Opinião
Como gerir os riscos globais da China
Se a China quiser realmente construir uma economia e um sistema financeiro equilibrados e resilientes tem de ir mais além, desenvolvendo um conjunto abrangente de mecanismos de partilha de riscos. É uma tarefa que não pode mais ser ignorada ou adiada.
A economia mundial e o sistema internacional são agora caracterizados não apenas por uma profunda interconectividade, mas também pela intensificação de rivalidades geopolíticas. Para a China, a situação torna-se ainda mais complicada pelo facto de o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ver o país como um concorrente estratégico, em vez de um parceiro estratégico, já para não falar da enorme mudança social interna e a rápida disrupção tecnológica. A única forma de mitigar os riscos que a China enfrenta é com uma estratégia de reforma determinada, contínua e abrangente.
Um risco chave é financeiro. Pelo menos quatro "desajustes" estão na raiz das crises financeiras globais do passado, e três deles assolam a China hoje em dia. Em primeiro lugar, com o seu sistema financeiro dominado pelos bancos, a China (juntamente com a Europa e muitas economias emergentes) sofre de um desajuste de maturidades, na medida em que é um mutuário de curto prazo e um credor de longo prazo. No entanto, ao contrário de muitas economias emergentes, a China não enfrenta um desajuste na moeda, graças às suas grandes reservas de moeda estrangeira e aos persistentes excedentes em conta corrente, o que faz do país um emprestador líquido para o resto do mundo.
Mas a China não evitou o terceiro desajuste, que é entre dívida e capital: o rácio do crédito em relação ao PIB duplicou na última década, de cerca de 110% em 2008 para 220% em 2017, o que destaca o subdesenvolvimento do país ao nível do capital de longo prazo e mercados accionistas. Os responsáveis políticos também não podem ignorar o quarto desajuste - entre taxas de juro nominais ultra baixas e um ROE (return on equity) ajustado ao risco relativamente elevado para os investidores - o que contribuiu para investimentos especulativos e para ampliação da desigualdade de rendimentos e riqueza.
Estes riscos estruturais são, em grande medida, o resultado da transformação da China de uma economia liderada pela agricultura para uma economia impulsionada pelas exportações. À medida que a tecnologia continua a progredir, com a robotização a tornar-se mais acessível, as empresas que antes dependiam de mão-de-obra barata e das exportações precisam cada vez mais de produzir bens e serviços mais próximos dos consumidores domésticos em mercados abertos e globalmente competitivos.
Neste contexto, a única opção da China é abandonar o seu modelo de exportação de produtos baratos e elevar-se nas cadeias de fornecimento globais. Com esse objectivo em vista, o governo já introduziu estratégias industriais - "Made in China 2025" e "Internet Plus" - para apoiar o desenvolvimento, a adopção e a inovação tecnológica. Os EUA, porém, olharam para essas políticas industriais como evidências de uma intervenção estatal mercantilista que justifica as tarifas comerciais punitivas e outras sanções.
Para complicar ainda mais a situação da China, os esforços para criar uma economia aberta e orientada para o mercado alimentaram a corrupção e o rentismo. E, como a recente experiência europeia pós-crise demonstrou, é muito difícil, em termos políticos, realizar reformas estruturais quando os interesses adquiridos capturaram o sistema regulatório. É por isso que o presidente chinês Xi Jinping está envolvido numa abrangente campanha anticorrupção desde que assumiu o cargo em 2012.
No entanto, os problemas da China não se limitam a desequilíbrios estruturais, estendendo-se também a dois tipos de riscos macroeconómicos cíclicos. O primeiro risco decorre dos ciclos de negócios em economias de mercado desenvolvidas, nas quais as taxas de juro, as taxas de inflação e as taxas de crescimento sobem e descem juntas.
O segundo tipo de risco reflecte o ciclo vivenciado pelas economias subdesenvolvidas no seu processo de transição para uma economia orientada para o mercado. Neste ciclo acelerado, a habitação e os preços dos activos fixos (bem como o valor da moeda) irão aumentar mais rapidamente do que o crescimento da produtividade no sector transaccionável, devido a restrições de oferta. À medida que as famílias e os investidores se endividam a baixo custo para investir em imóveis e activos fixos cujos preços estão a valorizar, formam-se bolhas que em seguida estouram, gerando crises. No entanto, como a resposta habitual - socialização de perdas bancárias, com poucos privilegiados a manter os lucros e bónus que acumularam enquanto a bolha crescia - cria risco moral, o ciclo tem tendência a repetir-se.
Abandonar a estrutura de incentivos distorcida e desequilibrada e assegurar que tanto os credores como os devedores partilham e gerem os riscos ajudaria a quebrar o ciclo. A China poderia criar um sistema no qual as participações accionistas amplas - mantidas por fundos de pensão, segurança social ou fundos soberanos - sejam administradas profissionalmente, garantindo, assim, não apenas que o ROE de longo prazo ajustado ao risco fosse superior à taxa de crescimento do PIB e à taxa de juro nominal, mas também que os ganhos fossem amplamente partilhados entre a população.
Um ROE real positivo amplamente partilhado significaria menos repressão financeira e uma distribuição de rendimentos e riqueza mais justa. Ao mesmo tempo, com mais coisas em jogo, o capital de risco seria mais responsável perante investidores e aforradores.
Além dos riscos estruturais e cíclicos, a China deve enfrentar os riscos estratégicos do "rinoceronte cinzento" (altamente prováveis, mas muitas vezes ignorados) decorrentes da crescente rivalidade geopolítica sino-americana. Aqui, a emergente guerra comercial é apenas a ponta do iceberg. Os EUA e a China vão mergulhar numa competição de longo prazo pela supremacia tecnológica e estratégica. Para ganharem vantagem, vão usar todos instrumentos que tiverem à disposição. Se esta competição não for controlada, terá certamente efeitos colaterais de longo alcance.
Os riscos são normalmente mitigados pela prevenção, cobertura, seguro ou diversificação. Mas as economias chinesa e norte-americana são demasiado grandes e interconectadas para falharem, fazendo com que a prevenção e a cobertura de riscos sejam caras e perigosas de mais. O seguro também seria impossível, devido à falta de mercados. A diversificação pode funcionar, se ambos os países perseguissem uma variedade de opções mutuamente benéficas de baixo custo e elevado retorno. Estas opções incluem inovação tecnológica para resolver problemas sociais e promover o crescimento inclusivo; mais abertura do mercado; medidas duras contra especuladores e grupos de interesse; e reformas fiscais para melhorar a distribuição de rendimentos e riqueza.
O facto de se terem levado a cabo negociações comerciais em paralelo com as negociações sobre o programa nuclear da Coreia do Norte sugere que a China e os EUA percebem que, no actual sistema global interconectado, a cooperação é necessária cooperação para gerir múltiplos riscos globais. Mas se a China quiser realmente construir uma economia e um sistema financeiro equilibrados e resilientes tem de ir mais além, desenvolvendo um conjunto abrangente de mecanismos de partilha de riscos. É uma tarefa que não pode mais ser ignorada ou adiada.
Andrew Sheng é membro do Asia Global Institute da Universidade de Hong Kong e do Conselho Consultivo de Finanças Sustentáveis da UNEP. Xiao Geng, presidente do Hong Kong Institution for International Finance, é professor na Universidade de Hong Kong.
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Tradução: Rita Faria