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03 de Julho de 2015 às 20:00

A política económica virada do avesso

A economia mundial está à beira de uma decepção perigosa. O grande boom no início da década de 1990 deu espaço para um fracasso maior, as autoridades usaram truques velhos de engenharia financeira num esforço para recuperar a magia.

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Ao fazê-lo, converteram uma economia mundial desequilibrada num prato de Petri para uma experiência de política económica moderna. Estavam convencidos que era uma experiência controlada. Nada podia estar mais longe da verdade.

 

A ascensão e queda do pós-Segunda Guerra Mundial foi um anúncio para o que iria chegar. O milagre do crescimento económico da economia do Japão em ascensão baseou-se numa repressão insustentável do iene. Quando a Europa e os Estados Unidos desafiaram esta abordagem mercantilista como o Acordo de Plaza de 1985, o Banco do Japão respondeu com uma política monetária agressiva que impulsionou grandes bolhas de crédito e nos activos.

 

O resto é história. As bolhas rebentaram e a desequilibrada economia nipónica rapidamente começou a cair. Com a produtividade consideravelmente deteriorada – um sintoma que foi ocultado pelas bolhas –, o Japão não foi capaz de criar uma recuperação significativa. De facto, continua actualmente a enfrentar desequilíbrios, devido à sua falta de capacidade ou vontade para enfrentar reformas estruturais imprescindíveis (a chamada "terceira flexa" da estratégia de recuperação económica do primeiro-ministro Shinzo Abe, conhecido por "Abenomics").

 

Apesar do fracasso da abordagem japonesa, o resto do mundo continua comprometido em usar a política monetária para curar os problemas estruturais. Os dados foram lançados na forma de um trabalho publicado em 2002 por economistas da Reserva Federal dos Estados Unidos que tornou-se no modelo de estabilização macroeconomia sob a liderança de Alan Greenspan e Ben Bernanke.

 

A premissa central deste trabalho apontava que as autoridades monetárias e orçamentais japonesas tinham falhado por terem actuado com demasiada timidez. Os autores do trabalho acreditavam que as bolhas e os desequilíbrios estruturais fossem o problema. Em vez disso, argumentavam que as "décadas perdidas" de crescimento anémico e deflação do Japão podiam ter sido evitadas se as autoridades tivessem implementado políticas de estímulo de forma mais rápida e com maior intensidade.

 

Se fosse tão simples. De facto, a enfase sobre a velocidade e intensidade (a essência daquilo que a agora as autoridades chamam de "grande bazuca") provocou uma insidiosa mutação na doença japonesa. As injecções de liquidez da flexibilização quantitativa (QE) mudaram os canais de transmissão da política monetária: em vez de usar taxas de juro agora utilizam activos e divisas. Isto é considerado necessário porque os bancos centrais já empurraram as taxas de juro de referência até próximo do "limite de zero".

 

Mas não tenham medo, dizem os defensores da política monetária não convencional. O que os bancos centrais não podem conseguir com ferramentas tradicionais, agora fazem-no através de canais tortuosos baseados em efeitos de riqueza em que os mercados de activos, onde existem vantagens competitivas obtidas através da desvalorização monetária.

 

E é aqui que se produz o engano. Os efeitos da riqueza falharam em impulsionar a recuperação económica significativa nas economias pós-crise. Criaram novos desequilíbrios desestabilizadores que ameaçam manter a economia mundial encurralada numa série contínua de crises.

 

Vamos considerar o caso dos Estados Unidos, o exemplo vivo de uma nova receita de recuperação. Ainda que a Fed tenha incrementado o seu balanço em menos de mil milhões de dólares no final de 2008 para 4,5 mil milhões de dólares no último trimestre de 2014, no PIB nominal aumentou apenas 2,7 mil milhões de dólares. Os outros 900 mil milhões de dólares que se derramaram nos mercados financeiros animaram a expansão do mercado bolsista norte-americano para o triplo. Entretanto, a economia apenas conseguiu uma recuperação deficiente, com o crescimento real do PIB tendo estancado numa trajectória de 2,3%, precisamente dois pontos percentuais abaixo dos 4,3% que era normal nos ciclos anteriores.

 

De facto e a apesar da grande injecção de liquidez por parte da Fed, o consumidor norte-americano (que sofreu a pior parte da violenta recessão dos balanços de 2008 e 2009) não recuperou. As despesas reais em consumos pessoais cresceu a um ritmo anual de apenas 1,4% nos últimos sete anos. Como era previsível, os efeitos da riqueza da flexibilização monetária foram sentidos sobretudo pelos mais ricos, que concentram a maior parte das acções. Por isso, para a classe média agoniada, os benefícios foram insignificantes.

 

"Poderia ser pior", será a resposta comum. Mas será realmente assim? Como refere a famosa observação Joseph Schumpeter, os sistemas de mercado sempre tiveram a capacidade quase milagrosa de se curarem a si mesmos. Mas depois da última crise, com os resgates do governo norte-americano e a manipulação dos activos por parte da Fed isso foi vetado.

 

O desempenho económico deficiente dos Estados Unidos não impediu outros de replicar as suas políticas. Pelo contrário, agora a Europa lançou o seu próprio QE. Mesmo o Japão, ponto de partida desta história, encarou uma nova forma intensiva de QE, mostrando um desejo aparente de tirar "lições" dos seus próprios erros, como interpretam os Estados Unidos.

 

Mas, além do impacto que esta abordagem está a ter nas economias individuais, há os riscos sistémicos amplos que surgem a partir das acções e de moedas fracas. À medida que o testemunho das excessivas injecções de liquidez vai passando de banco central para banco central, o perigo de bolhas de activos mundiais e de desvalorizações de moedas concorrenciais intensifica-se. Entretanto, o falso sentido de segurança adormece os políticos e mina os incentivos para enfrentar os desafios estruturais.

 

O que é necessário para interromper este ciclo? Como apontou o primeiro-ministro chinês Li Keqiang numa entrevista recente, a resposta é comprometer-se como reformas estruturais – um foco estrutural da China que Li apontou ser já partilhado por outros. Agora que todos se preocupam com a desaceleração da China, aparentemente os seus líderes tiveram uma avaliação mais realista e construtiva dos problemas que tem a política macroeconómica dos homólogos das economias mais avançadas.

 

Nos Estados Unidos e em outros países, os debates sobre as políticas depois da crise ficaram do avesso e as consequências podem ser devastadoras. Confiar na engenharia financeira enquanto se evita a difícil tarefa de implementar mudanças estruturais não é a receita para uma recuperação sólida. Pelo contrário. É uma promessa que vão existir mais bolhas de activos e mais crises financeiras e uma estagnação secular à japonesa. 

 

Stephen S. Roach, membro do corpo docente da Universidade de Yale e ex-presidente do Morgan Stanley na Ásia, é o autor de Unbalanced: The Codependency of America and Chin.

 

© Project Syndicate, 2015.

www.project-syndicate.org

Tradução: Ana Laranjeiro

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