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Opinião
10 de Setembro de 2004 às 13:59

Memória da tribo

Os escritores portugueses abdicaram da razão moral e, muito entretidos com pessoais estratégias de glória, desprezaram o compromisso ideológico com o seu tempo.

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Há, nesse comportamento, uma espécie de História seleccionada, que impele à manutenção de distâncias, como se o espaço social estivesse vazio. O rodopio com que se movimentam, de feira em feira, de salão em salão, de «carrefour» em «carrefour», pertence aos domínios do gratuito, mas esclarece-nos quanto fatigante é, ser-se escritor «conhecido».

D’Alembert escreveu um texto sobre a noção do compromisso do intelectual, opondo-se, com veemência argumentativa, ao princípio de Platão, o qual entendia que o poeta não deve imiscuir-se nos assuntos da cidade. Creio que a memória transmitida permite a integração de uma forma superior de cidadania, para a concretização da qual o escritor deve ter um papel determinante. A identificação prioritária transmite uma ideia de pertença, e leva-nos a interrogar sobre a natureza da rejeição manifestada pelos escritores portugueses actuais à época que lhes coube viver. E a lembrar que essa abdicação coincide com o desmembramento de um modo de sociedade.

Dir-se-á: os problemas estão contidos nos livros deles. Não estão. E, ainda por cima, «os livros deles» são muito maus, muito mal escritos e obedecem a uma deletéria norma de mercado. Não é geral, claro; mas está perto. Articulou-se com a história pessoal de cada um dos escritores portugueses um sistema de relações que fere de indignidade a própria noção de literatura.

Carlos de Oliveira chamava a este tipo de gente os «escritores de realejo»: sem surpresa, sem criatividade, sem aventura, sem risco e sem compromisso, «sem asa e sem azul». Falo no grande escritor (um dos três maiores do nosso tempo) para aludir ao rigor, ao escrúpulo e à integridade ética e estética com que mediou a arte e o compromisso. E, ao mesmo tempo, para saudar a reedição que das obras do meu amigo inesquecível está a realizar a Assírio & Alvim.

Foi ele quem mais perto esteve de concretizar o projecto literário que movia alguns de nós: aliar a tradição lexical de Camilo ao naturalismo de Eça. Mas, para isso, haveríamos de percorrer os pontos mais relevantes de toda uma literatura, com paragens obrigatórias em Camões, Vieira, Garrett, Cesário - e estudar os percursos inovadores das literaturas emergentes: norte-americana, inglesa, italiana e brasileira. É uma extraordinária história de grupo, no qual estive, e com o qual a minha formação intelectual e moral foi estabelecida.

A intransigência de Carlos de Oliveira para com os trânsfugas de espírito era tão implacável como para os maus escritores («têm, todos, o estofo de um canalha», Claude Roy dixit), assim como para os estrategos da glória, ou os habilidosos que se dão com todos os poderes. A probidade artística estreitamente associada a uma inabalável exigência ideológica. E, também, a recusa das verdades unívocas e do relativismo das coisas.

Vergílio Ferreira mantinha uma doentia animosidade despeitada pelo companheiro. Invejava-lhe a influência e o fascínio exercidos nos jovens intelectuais. Rogério de Freitas e Leão Penedo criticavam-lhe a heterodoxia. E Palma-Ferreira não se coibiu de escrever que as emendas constantes, a reescrita a que permanentemente Carlos de Oliveira procedia eram sintoma de mal disfarçada impotência criadora, e sinal da existência de páginas maculadas. Infenso a infâmias e a qualquer afronta (embora, por duas ou três vezes as dirimisse a murro), ele prosseguiu, na inquietação e no silêncio, por vezes dolorosos, a edificação de uma obra singularíssima e inequivocamente moderna.

O compromisso moral de Carlos de Oliveira implicava riscos tremendos. Pagou o preço de ser exemplar, nos grandes equívocos da época que, no entanto, definia fronteiras e estabelecia territórios. Ele ensinou-nos, com o seu exemplo, que o escritor é um ser cívico, e que resistir é combater. Os escritores, hoje, movem-se na ambiguidade de não contundir com o poder político. A justificação: «Estamos em democracia». É o paradoxo da «modernidade» mal entendida ou astutamente proposta. Já repararam que deixou de haver «escritores de Esquerda»? Agora, há «libertários» e «anarquistas», que servem, indiscriminadamente, os dois habituais partidos de poder. Contestá-los é perigoso.

Nesta hedionda precaução há muito de vil e algo de miserável.

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