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Uma questão de lana-caprina

Quais as causas que determinam o impulso dos jovens (e não só jovens) para o consumo de drogas? Não há respostas rigorosas, mas há reflexões que podem ajudar-nos a perceber a natureza do fenómeno, transversal a todas as sociedades. A atracção pela vertigem , como lhe chamou Reinaldo Ferreira, o Repórter X, num livro famoso, Memórias de um Morfinómano , tem sido progressivamente elevada ao nível dos grandes males universais.

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A geração do Repórter X sabia de Baudelaire, de Gerard de Nerval, do absinto, e de estupefacientes experimentados por Antonin Artaud e Aldous Huxley, entre outros. Guedes de Amorim, jornalista e novelista muito conhecido à época (e com quem trabalhei n’“O Século Ilustrado”, anos 60), frequentou drogas antes de se converter ao catolicismo e ser irmão laico dos Franciscanos. Um texto elucidativo, “Morfina”, por ele mais tarde renegado, constitui outro elemento para a composição do puzzle. Há imensa literatura sobre alucinogéneos e seus efeitos. Assim como são numerosos aqueles, célebres ou pouco mais ou menos, que, em certa etapas das suas vidas, consumiram isto e aquilo. Não produz efeitos funestos o conhecimento das coisas. Pelo contrário. A verdade, ou o conhecimento, são muito menos acessíveis do que aquilo que, habitualmente, se pensa.

Tenho seguido, com a curiosidade activa que um assunto desta natureza exige, a pequena polémica suscitada por um “dicionário de calão”, colocado em blogue pelo Instituto da Droga e da Toxicodependência. À falta de melhor causa, o CDS, que as cria, artificial e artificiosamente, chamou ao Parlamento o dr. João Goulão, presidente daquele organismo, a fim de esclarecer os deputados sobre a natureza e utilidade do texto. O médico, reputado, cientificamente, em Portugal e no estrangeiro, respondeu, com modéstia e aplicação, ao zelo daquele partido. É dos poucos que têm exercido admirável magistério nos domínios da prevenção, dos cuidados e das responsabilidades da sociedade numa matéria tão melindrosa como lucrativa para quem dela, criminosamente, se aproveita.

Certos termos do “dicionário”, como a sua terminologia, podem conter aspectos pouco claros. A mim e a muita mais gente não incomodou: suscitou, maiormente, o meu interesse. E o próprio dr. Goulão relevou as características do projecto, aberto a todas as alterações e sujeito a todas as críticas. Uma questão de lana-caprina, sem afastar a hipótese de que o “dicionário”, mesmo deficiente, permite a aprendizagem directa do que muita gente ignorava. Aprender com o “outro” significa não, apenas, salvar as aparências, mas reduzir o dispositivo ideológico do “desconhecimento.” Neste bulício, agora exposto pelo CDS, há algo de pouco claro que, em última análise, é revelador de uma profunda ausência de reflexão sobre o problema central: o da toxicodependência.

Em tempos, a flâmula da cruzada contra o dr. João Goulão (pois é isso, rigorosamente, de que se trata) foi erguida pelo PSD. Mais do que designar estas iniciativas como um pedido normal de esclarecimentos, elas carecem de convicção, devido a uma série de contingências políticas que tem colocado o CDS numa situação de ruína prévia.

Que está por detrás do que se expõe? As iniciativas do dr. João Goulão e do Instituto da Droga e da Toxicodependência não têm sido experimentações vazias, mas aplicações, apropriadas à nossa especificidade, de outros resultados. Em tudo isto existe, evidentemente, um cálculo de riscos e a compreensão do lado humano do problema. A exigência social que o dr. Goulão coloca nos objectivos da sua tarefa antagoniza-se, notoriamente, com os interesses privados. Eis o busílis. O tratamento da toxicodependência, fora das organizações estatais, é um chorudo negócio, contra o qual aquele médico se tem oposto com tenacidade. Uma posição desta natureza, sendo mais uma verdade do que uma pergunta, origina inimigos poderosos, beliscados nos privilégios e atingidos nos seus próprios créditos. É uma questão política; mas é, também, uma questão moral.

O formulário contido no “dicionário” apenas exprime uma visão (discutível como todas as visões) e permite outras hipóteses de discussão, o que não é despiciendo numa altura em que o inventário dos nossos desgostos e a enumeração das nossas crises parece estar a ser habilmente colocada em segundo plano.

Estamos a ser solicitados a olhar para o futuro. O CDS está grudado ao passado. E nem sempre foi assim. Mas assim não vai longe.

E um livro fundamental

A propósito de estes e de outros problemas, relacionados com aquilo que o autor chama “a densidade interior que acumulámos”, recomendo, vivamente, a leitura de “Portugal e os Portugueses”, de D. Manuel Clemente, bispo do Porto (Edição Assírio e Alvim). É um texto luminoso pelas características, não apenas religiosas, mas, sobretudo históricas, que o autor propõe à nossa serena reflexão. Sigo, há muitos anos, a trajectória cultural (portanto religiosa, política e ética) daquele prelado. A par de D. Januário Torgal Ferreira, de D. Manuel Martins e dos padres Mário de Oliveira e Anselmo Borges é das vozes da Igreja que mais atentamente escuto, pela grandeza, originalidade e diversidade do discurso. A D. Manuel Clemente conheci, há anos, através de impressionante diálogo com José Saramago, num programa de Margarida Marante, na SIC. Foi um inesquecível momento televisivo, no qual as divergências de dois homens estabeleciam um encontro, aparentemente improvável, na comunidade da cultura. A preocupação de ambos, como a minha, consistia na ideia de que as coisas poderiam ser outras, acaso a sociedade não fosse imutável nas suas estruturas. Reforma ou revolução? A interpelação de Rosa Luxemburgo foi colocada na mesa. De certa forma, este belo livro, “Portugal e os Portugueses”, adverte-nos de que, se nada nem ninguém disser a verdade última das coisas, cabe a nós atender à frase de Píndaro: “Chega a ser o que és.”

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