Opinião
Os espanhóis e outros medos
São os nossos fantasmas preferidos. Não adianta tentarem-nos com modelos chineses, indianos ou eslovacos. É dos espanhóis que a gente gosta.
São os nossos fantasmas preferidos. Não adianta tentarem-nos com modelos chineses, indianos ou eslovacos. É dos espanhóis que a gente gosta. Habituámo-nos a eles desde pequeninos, com os manuais escolares, o hóquei em patins, os caramelos de Badajoz e o Julio Iglesias. Aprendemos a viver pacificamente na mesma casa ibérica. Nunca cultivámos grandes familiaridades, mas também não nos incomodávamos uns aos outros. Eles, verdade se diga, pouco fizeram para nos assombrar em nove séculos de convivência. Uma aparição aqui, outra ali, mas nada de muito organizado. De repente, em pouco mais de dez anos, surgiram em força no nosso canto peninsular. Em esquadrilha, assombram-nos diariamente com sucessivos raids intimidatórios, de consequências imprevisíveis sobre a nossa saúde mental. Alguns já se instalaram mesmo entre nós. Pior, já os assimilámos e os tratamos por tu.
No fundo, essa é uma das nossas grandes virtudes - sabermos receber. Turistas, investidores, imigrantes e fantasmas, todos são bem acolhidos em Portugal. A maioria já sente a Zara, o Corte Inglês ou o Santander como insígnias tão familiares quanto o azeite Gallo ou o leite Vigor. Suspeito que muitos chegam a pensar que Horta Osório é o chairman de todo o banco Santander e que Vaz Guedes caminha a passos largos para se tornar presidente da Sacyr. É o poder anestésico - ou de sedução - dos fantasmas espanhóis a funcionar.
Ora, a táctica castelhana parece estar a dar certo. Visivelmente, as questões da nacionalidade do capital deixaram de interessar o comum dos portugueses (se é que alguma vez interessaram). Só as elites se inquietam. Conscientes do desequilíbrio competitivo entre os dois países, da falta de agressividade das nossas empresas e do acentuado proteccionismo administrativo de Madrid, os meios pensantes portugueses receiam que o embate do mercado livre ibérico só venha a favorecer os interesses dos fantasmas.
Nem de propósito, no mesmo dia em que o primeiro-ministro português se encontrava em visita oficial a Espanha, o ministro da indústria de José Luís Zapatero anunciava o lançamento de um concurso para três novas licenças GSM. Além de pretender alargar a cobertura territorial da rede móvel, o governo espanhol quer «aumentar a concorrência, melhorar a qualidade e reduzir os preços das comunicações celulares» (Jornal de Negócios, 13 de Abril). Tudo boas intenções. Mas, na prática, os constrangimentos a que um novo operador ficaria sujeito acabam por tornar suicidária qualquer tentativa oriunda de fora do actual sistema de três operadores incumbentes. À boa maneira espanhola, respeita-se a forma e trabalha-se o normativo. Veremos se me engano.
Do que podemos todos estar certos é que os fantasmas e os interesses espanhóis não mais nos largarão. A integração das economias ibéricas - a basca, a catalã, a castelhana e a galaico-portuguesa - prosseguirá inexoravelmente, umas vezes de modo amigável, outras de modo hostil. Daqui não resultará fatalmente uma perda de sangue azul no tecido económico lusitano nem uma deterioração dos seus níveis de competitividade, desde que os empresários saibam entender o desafio espanhol como uma oportunidade e não como uma fatalidade. Ousando empreender, lutando pelo que é seu e não cedendo às tentações dos fracos. Com regras iguais e transparentes, não há que recear o teste dos mercados.
Mantenhamos, porém, uma dose elevada de vigilância revolucionária. Os fantasmas espanhóis até são divertidos e voluntaristas, mas têm uma propensão irresistível para a traquinice quando encontram espíritos distraídos e para a soberba diante dos medrosos. E se tratássemos de organizar uma boa esquadrilha de avejões lusitanos?