é professor de História e Relações Internacionais na Universidade de Princeton e membro sénior no Center for International Governance Innovation.

 

Copyright: Project Syndicate, 2018.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

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