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Falar às crianças

Em Portugal, os poderes habituaram-se a falar aos portugueses como quem fala para as crianças.

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Esta semana, a propósito da vaga de frio, um senhor da protecção civil veio às televisões fazer algumas recomendações aos portugueses. Entre elas, e das mais importantes, destacaram-se a ingestão de bebidas quentes e o uso de mais uma camisola.

Estou certo que a personalidade em causa conta no seu curriculum muitos anos de estudos sobre a matéria, talvez até com cursos no estrangeiro, pois de outra forma não teria chegado a tão relevante cargo na exigente e competitiva hierarquia da protecção civil. No entanto, a minha avó, que nunca teve nenhum cargo público nem era particularmente dotada para os estudos, dava-me exactamente os mesmos conselhos quando, nalgumas manhãs mais frias, me via sair para a rua em direcção à escola primária ali para os lados do Bairro de Alvalade em plena Lisboa.

E das duas uma ou a minha avó merecia a compensação e reconhecimento do serviço público prestado que nunca teve em vida, ou esta nossa protecção civil anda a brincar às avós.

Não se trata contudo de um caso raro. Em Portugal os poderes habituaram-se a falar aos portugueses como quem fala para as crianças. Conhecedores da fraca educação geral e convictos de que a maioria não tem discernimento, nem tino, para as grandes questões, tendem a reduzir qualquer assunto a meia dúzia de lugares comuns e banalidades que nada esclarecendo sobre o essencial, criam a ilusão de que já se percebeu tudo. É assim que se abusa de frases feitas totalmente fora de contexto, se exagera nos trocadilhos sem qualquer conteúdo ou se inflama o trivial até à beira da guerra civil, sem que nada de realmente substancial aconteça ou seja transmitido. Passa-se todos os dias e dá na televisão.

A infantilização da nossa sociedade é um processo de via dupla. Uma parte significativa da população que sempre apreciou mais a figura do pai do que a do parceiro, aprecia que a tratem de cima, paternal e autoritariamente. Como explica um amigo meu, os cães, que mesmo domesticados continuam a ter a memória da matilha, gostam de levar um pontapé de vez em quando, porque isso lhes dá segurança. Da mesma forma muita gente sente-se confortável com a bizarria dos políticos que prometem ser impopulares, com as figuras de autoridade tipo Cavaco ou até com os salvadores da pátria, de todos os matizes, que sempre aparecem quando se sorteia o poder.

A imagem do povo criança, a quem se devem aplicar com regularidade lições de moral e umas boas palmadas, prevalece no Portugal europeu. As televisões, muito em particular, renderam-se definitivamente a um discurso assumidamente infantil, em nome das audiências. Linguagem e programação constituem uma massa espessa feita de lugares comuns, humor ordinário e activa estupidificação. Igualmente a publicidade, imagem maior do pensamento empresarial, mergulhou totalmente numa espiral de idiotice onde raramente se presta alguma informação útil. A maioria dos anúncios são hoje meras anedotas, onde o produto, tornado irrelevante, mais não é do que o patrocinador da alarvidade. E mesmo em campanhas sobre questões bastante sérias e dramáticas, como a sinistralidade rodoviária ou a sida, são os desenhos animados e os bonequinhos que prevalecem, como se o público-alvo se encontrasse entre os frequentadores das creches.

Infelizmente para o país e para a democracia também a política se parece cada vez mais com uma brincadeira de crianças. A campanha em curso é disso um flagrante exemplo.

A crescente dependência mediática dos políticos tem conduzido à simplificação e superficialidade, transformando qualquer ideia complexa ou abstracta em meros slogans primários. Cartazes, declarações e debates enchem-se de estridentes banalidades em busca de atenção, audiência e votos. Nesta campanha, muito animada por dois conhecidos foliões, são os pequenos casos irrelevantes, as birras pessoais e as provocações adolescentes que vão marcando a agenda. Num ambiente mais próprio dos recreios de escola do que de uma sociedade europeia e democrática. A referência ao recreio escolar é aliás de tal forma assumida que um dos candidatos, Santana Lopes, não perde uma oportunidade de remeter qualquer tema para esse universo, julgando que assim o povo, ignaro, compreenderá melhor o profundo alcance do seu pensamento político. O discurso de Santana Lopes assenta numa clara infantilização dos portugueses. Ora tratando de incubadoras, ora de meninos reguilas, em metáforas reveladoras de uma mentalidade imatura e irresponsável em nada compatível com o exercício da administração de qualquer coisa, quanto mais de um país.

Resta-nos pois a esperança de que a parte adulta da nossa sociedade compreenda o que está em causa e o que tem de fazer.

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