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Transgénicos

Portugal está em alvoroço por causa de meia dúzia de maçarocas de milho. Nestes últimos dias, do Presidente da República ao chefe da oposição, passando por vários ministros todos se pronunciaram, com fogosa indignação, sobre um banal caso de polícia e que

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A informação, em particular a televisiva, vive exclusivamente disso. E como o sentido do ridículo não é uma qualidade dos nossos políticos nunca falta quem se preste à palhaçada.

Como sempre no meio de tanta balbúrdia insensata o essencial nunca se discute. E a questão dos transgénicos merece mesmo ser discutida com ou sem meninos a destruir plantas.

Transgénico é simplesmente uma planta que foi modificada geneticamente de forma a resistir a condições ambientais adversas, doenças, ataques de parasitas, etc. Não é nada que não se faça desde há muito tempo. A única diferença é que agora isto se pratica recombinando directamente os genes. Muitas das actuais espécies de milho, trigo, batata, arroz são produto da manipulação genética feita por métodos clássicos. Não existiriam na natureza sem a intervenção humana. Nunca ninguém contestou estes processos. Pelo contrário, o arroz geneticamente modificado através do cruzamento de diferentes espécies, permitiu retirar da miséria multidões de agricultores na Ásia e em África. Do mesmo modo se pode falar de cães, vacas, porcos e tantos outros animais fruto de um processo de selectividade e cruzamento praticado pelos criadores, nalguns casos desde há séculos. O enxerto nos frutos e flores é norma corrente. Uma considerável percentagem dos organismos actualmente existentes já não é produto da selecção natural mas sim da selecção artificial.

A novidade da actual manipulação genética está pois no nível a que se produz. À escala do genoma a possibilidade de manipulação é muito maior, mais diversa e bastante mais precisa.

É agora possível recombinar genes de espécies muito distintas e até de diferentes reinos, por exemplo entre animal e planta. Gerando seres híbridos com características absolutamente extraordinárias. Qual é o problema então?

O maior diz respeito à “poluição” genética. Muitos cientistas consideram que estes novos organismos modificados terão tendência a afectar as espécies autóctones e assim alterar significativamente inteiros ecosistemas. Ainda que seja um facto que a própria agricultura é em si uma verdadeira máquina de destruição dos ecosistemas, aniquilando muita da fauna e flora naturais. É isso que tem aliás levado à massiva extinção das espécies animais e vegetais. Também há quem alerte para os eventuais efeitos colaterais nos consumidores destes produtos, homem ou outros animais, pois de tão recentes que são não foi ainda possível determinar se têm ou não consequências nocivas.

Apesar de tudo isto não vale a pena chorar no leite derramado. A biotecnologia é já uma das indústrias mais potentes do nosso tempo e aquela que promete vir a modificar de forma mais radical o nosso futuro e o do planeta Terra. Em breve teremos tomates azuis, cães às riscas, cactos sem espinhos. Os consumidores correrão a comprá-los. O próprio humano aproveitará as novas técnicas para introduzir melhoramentos no corpo e no comportamento. A manipulação genética no homem pode mesmo vir a ser a única maneira de este conseguir sobreviver ao desenvolvimento da inteligência artificial nas máquinas e organismos modificados. A generalização da biotecnologia irá transformá-la num novo tipo de arte, recombinando organismos, gerando novos seres inesperados e fantásticos. Nalguns casos teremos notáveis inovações, noutros terríveis monstruosidades. A biotecnologia é pois simultaneamente fascinante e altamente perigosa. Não há volta a dar-lhe.

Por isso mais do que perder tempo com controvérsias menores é necessário discutir seriamente os mecanismos de regulação à escala global. Sabendo-se que os governos e a política em geral não visam o bem comum e antes servem exclusivamente interesses económicos imediatos, é fundamental criar um movimento de opinião pública capaz de forçar essa discussão civilizacional. Para além das questões éticas, há que saber se é razoável patentear organismos vivos.  É esse, aliás, o maior problema com os actuais transgénicos. É legítimo que uma empresa seja proprietária de um determinado tipo de milho, de uma certa raça bovina ou de um particular ADN? Não deve a sociedade bater-se pelo domínio público e pelo open source do conhecimento?

Assistimos a uma alteração profunda da vida no planeta. A evolução natural de Darwin, ainda não foi compreendida pela generalidade das pessoas e já vai sendo substituída por uma evolução artificial promovida pela mão do homem. Basta ver como muitas das espécies ditas selvagens só sobrevivem graças à nossa intervenção activa. Por esse planeta fora elefantes, gorilas, tigres, lagartos e aves andam todos de coleira electrónica, confinados a reservas protegidas e sujeitos a uma reprodução assistida de forma a resistirem, pelo menos temporariamente, à extinção. Já não há nada de natural no chamado mundo selvagem.

A classe política, a informação e a população em geral perdem tempo com maçarocas de milho. Mais do que devaneios patéticos precisaríamos de uma reflexão profunda sobre o futuro que queremos. Com biotecnologia seguramente, mas limitando ao máximo os riscos desta. Mas isso não dá nem votos nem audiências.

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