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12 de Agosto de 2014 às 11:28

Energia verde e política limpa

Há poucas áreas do discurso público em que o antigo adágio "quem tem telhados de vidro, não atira pedras ao do vizinho" seja mais aplicável do que na das alterações climáticas.

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Atendendo a que os combustíveis fósseis são a rede vital da economia mundial, ninguém tem as mãos limpas – e quem deseja levar a cabo a batalha contra o aquecimento global arrisca-se a ser acusado de hipocrisia. Antes de mais, essas pessoas devem ser transparentes em relação ao que estão dispostas a oferecer e de que forma é que isso influencia os seus próprios interesses.

 

O multimilionário Tom Steyer, ex-gestor de um fundo de cobertura de risco, é um exemplo disso. Recentemente, Steyer comprometeu-se a doar 100 milhões de dólares aos candidatos das eleições intercalares norte-americanas, em 2014, que defendessem medidas agressivas no sentido de reduzir as emissões de dióxido de carbono. Mas o próprio"hedge fund" de Steyer, conforme se descobriu rapidamente, financiou uma mina de carvão australiana que se estima que produza centenas de milhões de toneladas de emissões de CO2 nas próximas três décadas. Steyer já deixou entretanto o fundo de cobertura de risco e vendeu os seus interesses na área do carvão, se bem que até há bem pouco tempo ainda não fosse claro se ele ainda beneficia ou não dos seus investimentos.

 

Apesar de Steyer ter beneficiado consideravelmente dos combustíveis fósseis a que agora se opõe, muitos ambientalistas e Democratas vêem-no como um inestimável contrapeso aos multimilionários irmãos Koch. Também eles fizeram uma fortuna com os combustíveis fósseis, mas são contra qualquer medida que vise a redução das emissões de carbono.

 

Com efeito, após a publicação, no New York Times, de um artigo muito bem fundamentado sobre os investimentos de Steyer, os presidentes de quatro grandes organizações ambientais saíram em sua defesa, argumentando o seguinte: "em vez de ridicularizarem aqueles que têm a coragem de mudar – seja mudar de um automóvel SUV para um híbrido, seja acrescentar painéis solares para ajudar a dar energia a uma escola, seja repensando numa forma de investir o seu dinheiro na economia global – devemos encará-los como pessoas que estão a dar passos em direcção a um amanhã mais limpo". Bill McKibben, ambientalista organizador da Marcha do Povo para a Defesa do Clima, denunciou o artigo do NYT como sendo um "visível trabalho premeditado".

 

Os norte-americanos podem adorar as histórias sobre transformação pessoal e redenção, mas os pobres de todo o planeta – que serão as principais vítimas do aquecimento global – estão mais interessados naquilo que fazemos do que no estado das nossas almas. As acções de Steyer são importantes, não por ele ser um homem comum que troca um SUV por um híbrido, mas porque é um interveniente-chave na economia mundial que quer marcar a diferença. Não tem tanto a ver com o seu carácter, mas com os efeitos do seu compromisso, que são significativos.

 

Mas Steyer, ou qualquer outra pessoa que deseje genuinamente seguir esse caminho, tem de reconhecer os efeitos mais amplos – incluindo os danos potenciais – provocados pelos seus objectivos e acções. Consideremos, por exemplo, a transição da economia norte-americana da manufactura para os serviços e a tecnologia. Impulsionou o crescimento total, a nível geral, mas as fortunas de Silicon Valley pouco fizeram pelos trabalhadores em Cleveland ou em Detroit. Do mesmo modo, apesar de o mundo ficar muito melhor quando a última mina de carvão for encerrada, muitas pessoas sofrerão de forma desproporcional durante esse processo.

 

Por isso, Steyer e outros defensores privilegiados de políticas mais fortes de combate às alterações climáticas devem estar dispostos a sofrerem, também eles, perdas. E devem pensar em formas de ajudar outras pessoas que sairão prejudicadas. Para seu mérito, Steyer esclareceu depois sobre o custo do seu desinvestimento nos combustíveis fósseis, o que mostra que compreende melhor do que muitos aquilo que a credibilidade política exige.

 

Falar sobre Steyer também é importante para a condução da política norte-americana de um modo mais geral. Isto porque os norte-americanos vêem cada vez mais o processo político como uma "luta na lama" entre facções de super-ricos que têm em mente os seus próprios interesses; o reposicionamento de Steyer como contrapeso aos irmãos Koch parece "mais do mesmo". E essa percepção é reforçada quando os ambientalistas perdoam ao seu multimilionário preferido pelo seu envolvimento na indústria dos combustíveis fósseis e se referem a ele como se fosse apenas mais uma pessoa qualquer que mudou de ideias sobre que tipo de carro conduzir.

 

A questão está em saber se o sistema político norte-americano – ele próprio resistente à mudança – consegue estar à altura do desafio das alterações climáticas. Afinal de contas, o aquecimento global é uma das mais sérias e mais complicadas ameaças que se colocam à humanidade. As suas causas e consequências transcendem fronteiras e estendem-se pelos próximos séculos. Para o combater, o nosso sistema político tem de funcionar de forma muito mais eficiente e justa. Tal como a saga de Steyer o demonstra, aquilo que é preciso é mais democracia, transparência e responsabilidade – e não mais política como de costume.

 

Dale Jamieson, professor de Estudos Ambientais e de Filosofia na Universidade de Nova Iorque, é o autor de Reason in a Dark Time: Why the Struggle Against Climate Change Failed – and What It Means for Our Future.

 

Direitos de autor: Project Syndicate, 2014.
www.project-syndicate.org

Tradução: Carla Pedro 

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