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14 de Maio de 2014 às 13:53

Vencer quem não quer a paz na Ásia do Sul

As negociações de paz há muito esperadas entre a Índia e o Paquistão parecem ter sido adiadas para depois das eleições parlamentares indianas de Maio, e as perspectivas de conversações posteriores não são claras.

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A vitória do partido nacionalista Bharatiya Janata (BJP), de Narendra Modi,o ressurgimento dos talibans na sequência da retirada iminente das tropas norte-americanas do Afeganistão, e a persistente incapacidade do Paquistão para negociar com os talibans paquistaneses, ou para os neutralizar, apontam para um período de intensa incerteza e potencial conflito. Mas não é razão para se desistir de tentar alcançar a paz.

 

É certo que, como pacificador, Modi tem credenciais muito questionáveis, tanto no seu país como no Paquistão. Aquando dos violentos distúrbios de 2002 que provocaram a morte de mais de mil muçulmanos, Modi era ministro-chefe do Estado indiano de Gujarat. Muitos temem que, enquanto primeiro-ministro, polarize as comunidades de todo o país em divisões intercomunitárias. Além disso, até agora, revelou uma posição intransigente quanto à questão do Paquistão, e provavelmente não irá moderar o seu discurso, pelo menos de momento.

 

Mas é provável que Modi se inspire no último primeiro-ministro do BJP, Atal Bihari Vajpayee, que visitou Lahore em 1999 para falar de paz com o seu homólogo paquistanês Nawaz Sharif (que regressou ao poder em 2013). Existem bons motivos para Modi o fazer. A paz com o Paquistão fortaleceria a sua imagem pessoal, na Índia e no resto do mundo, e seria um avanço para a concretização das ambições do BJP de transformar a Índia numa grande potência. Também ajudaria a revitalizar a debilitada economia indiana, já que fomentaria o investimento estrangeiro, cujos benefícios Modi já testemunhou em Gujarat.

 

Sharif, por seu lado, já deu indicações à Índia de que deseja a paz, e por boas razões: uma aproximação à Índia é essencial para reforçar a sua posição no Afeganistão e melhorar a sua capacidade de reprimir a violência interna. A paz com a Índia permitir-lhe-ia também retirar poder ao exército paquistanês e ao seu serviço de inteligência ISI. Apesar de o início das conversações de paz com um futuro governo liderado por Modi poder provocar uma violenta oposição interna, Sharif está disposto a quebrar o gelo se os principais partidos políticos lhe derem apoio.

 

Lamentavelmente, são muitos os Estados da Ásia meridional que não desejam paz. As inúmeras tentativas do actual primeiro-ministro indiano, Manmohan Singh, no sentido de reiniciar conversações com o Paquistão, viram-se frustradas por violações da linha de controlo de Caxemira ou por incidentes fronteiriços, com tiros de artilharia – episódios que parecem ocorrer à mais pequena provocação.

 

Por agora, os políticos indianos encaram as ofertas de Sharif com suspeita. Preocupam-se com o que possa sair das suas negociações com os talibans paquistaneses e duvidam da sua capacidade para manter sob controlo as políticas do Paquistão em relação a Caxemira ou ao Afeganistão.

 

Com efeito, o maior obstáculo às negociações de paz entre a Índia e o Paquistão está na sua vulnerabilidade face aos sabotadores. Assim que o processo tenha início, é muito provável que seja perturbado – violentamente – por poderosos interesses particulares, uma vez que um acordo de paz ameaçaria a base do seu poder, bem como o apoio político que esses interesses retiram da persistência do conflito.

 

Há imensos precedentes nesta matéria. Em 1999, o general paquistanês Pervez Musharraf desestabilizou o processo de paz de Lahore ao enviar tropas para ocuparem a Faixa de Kargil, situada no lado indiano de Caxemira. A reacção militar da Índia enterrou qualquer possibilidade de diálogo. Em Dezembro de 2001, o atentado levado a cabo pelos grupos activistas paquistaneses Lashkar-e-Taiba (LeT) e Jaish-e-Mohammed (JeM) contra o parlamento indiano também arruinou as conversações oficiosas entre o governo BJP e o regime militar de Musharraf.

 

E a Índia também tem os seus sabotadores. O atentado à bomba de Fevereiro de 2007 – aparentemente por parte de fundamentalistas hindus – contra o Samjhauta Express, um serviço ferroviário que liga Nova Deli a Lahore duas vezes por semana, ocorreu pouco antes da visita do ministro paquistanês das Relações Externas, matando 68 pessoas, entre paquistaneses e indianos.

 

O facto de estes dois países serem dirigidos por governos enfraquecidos devido à falta de apoio popular reforça a posição dos sabotadores. Talvez a coligação governamental indiana, liderada pelo Congresso Nacional, considere que uma atitude firme perante o Paquistão seja a única forma de repelir as críticas do BJP e de outros partidos na oposição. E muitos indianos duvidam que faça sentido negociar com Sharif, quando nem sequer é certo que o governo cumpra todo o seu mandato, dadas as tensões entre civis e militares no Paquistão. A nomeação do flexível general Raheel Sharif como chefe do exército ajudou a descomprimir a situação, mas como o Paquistão e a Índia apoiam lados opostos no Afeganistão, um aumento das tensões neste país poderá levar a que o exército paquistanês e o ISI se reafirmem.

 

Felizmente, por agora a violência em Caxemira está apaziguada, mas pode facilmente recrudescer se os talibans consolidarem o seu poder no Afeganistão e se o ISI começar a dar mais apoio a grupos como o LeT e o JeM.

 

Apesar de a actual incerteza política, tanto na Índia como no Paquistão constituir de momento um entrave a que se celebrem conversações de paz em toda a sua extensão, isso não impede que ambas as partes comecem a tomar medidas de aproximação no sentido de resolverem diferendos de menor dimensão, como as disputas territoriais em torno do glaciar Siachen, do estuário de Sir Creek e do projecto de navegação Tulbul/projecto de barragem de Wullar. Os diferendos em torno dos direitos relativos à água e à construção de barragens podem com efeito ser alvo de negociação, a nível diplomático ou através de canais oficiosos.

 

Além disso, os dois países poderão também desenvolver uma cooperação económica e comercial, trabalhar em conjunto para combater o terrorismo e o tráfico de droga, e promover intercâmbios amigáveis em diversos âmbitos sociais e culturais. O fortalecimento das relações comerciais poderá igualmente criar interesses económicos que funcionem como contrapeso para as tensões e que contribuam para a procura de paz. Os recentes acordos no sentido de estabelecer mais sucursais bancárias e entrepostos comerciais na fronteira constituem bons pontos de partida nesse sentido, e o Paquistão já deu alguns passos para retribuir a oferta indiana, que lhe concedeu o estatuto comercial de “nação mais favorecida” (se bem que com outra designação).

 

Por si só, talvez isto não baste para garantir o êxito das negociações, se é que estas vão acontecer, mas talvez possa pelo menos suscitar uma menor tentação de as sabotar. E se os dois países encontrarem forma de evitar o agravamento de disputas de menor escala, contribuirão para instaurar uma atmosfera mais propícia à resolução da questão de Caxemira, que é a principal fonte de conflito entre ambos.

 

T.V. Paul é professor de Relações Internacionais naUniversidade McGill e autor do livro intitulado "The Warrior State: Pakistan in the Contemporary World".

 

Direitos de autor: Project Syndicate, 2014.
www.project-syndicate.org

Tradução: Carla Pedro

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