Opinião
Um grande português
A Feira do Livro do Porto, com a colaboração da editora Campo das Letras, homenageou Óscar Lopes. Não dei conta de que a Imprensa se referisse ao acontecimento com a amplitude devida a um dos hoje raros portugueses ilustres. Nem chamada de primeira página
A Feira do Livro do Porto, com a colaboração da editora Campo das Letras, homenageou Óscar Lopes. Não dei conta de que a Imprensa se referisse ao acontecimento com a amplitude devida a um dos hoje raros portugueses ilustres. Nem chamada de primeira página, sequer.
Com 87 anos, doente, solitário, porventura o último de uma estirpe de intelectuais que entendia ser a estética inseparável da ética, e esta da política, Óscar Lopes representa, no silêncio de um país sem memória, sem grandeza e sem tempo para a generosidade - a exigência do rigor, que recompõe a medida de todas as liberdades.
Não amar quem ajudou a traçar a fisionomia da pátria é o reflexo de que algo de canalha corrói a mentalidade prevalecente. A ideologia da classe dominante, de que a Imprensa é notória expressão, prefere, "naturalmente", consagrar, todos os dias, seis, oito, dez páginas ao futebol, centenas de horas ao futebol, dezenas de "comentários" ao futebol - do que informar quem foi, tem sido, é Óscar Lopes.
O grande mestre português ensinou, quem aprender pretendeu, a ter relações felizes com a cultura, dizendo-nos, modesto e perseverante, que os livros e a sua frequência, são os mais íntimos dos nossos amigos. A batalha de Óscar Lopes contra o obscurantismo e a superstição fascistas pertence ao armorial da Resistência: a moral em acção, o espírito que nunca desdenha o "outro". Escreveu sobre Joaquim Paço d’Arcos, Vergílio Ferreira, Vitorino Nemésio, pessoal de diferentes áreas, e, até, em alguns casos, seus sinuosos inimigos, porque entendia ser a compreensão e a humildade o impulsor da crítica honrada.
Preso, impedido de leccionar e de escrever para jornais, nunca abdicou, nunca foi abjurante, movido pela urgência do testemunho e da participação, sem jamais iludir a necessidade de interpelar, de interrogar, de questionar. A troca de correspondência com António José Saraiva (seu companheiro, seu amigo, seu parceiro na monumental "História da Literatura Portuguesa", espero que os "continuadores a não avariem) é prova eloquente do seu entendimento do mundo, da sua paixão pelo conhecimento, da premência de dizer.
Há anos, a convite da galega Pilar Vásquez Cuesta, catedrática em Compostela, fomos, um grupo, falar de literatura portuguesa, no Departamento Fonsecas, da Universidade. Óscar não perdia uma sessão. Tomava notas e notas, horas a fio, dias seguidos. A simplicidade do homem conduzia ao desconhecimento da personagem. Os galegos decidiram homenagear o poeta Manuel Maria, outro dos sempre presentes, com frases grandíloquas. Eu era o falador seguinte. Antes de dizer o meu recado, apontei para o canto obscuro onde estava Óscar Lopes, e disse aos circunstantes a importância daquele senhor de meã estatura, confundido com as sombras, a pedir desculpa pelo peso que fazia na Terra.
Recordo-me de que me emocionei. Não costumo usar axiomas tranquilos, e sempre gostei de gostar de quem o meu gostar merece. Quando amo, não exercito o comedimento. Bom. Foram centenas, todos os assistentes, todos, centenas, de pé, aplaudindo o professor português, o grande intelectual europeu, que não sabia onde se meter, embaraçado, espantado, atrapalhado ante a trovoada de aplausos, por longos minutos prolongada.
Este homem generoso, decente e bom não guarda rancor nem é devorado pelo ressentimento - e tantas, tantas e tantas malfeitorias lhe fizeram! Comunista, ex-membro do Comité Central do PCP, nunca inscreveu o mundo a preto e branco, antagonista da esterilidade causada pela cultura dirigida, crítico, segundo a imagem da ordem clássica, de um certo "kitch" neo-realista, mostra-me o teu talento, não me mostres o cartão do partido, na exigência brechtiana; eruditíssimo, modestíssimo, recatado, despretensioso.
Agora, a Feira do Livro do Porto homenageou-o. Discursos. O costume. Penso, porém, que o mais formoso, comovente e expressivo tributo a ele dirigido foi-o num poema de Vasco Graça Moura, no qual o grande poeta fala das andanças de Óscar Lopes ("Um Senhor de Matosinhos", como lhe chama), das palestras arrojadas com pides a tomar nota:
"andava eu no liceu: no salão / nobre dos paços do concelho em matosinhos, / um professor, o óscar lopes vinha / mostrar à noite que a literatura / importa a toda a dignidade humana (?)"
"voz calma e portuense, óscar falava / dos livros, dos autores, como quem trata / de assuntos de família e os desarruma."
Amanhã estou no Porto para abraçar o meu velho amigo.