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24 de Dezembro de 2008 às 15:26

Uma história de amizades

Não escrevo sem música, não viajo sem uma Bíblia. A minha primeira Bíblia (possuo várias) foi-me oferecida por um tipógrafo anarquista do "Diário Popular", culto, sereno e íntegro, muito mais sabedor das coisas do mundo do que a maioria dos preopinantes que por aí se prolonga.

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Não escrevo sem música, não viajo sem uma Bíblia. A minha primeira Bíblia (possuo várias) foi-me oferecida por um tipógrafo anarquista do "Diário Popular", culto, sereno e íntegro, muito mais sabedor das coisas do mundo do que a maioria dos preopinantes que por aí se prolonga.

A música marcou-me cedo: nas galerias proletárias do Coliseu, aonde o Velho Bastos, adorador de ópera, me levara pela mão firme. O resto veio por sequência. E manifesto certa predilecção por Bach. Neste momento em que batuco nas teclas, ouço algumas sonatas, executadas pela organista Marie-Claire Alain. Tive um dia árduo e a escrita, a música e a leitura apaziguam-me.

Faço-vos estas confissões singelas porque é Natal, não me apetece disparatar sobre política, apesar de o panorama ser propício a uns sarcasmos, e fujo aos deprimentes telejornais. "O leitor é o eterno devorador de civilizações", escreveu, um dia, Claude Roy, meu amigo e visita de casa, quando viajava até Lisboa. Roy foi uma das grandes figuras da cultura francesa. Com o sainete dos grandes clássicos, discreteava acerca dos velhos mundos com a destreza de quem falava do último romance de Françoise Sagan. Amigo íntimo de Roger Vailland, chegou a tentar escrever, com ele, um romance a duas mãos, projecto interrompido pela morte daquele.

Vailland exerceu uma influência decisiva em José Cardoso Pires mas, também, em António Alçada Baptista, o qual no belíssimo "Peregrinação Interior", primeiro volume, revela a importância que a leitura do francês exerceu sobre a sua própria vida sexual. E Claude Roy, assinatura prestigiosíssima em "Le Nouvel Observateur", um exemplo entre muitos outros da Imprensa francesa, era uma voz muito escutada. Os seus livros sobre literatura ainda permanecem frescos e actuais.

Há poucos anos, em Paris, na livraria L'Arbre de Lire, inquiri sobre aqueles dois escritores. Ninguém sabia, ninguém queria saber, e a perplexidade do empregado aumentava à medida que eu revelava o significado (até político) de Vailland e de Roy, não apenas em Portugal como em outros países europeus, sobretudo em Itália.

Claro que há autores e livros que esmaecem até se sumirem nos nossos interesses. Mas outros há que são mesmo para sempre. Na Bíblia, por exemplo, encontro, sempre e sempre, a habitação do conhecimento contínuo, como no poema do Herberto Hélder, meu parceiro de adolescência. As religiões apaixonam-me. E, entre os livros luminosos, nomeio "Tratado de História das Religiões", de Mircea Eliade", discutível mas indispensável. A lista é infindável. Sendo de lonjuras (Heidegger), o homem possui algo de transcendente que talvez se explique pela sua ânsia de eternidade.

As "Cartas a Lucílio", de Séneca; as "Confissões, de Santo Agostinho; "Origens do Cristianismo Português", de Moisés do Espírito Santo; "Deuses, Túmulos e Sábios", de C. W. Ceram; "Porque não sou Cristão", de Bertrand Russell; ou "Mentiras Religiosas", de Max Nordau, são textos que podem fundamentar uma experiência espiritual, cultural e humana sem equivalente. E muito aprecio, nessas matérias, os textos de D. Manuel Clemente, bispo do Porto; e do padre e teólogo Anselmo Borges, habitual colaborador do "Diário de Notícias".

É longa e continuada a lista daqueles cujo trabalho e acção me definiram e me melhoraram como ser humano. Alguns, a esmo: Marx, Freud, Lukacs, Goldmann, Roger Garaudy, George Bernard Shaw, Hemingway, Scott Fitzgerad, Sherwood Anderson, Sartre, Merleau-Ponty, Camus, Pierre Drieu la Rochelle, Robert Brasillach. Poetas da estirpe de Aragon, Éluard, René Char, Norge, José Fierro, Gottfried Benn, Montale, Ungaretti, que cheguei a entrevistar, numa passagem dele por Lisboa, e que me falou, com carinho, de António Pedro. Mas também os grandes italianos: Svevo (Trieste), Vittorini, Pavese (está a ser redescoberto em França), Morávia, Calvino, Oreste Del Buono, Carlo Salinari, Carlo Bo, Carlo Levi. Sem esquecer Knut Hamsun, o da "Fome" mas, também, o de "Mistérios"; e os russos, Tolstoi, Turgueinev, Gogol, Dostoievski.

O que forma um homem é o modo como lê e o que lê. Tudo, devemos ler tudo, sem cálculo e sem limites. A leitura é um utensílio insubstituível. Prepara-nos, ensina-nos, adverte-nos. "A leitura é uma amizade", escreveu Proust, que li com extrema dificuldade, a mesma com que não terminei o "Ulisses", de Joyce, peço perdão. Mas devorei (é a palavra) "O homem sem Qualidades", de Musil; e "O Processo" de Kafka.

O Dilecto não tome estas indicações como presunção. Entenda-as como desejam ser: confissões de um homem já antigo, que não esquece aqueles (e não estão aqui todos) que o ajudaram a ser quem é. Privei, conversei, indo lendo-os, com Aquilino, Jorge de Sena, José Rodrigues Miguéis, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Alves Redol, José Gomes Ferreira, Manuel Mendes, Alexandre Pinheiro Torres, José Cardoso Pires, Augusto Abelaira, Luís de Sttau Monteiro, Maria Judite de Carvalho, Urbano Tavares Rodrigues, e Leão Penedo, Rogério de Freitas, Alexandre Cabral. E Camões e Cesário, claro!, Herberto Helder, Ruy Belo, António Ramos Rosa. Com mão diurna e mão nocturna, Vieira, Camilo, Eça, Ramalho, Raul Brandão. Estão aqui, nesta sala, e andaram sempre comigo. Têm resposta para todas as minhas interrogações.

Dilecto: bom Natal, bons livros, boas amizades.

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