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Opinião
30 de Maio de 2007 às 13:59

Madeleine e nós todos

A tragédia de Madeleine McCann vem mostrar como boa parte das instituições oficiais são ainda incapazes de lidar com os fluxos informativos em contínuo da era da globalização noticiosa.

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O primeiro erro da Polícia Judiciária foi não ter compreendido que o desaparecimento de uma criança inglesa num destino turístico com forte concentração de visitantes e residentes britânicos obrigava a considerar a hipótese de ter de adequar o seu sistema de comunicação institucional para dar resposta aos padrões informativos dos media do Reino Unido.

Uma vez confirmado o impacto mediático do desaparecimento, a PJ não contava – fosse por falta de recursos humanos ou por incapacidade organizativa – com uma equipa conhecedora das práticas de cobertura jornalística britânica para prover explicações atempadas e exaustivas sobre as peculiaridades da investigação policial portuguesa em casos de desaparecimentos de menores.

Ao enveredar pela tradicional comunicação lacónica, enquanto se multiplicavam informações incertas e desencontradas de origem diversa, a PJ apenas contribuiu para aumentar o nível de ruído num circuito mediático propenso a todos os dislates, exageros e manipulações.

A colaboração das autoridades britânicas com os esforços de investigação da PJ nunca poderia evitar o conflito que os media do Reino Unido tanto destacam entre padrões distintos de estratégia mediática por parte das polícias dos dois estados.

Pouco importa que tenha sido referido com larga cópia de argumentos que no caso dos media britânicos a cobertura foi e é "absurdamente exagerada", pondo de facto em causa os interesses da família e, possivelmente, da justiça, como opinou o influente colunista Simon Jenkins no Guardian duas semanas após o desaparecimento de Madeleine.

Tal tese não foi tida por válida pelos principais órgãos de comunicação do Reino Unido, incluindo a BBC, que assumiram como principal factor relevante a potencial identificação do público com as vítimas.

O caso Madeleine é um exemplo acabado de máxima potencialização informativa por via da identificação com as vítimas e ignorar tais realidades é um erro crasso nas estratégias de comunicação institucional.

Do lado português o grosso da inanidade informativa, opinativa e governamental evidenciou uma mediocridade que arrisca tornar-se imagem de marca.

Basta referir as longas maratonas televisivas desprovidas de conteúdo informativo ou opinião credível e fundamentada, descabeladas comparações com tragédias nacionais e estrangeiras, tentativas de negação da relevância emocional do rapto, atraso de uma conferência de imprensa da PJ por via da apresentação da candidatura de António Costa à Câmara de Lisboa e a divulgação da identidade de presumível suspeito antes de ser constituído como arguido.

Quem não sabe é como quem não vê

A incompreensão da relevância do fluxo noticioso global e permanente ultrapassou notoriamente a PJ e revela-se na atitude, ainda que compreensivelmente reservada, do presidente Cavaco Silva que se limitou a dizer que críticas só podem advir de quem "não conhece a actividade que está a ser desenvolvida pelas autoridades policiais".

A questão é precisamente essa: como salvaguardar a eficácia e correcção da investigação judicial sem subestimar a relevância da cobertura mediática? Por certo nunca através da subestimação do impacto dos media.

Mais ingrato é o silêncio do hiper-sensitivo aos media José Sócrates ainda que o seu pouco ponderado ministro da economia Manuel Pinho tenha tido a sensatez de suspender a campanha promocional "ALLGARVE" na Grã-Bretanha.

Na bola de neve das tragédias torna-se claro que no caso de Madeleine McCann é fácil para as opiniões públicas da Europa Feliz a identificação com a desgraça da menina, compreensível o reconhecer da angústia dos pais, inevitável o temor ante o risco brutal da tragédia bater sem aviso à porta de qualquer família. É, afinal, a mesma lógica que ofusca outras maiores catástrofes, como a miséria do Darfur, que representam realidades incompreensíveis onde não há sequer um rosto reconhecível.

O facto incontornável é que a infeliz menina loira e branca, filha de médicos da classe média alta – com discernimento e contactos suficientes para tentarem e conseguirem, com toda a legitimidade e desespero, mobilizar os meios possíveis para uma campanha inaudita de solidariedade – simboliza uma certa lógica de comunicação por simpatia entre os meios abastados e cultos da moderna ordem comunicacional que levam por arrasto outros grupos sociais.

Temos, portanto, questões que implicam capacidade de motivação, produção e difusão de informação, a identificação em função de modos de vida partilhados ou aspirados, temores generalizados, e uma marca de classe clara e distinta como sempre aconteceu que ultrapassa, no entanto, estratificações sociais.

O que irá restar do tudo isto é uma incógnita, mas não augura nada de bom.

A audiência de hoje no Vaticano do casal MacCann é mais do que suficiente para garantir a presença da desgraça da menina na agenda mediática.

Um eventual processo judicial arrasta os temores de eventualmente revelar algo de tenebroso, como aconteceu com o affaire Doutroux na Bélgica, ou acabar num descalabro judicial idêntico ao caso da investigação dos crimes pedófilos de Outreau, em França.

Com Madeleine qualquer coisa treme em nós. Não perceber isso é não querer saber o que move a paixão e a razão.

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