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09 de Agosto de 2016 às 13:06

Missão: Salvar o ambiente

Cinquenta anos após o arranque desta arrojada missão, o feito extraordinário que daí surgiu está a desaparecer da memória. Mas as lições que traz para galvanizar uma comunidade internacional dividida para em conjunto fazer frente a um desafio não podia ser mais importante, especialmente numa altura em que problemas urgentes como a degradação do ambiente exigem soluções globais.

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Imaginem isto. Estamos em 1966. Estão num gabinete governamental em Washington, DC, a ver um oficial fardado a dizer a um homem com vestimenta empresarial, "a sua missão é erradicar um inimigo que matou mais gente do que as duas guerras mundiais juntas. Terá um orçamento miserável, uma equipa mínima, e caso não seja bem-sucedido, o Secretário de Estado de Saúde irá repudiar qualquer conhecimento das suas acções."

 

Isto pode parecer uma cena de um filme de Hollywood. E, de facto, espelha a cena de abertura da série televisiva, Missão Impossível, que estreou nesse ano. Mas aconteceu de verdade, mesmo que não tenha sido precisamente por estas palavras. O oficial era James Watt, o assistente do Surgeon General (O Surgeon General é nomeado pelo Presidente dos Estados Unidos com o conselho e consentimento do Senado para um mandato de quatro anos. O Gabinete do Surgeon General é parte do Gabinete do Secretário Adjunto de Saúde do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA.); o homem da missão era o cientista Donald Henderson do Centro de Doenças Contagiosas (Communicable Disease Center, CDC, na sigla em inglês), e o inimigo era a varíola.

 

A missão seguramente parecia impossível. Na altura, a varíola matou até dois milhões de pessoas, e contagiava outros 15 milhões a cada ano. E no entanto, como na série, Henderson e a sua equipa na Organização Mundial da Saúde superaram as expectativas. Em pouco mais de uma década, a varíola tornou-se a primeira – e até agora, a única - doença infecciosa alguma vez a ser totalmente erradicada.

 

A chave para este tremendo feito da medicina não foi, como seria de se esperar, um grande avanço na saúde (a vacina da varíola existia desde o século dezoito). Foi a diplomacia, a versatilidade e a cooperação.

 

Desde o início, a Organização Mundial da Saúde, OMS, tinha falta de confiança numa campanha de vacinação. Muitos, incluindo o director-geral da OMS, acreditava que, para conter a varíola, todos os 1,1 mil milhões de pessoas, nos 31 países afectados, incluídos os de povoações remotas, deveriam ser inoculados – um verdadeiro pesadelo logístico.

 

Foi por isso que delegados da OMS debateram durante dias antes de acordarem, pela margem mais pequena de sempre, a providenciar uns míseros 2,4 milhões de dólares por ano pelo esforço – valor demasiado pequeno para cobrir os custos de cada vacina não dada, já para não falar dos meios para financiar o apoio logístico. Muitos doadores partilharam este pessimismo, acreditando que o dinheiro seria mais bem gasto em infraestruturas de saúde, por exemplo. Até a UNICEF decidiu contra a contribuição para a campanha.

 

Na verdade, a decisão para designar Henderson para o pouco invejável cargo de encabeçar a campanha resultam da decisão do director-geral da OMS de pôr um americano ao comando, para que fossem os EUA, e não a OMS, a assumir as culpas pelo falhanço do programa. (Henderson tentou recusar o cargo, mas neste caso essa opção não estava contemplada.) E no entanto, Henderson conseguiu virar uma má cartada numa boa, com uma visão fundamental.

 

Henderson identificou que a União Soviética – que vinha pressionando para uma campanha de erradicação por vários anos, e já se tinha comprometido em doar 25 milhões de doses de vacina anualmente – não ficou contente com o facto de ser um americano a liderar a campanha. Então contactou o vice-ministro da saúde Soviético, Dimitri Venediktov, com quem estabeleceu um relacionamento que permitiu os dois lados trabalharem juntos na estratégia e na logística, além da doação de vacinas (os EUA comprometeram-se a disponibilizar 50 milhões de doses por ano). Os dois mais improváveis aliados acabaram por liderar a batalha juntos.

 

O dom da diplomacia de Henderson foi igualado por um olho para o talento e liderança. Insistiu para que a sua equipa passasse pelo menos um terço do tempo no terreno, trabalhando com autoridades locais e a visitar as povoações, para que pudessem ver pessoalmente as dificuldades da vacinação em massa.

 

Entre o pessoal da sua equipa estava William Foege, um missionário médico luterano a trabalhar como consultor para o Centro de Doenças Contagiosas (Communicable Disease Center, CDC, na sigla em inglês) na Nigéria. Um dia em Dezembro de 1966, Foege soube de um caso de varíola numa outra povoação e imediatamente viajou para lá para vacinar a família da vítima e outros habitantes.

 

Foege ficou preocupado que um surto mais generalizado se pudesse manifestar e não tivesse doses suficientes para vacinar toda a gente da área afectada. Então adoptou uma táctica diferente: mandou batedores a todas as povoações num raio de 30 milhas à procura de mais casos, e vacinou apenas as pessoas de quatro sítios onde surgiram casos. Isto criou um anel de vacinação à volta das pessoas contaminadas que quebrou a cadeia de contágio.

 

A estratégia de Foege foi extendida ao Leste da Nigéria, e depois introduzida noutras partes da África Ocidental, e, finalmente, aplicada ao ambiente mais complicado de todos: a Índia, com meio milhar de milhão de pessoas. Foram necessários 130.000 profissionais de saúde qualificados e 20 meses extenuantes, mas aboliram o flagelo da varíola que atormentara a Índia por milénios. Assim, apesar dos desastres naturais, do rapto de pessoal da OMS, de guerra civil, os profissionais de saúde repetiram o sucesso no Bangladesh, na Etiópia e na Somália. Finalmente, em 1980, o mundo estava oficialmente livre da varíola.

 

Cinquenta anos após o arranque desta arrojada missão, o feito extraordinário que daí surgiu está a desaparecer da memória. Mas as lições que traz para galvanizar uma comunidade internacional dividida para em conjunto fazer frente a um desafio não podia ser mais importante, especialmente numa altura em que problemas urgentes como a degradação do ambiente exigem soluções globais.

 

Como Foege salientou, a erradicação da varíola prova que "esforços desenvolvidos a nível mundial são possíveis." Não temos de "viver num mundo de pragas, governos desastrosos, guerras, e riscos de saúde fora do controlo." Em vez disso, "a acção coordenada de um grupo de pessoas dedicadas" pode "proporcionar um futuro melhor."

 

A humanidade não pode viver num mundo onde a atmosfera e a água estão poluídas, os mares vazios, a vida selvagem está a desaparecer, e as terras exauridas. Os desafios ecológicos que enfrentamos são questões de saúde pública e bem-estar, tal como a varíola o foi. A nossa missão, quer queiramos aceitar quer não, é convocar a vontade colectiva para deter a nossa autodestruição.

 

É Vice-presidente de Educação Científica do Howard Hughes Medical Institute e professor de Biologia Molecular e Genética na Universidade de Wisconsin-Madison.

The Serengeti Rules: The Quest to Discover How Life Works and Why It Matters é o seu livro mais recente.

 

Copyright: Project Syndicate, 2016.

www.project-syndicate.org

Tradução: Rosa Castelo 

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