Opinião
O Seio
1. Em breves segundos, o seio direito de Janet Jackson tornou-se o mais famoso do planeta. Não pela sua exuberância, nem sequer pelo adorno estelar do mamilo, mas porque a América puritana se...
1. Em breves segundos, o seio direito de Janet Jackson tornou-se o mais famoso do planeta. Não pela sua exuberância, nem sequer pelo adorno estelar do mamilo, mas porque a América puritana se escandalizou com a sua exibição em directo.
Que importância têm as desventuras da situação económica, o imbróglio iraquiano ou a excitação pré-eleitoral, face ao seio despudoradamente nu de Janet Jackson? Como poderá a América recuperar a credibilidade internacional, os bons costumes e a moral pública, tão duramente atingidos no intervalo do Superbowl?
Aparentemente, as instituições já encontraram uma resposta tecnológica – doravante, não haverá mais transmissões em directo dos principais eventos nacionais. Tudo passará a ser transmitido com um diferimento higiénico de alguns minutos, o tempo necessário para o realizador-censor de serviço eliminar qualquer imagem atentatória da boa moral protestante.
A cerimónia de entrega dos Grammys foi a primeira vítima deste novo mecanismo da revolução cultural neo-conservadora em curso. Porque não seguir o mesmo método para as intervenções de George W. Bush, poupando-o ao desumano esforço de memória e de concentração a que o instantâneo o sujeita?
Não são de hoje os aproveitamentos sensacionalistas dos grandes espectáculos mediáticos. Nos Estados Unidos, os desportos nacionais de ar livre – o beisebol e o futebol americano – há muito tempo que aprenderam a conviver com as televisões e com as excentricidades dos protagonistas e dos espectadores.
Desde que as estações televisivas, há mais de trinta anos, passaram a cobrir regularmente os jogos, as manifestações de exibicionismo e propaganda em directo multiplicaram-se, quer da parte dos espectadores, quer dos profissionais do espectáculo – jogadores, entertainers, dirigentes, jornalistas, árbitros e agentes vários.
Os streakers – personagens espontâneos que desatam a correr, nus, pelos estádios fora, diante dos holofotes e das câmaras de televisão – são um fenómeno antigo e costumeiro a que o público norte-americano se habituara, sem escandaleiras nem assomos de virtude republicana.
Bastou um interlúdio musical, uma encenação arrojada, um seio feminino, uma onda neo-tacanha, para os demónios da América profunda se revelarem na sua plenitude doentia. Bem sei que não é bonito recorrer a golpes de oportunismo publicitário e que o erotismo é uma arma sensível para muitos telespectadores.
Mas é para isso que existem contratos e cláusulas indemnizatórias entre os artistas e os produtores de espectáculos. O show business norte-ameri-cano está longe de ser inexperiente nesta matéria. Como compreender então a onda de escândalo que atravessou a América perante a exibição de um seio, certamente provocadora e oportunista, mas sem quaisquer laivos de obscenidade?
Há cerca de um mês presenciei um dos concursos mais vistos nas televisões americanas, num canal free-to-air, onde os candidatos se prestam às provas mais humilhantes e nojentas (como um inenarrável repasto de vermes vivos) que a imaginação possa produzir. Isso sim, deveria ser considerado obsceno e degradante por qualquer espectador no seu perfeito juízo. Só nos resta esperar que não se estabeleçam consensos transatlânticos em matéria de moral e costumes.
2 No convento do Beato, não apareceram seios à vista nem números inesperados, o que frustrou as expectativas das mentes mais libertinas. Apesar do classicismo da coreografia, os produtores do evento podem dar-se por satisfeitos. O Compromisso Portugal marcou a agenda noticiosa durante os últimos dois dias e abriu portas para uma abordagem descomplexada da situação político-económica do país e do seu futuro.
É certo que os diagnósticos, as conclusões e os remédios não são propriamente novos nem suscitam dissensões fracturantes, à parte a proposta terceiro-mundista de despedimentos livres e a visão tecnicista do funcionamento da máquina estatal.
É igualmente certo que a capacidade empreendedora desta geração de jovens turcos só a espaços conseguiu exprimir os seus ideais de progresso e afirmação nacional. Mas sobra uma vontade genuína de mudança e uma jura de empenhamento na sobrevivência económica de Portugal. Esperemos que o coração se alie ao músculo e não vergue aos interesses da carteira.