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Um problema tipicamente português

De tantos males que afectam Portugal, há pelo menos um que não se pode desculpar com o preço do petróleo, os burocratas da Europa, a mão-de-obra chinesa ou qualquer outro factor externo. Trata-se de uma questão da nossa exclusiva responsabilidade e que só

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Refiro a loucura que continua a afectar o comportamento lusitano ao volante e que dia após dia destrói vidas e fornece a matéria sinistra de que se faz grande parte dos telejornais.

Sobre o assunto já muito foi dito e redito. Nas mãos dos portugueses, o automóvel, que devia servir para nos levar confortavelmente de um lugar para outro, parece ter todos os fins menos esse. Nele se canalizam frustrações, raivas sociais e perversidades marialvas. Nele se revela um generalizado desprezo pelas regras mínimas da vida em comunidade. Usado para mostrar estatuto, poder e alguma forma de superioridade económica ou de adrenalina, o carro está entre nós mais perto de uma arma do que de um veículo de transporte. O hábito e uma espécie particular de corrupção cultural determinam que se ache natural acelerar, fazer manobras perigosas e insultar os outros condutores.

Anos a fio não se fez praticamente nada contra este flagelo. As milhentas campanhas de prevenção rodoviária, em que  se gastaram e continuam a gastar rios de dinheiro na pretensão cândida de educar os indígenas, nunca dão qualquer resultado. O que não admira. As ideias são invariavelmente péssimas e o recurso a bonecada infantil e outras parvoíces é sistemático. Foi com Armando Vara, com a tolerância zero, que pela primeira vez se encarou a questão a sério. Mas o destino ingrato deste político conduziu a uma desvalorização da iniciativa e assim que ele deixou o Governo logo a tolerância voltou a ter expressão numérica. E continua. Ainda recentemente um juiz do Norte mandou para casa praticamente sem castigo um condutor de ambulância, apanhado com uma taxa de álcool superior à legal, com o argumento de que naquela região se bebe mais vinho do que nas outras. Para este juiz, este facto “atenuante” superou em muito o que deviam ter sido as agravantes de se tratar da condução de uma ambulância e ainda por cima em serviço de transporte de um doente.

Há que reconhecer contudo que nestes últimos anos o aumento do valor das multas, uma maior presença policial nas estradas e o uso de tecnologias têm demonstrado ser capaz de diminuir ligeiramente acidentes e valores estatísticos. Mas mesmo assim não basta. Os recentes desastres e atropelamentos são reveladores de que a chacina persiste.

Sou por convicção libertário e anti-autoritarismo. Do mesmo modo, não vejo a criminalização como solução para nenhum problema. Mas não posso deixar de considerar que em matéria de segurança rodoviária só temos duas vias: a educação e a repressão. A primeira é lenta, a segunda é rápida. E neste caso, porque se trata de salvar vidas, temos pressa, muita pressa.

É por isso que ao contrário de muitos que criticam o uso de radares, ainda para mais regulados para velocidades consideradas demasiado baixas, as legais diga-se de passagem, julgo que eles deviam ser ainda mais generalizados e se possível dissimulados e sem aviso. Hoje assiste-se a uma patética dança em que toda a gente trava à vista do radar, para logo de seguida voltar a acelerar com uma ainda maior raiva e tenacidade. Já para não falar do emergente mercado de esquemas para enganar o olho dos sensores e a profusão de sites na Internet sobre tão magna matéria. Valha-nos o facto de muitos deles serem um perfeito disparate e resultarem em merecida multa.

Mas mais decisivo do que as novas técnicas de detecção do excesso de velocidade seria a mudança de mentalidades da própria força policial. A permissividade mantém-se como atitude geral e enraizada. Exceptuando talvez o caso do estacionamento indevido nalgumas zonas de Lisboa, a má condução é ainda largamente desculpabilizada e sem consequências.

A título de exemplo e reportando-me a um caso recente sucedido no Terreiro do Paço, não se entende como é que uma condutora que atropela três peões numa passadeira e mata dois é simplesmente mandada para casa e até ao momento, passados vários dias, nem sequer foi interrogada pela Polícia.

Educação, campanhas de sensibilização e apelos ao civismo já mostraram não resolver o problema. Os portugueses continuam a matar-se estupidamente por esse país fora. As desculpas das más condições das estradas, da efectiva insânia da sinalética e outras por mais genuínas que sejam, não legitimam tantos acidentes, na sua grande maioria causados por excesso de velocidade, condução perigosa e álcool. Resta-nos portanto, mesmo a contragosto, a repressão. O que não significa necessariamente só mais e maiores multas. Condenações de serviço cívico, a cassação definitiva da carta e a apreensão do automóvel deviam tornar-se comuns para certas infracções. É preciso começar a retirar das nossas estradas aquelas pessoas que objectivamente demonstram não ter capacidade, cívica ou ética, para conduzir.

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