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03 de Maio de 2018 às 14:00

Os fracos argumentos da América contra a China

Sim, como todos nós, os chineses são concorrentes difíceis e nem sempre cumprem as regras. Por isso, precisam de ser responsabilizados. Mas os argumentos apresentados pelo USTR são um sintoma embaraçoso de uma mentalidade que transformou os EUA numa nação de queixosos.

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À primeira vista, o Representante do Comércio dos Estados Unidos (USTR) Robert Lighthizer parece ter apresentado fortes argumentos contra a China no chamado relatório da Secção 301, divulgado a 22 de Março. Apresentada num documento detalhado de 182 páginas (que, com 1.139 notas de rodapé e cinco apêndices, faria qualquer equipa jurídica corar de orgulho), a acusação do USTR contra a China por práticas comerciais desleais em relação à transferência de tecnologia, propriedade intelectual e inovação parece urgente e convincente. Foi rapidamente aceite como evidência fundamental para justificar as tarifas e outras medidas comerciais punitivas que o governo do presidente Donald Trump iniciou contra a China nos últimos meses. É uma munição poderosa numa potencial guerra comercial.

 

Mas não nos deixemos enganar. O relatório está muito longe da realidade em várias áreas-chave. Primeiro, acusa a China de "transferência forçada de tecnologia", argumentando que as empresas dos EUA têm de entregar os modelos de tecnologias patenteadas e sistemas operacionais para fazer negócios na China. Esta transferência é supostamente realizada dentro da estrutura de acordos de joint-venture - parcerias com empresas domésticas que a China e outros países estabeleceram há muito como modelos para o crescimento e expansão de novos negócios. Actualmente, existem mais de 8.000 joint-ventures a operar na China, em comparação com um total de mais de 110.000 joint-ventures e alianças estratégicas que foram estabelecidas em todo o mundo desde 1990.

 

Os EUA e outras corporações multinacionais entram de forma voluntária nesses acordos legalmente negociados por razões comercialmente sólidas - não apenas para estabelecer uma posição nos mercados domésticos em rápido crescimento da China, mas também como uma forma de melhorar a eficiência operacional com uma plataforma chinesa offshore de baixo custo. Retratar as empresas americanas como vítimas inocentes da pressão chinesa está em desacordo com a minha própria experiência como participante activo na joint venture do Morgan Stanley com o China Construction Bank (e alguns pequenos investidores minoritários) para estabelecer a China International Capital Corporation em 1995.

 

Sim, quando nos juntámos aos nossos parceiros na criação do primeiro banco de investimento da China, partilhámos as nossas práticas comerciais, produtos patenteados e sistemas de distribuição. No entanto, ao contrário das afirmações do USTR, não fomos forçados a esses acordos. Nós tínhamos os nossos próprios objectivos comerciais e queríamos construir uma empresa de serviços financeiros de nível mundial na China. Quando vendemos a nossa participação em 2010 - com um retorno bastante atractivo para os accionistas do Morgan Stanley, devo acrescentar -, a CICC estava bem encaminhada para atingir esses objectivos.

 

A segunda área em que o relatório da Secção 301 do USTR é problemático é a descrição do foco da China no investimento externo – a sua estratégia de "saída" - como um plano dirigido pelo Estado destinado a engolir as empresas emergentes dos EUA e as suas tecnologias patenteadas. De facto, o relatório dedica mais do dobro  das páginas a acusações relacionadas ao roubo de tecnologia externa da China por meio de aquisições - que são enquadradas como uma garra para os activos mais preciosos da América – do que aquelas que dedica às transferências internas através de joint-ventures e alegadas práticas de licenciamento injustas.

Como tal, a campanha Made in China 2025 é apresentada como prova prima facie de uma conspiração socialista desonesta para alcançar o domínio global nas grandes indústrias do futuro: veículos autónomos, ferrovia de alta velocidade, tecnologias avançadas de informação e ferramentas de maquinaria, novos materiais exóticos, biofarmacêutica e produtos médicos sofisticados, bem como novas fontes de energia e equipamentos agrícolas avançados.

 

Não importa que as políticas industriais sejam uma estratégia comprovada para os países em desenvolvimento que procuram evitar a temida armadilha do rendimento médio, fazendo uma transição da inovação importada para a inovação indígena. A China é acusada pelo USTR de patrocinar uma política industrial altamente subsidiada pelo Estado, destinada a arrebatar a supremacia competitiva de sistemas livres e abertos, como os EUA, que supostamente jogam com regras diferentes.

 

No entanto, mesmo os países desenvolvidos dependeram da política industrial para alcançar objectivos económicos e competitivos nacionais. Foi fundamental para o chamado estado de desenvolvimento racional planificado do Japão, que sustentou o seu rápido crescimento nas décadas de 1970 e 1980. O Ministério do Comércio Internacional e Indústria aperfeiçoou a arte da alocação de crédito subsidiado pelo Estado e tarifas para proteger as indústrias emergentes do Japão, um esforço que foi igualado pelo também impressionante Wirtschaftswunder da Alemanha, reforçado pelo forte apoio ao Mittelstand de pequenas e médias empresas.

 

E, é claro, foi o presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, que em 1961 chamou a atenção para o poderoso complexo industrial-militar dos EUA como o elemento central da inovação patrocinada pelo Estado e financiada pelos contribuintes nos EUA. Spinoffs relacionados com a NASA, internet, GPS, avanços em semicondutores, energia nuclear, tecnologia de imagem, inovações farmacêuticas e muito mais: todas são manifestações importantes e altamente visíveis da política industrial ao estilo americano. Os EUA fazem isso com o seu orçamento de defesa federal - onde os gastos de cerca de 700 mil milhões de dólares este ano são mais do que o total dos gastos com defesa na China, Rússia, Reino Unido, Índia, França, Japão, Arábia Saudita e Alemanha.

 

Sim, o USTR está totalmente correcto ao ressaltar o papel que a inovação desempenha na definição do futuro de qualquer país. Mas afirmar que a China depende da política industrial como um meio para esse fim é o cúmulo da hipocrisia.

 

A espionagem cibernética é a terceira falha nos argumentos do USTR contra a China. Nessa área, não há como confundir as evidências que ressaltam o papel desempenhado pelo Exército Popular de Libertação como actor importante em intrusões cibernéticas direccionadas a interesses comerciais dos EUA. Esses problemas foram, de facto, tão sérios que o presidente Barack Obama apresentou provas ultra-secretas de hackers patrocinados pelo Estado ao presidente Xi em Setembro de 2015. Desde então, a maioria dos relatórios aponta para uma redução das incursões chinesas. Infelizmente, as evidências citadas no relatório do USTR em apoio a violações comerciais são muito anteriores ao confronto.

 

Em suma, o impressionante relatório da Secção 301 do USTR é um documento político tendencioso que inflamou ainda mais o sentimento anti-China nos EUA. Como resultado, o roubo de propriedade intelectual patrocinado pela China é agora um dado adquirido numa América que se vê cada vez mais como uma vítima. Sim, como todos nós, os chineses são concorrentes difíceis e nem sempre cumprem as regras. Por isso, precisam de ser responsabilizados. Mas os argumentos apresentados pelo USTR são um sintoma embaraçoso de uma mentalidade que transformou os EUA numa nação de queixosos.

 

Stephen S. Roach, membro da Universidade de Yale e antigo chairman do Morgan Stanley Asia, é o autor de Unbalanced: The Codependency of America and China.

 

Copyright: Project Syndicate, 2018.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

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