Opinião
Elite indiana em crise
Para um país com 1,2 mil milhões de pessoas, a Índia é governada por uma elite surpreendentemente pequena, que tem poder sobre tudo, desde o Governo às grandes empresas, e também aos órgãos desportivos.
Mas um conjunto de escândalos, alguns deles envolvendo milhões de dólares, fez com que a sua percepção saísse prejudicada perante o olhar dos indianos.
Quase todos aqueles em posições de poder na Índia, incluindo os jornalistas conhecidos da imprensa e da televisão, são vistos com suspeição. Isto está a acontecer ao mesmo tempo que o crescimento económico conduz uma população jovem e em ascensão social para a classe média urbana. Esta nova classe média já não está limitada pelos sistemas de clientelismo das aldeias, mas também não desfruta de uma relação confortável que ligue a antiga classe média à elite. Pode esta crise da elite criar um massacre de Tiananmen indiano?
À excepção dos regimes totalitários, a elite de um país depende do grau de aceitação popular, o que na maioria das vezes advém da crença de ela é bastante “justa” nos seus negócios. Mas, tendo em conta a recente série de escândalos, a classe média indiana já não acredita nisso.
Claro que as dúvidas sobre a elite dirigente não são exclusivas da Índia. Quase todos os países que estão a passar de um equilíbrio pré-industrial, baseado no clientelismo, para um baseado em instituições modernas e no respeito pela lei têm enfrentado estas crises de legitimidade.
Até ao século XIX, por exemplo, os políticos britânicos eram extremamente corruptos. A velha aristocracia dominava não apenas a Câmara dos Lordes como também usava a sua influência para conseguir que parentes, amigos e apoiantes das suas famílias fossem eleitos para a Câmara dos Comuns. Isto através da exploração de uma fraqueza institucional importante – a existência de “burgos podres” que podiam ser comprados e vendidos.
Diz-se que o duque de Newcastle controlou sozinho sete destes burgos, cada um com dois representantes. Enquanto isso, as cidades industriais grandes e populosas, como Birmingham e Manchester, eram pouco representadas. Em 1819, juntou-se uma multidão de 60 mil pessoas em Manchester que exigia uma reforma. Na altura, estas foram agredidas pela cavalaria. Quinze pessoas foram mortas e muitas outras ficaram feridas naquele que é relembrado como o massacre de Peterloo.
Dada a então memória recente da violenta revolução francesa, a elite britânica concordou, de forma relutante, em proceder a reformas democráticas. Por fim, a Lei da Reforma de 1832 aboliu os “burgos podres” e estendeu o direito de voto à nova classe média (a classe trabalhadora e as mulheres teriam ainda de esperar).
Da mesma maneira, os Estados Unidos atravessaram um período de industrialização dirigido por barões capitalistas que actuavam como senhores feudais nos anos 70 e 80 do século XIX. A ganância e a corrupção da altura foi satirizada em 1873 por Mark Twain e Charles Dudley Warner no seu livro A Idade De Ouro (The Gilded Age: A Tale of Today). O período terminou com a depressão de 1893-1896, e foi seguido por grandes reformas políticas da Era Progressista.
Para a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, a transição na natureza da elite governativa foi relativamente calma. Mas há muitos exemplos onde essa mudança foi repentina e violenta – as revoluções francesa e russa, por exemplo. Na Alemanha, a velha elite da Prússia geriu a industrialização de forma bem sucedida no fim do século XIX, mas foi desacreditada pela derrota na Primeira Guerra Mundial. O nazismo preencheu o vazio existente e um novo equilíbrio viria a ser estabelecido apenas depois da Segunda Grande Guerra.
Alterações do mesmo género registaram-se na Ásia. O Japão sentiu duas mudanças: a restauração Meiji, de 1868, e o período após o segundo conflito internacional. A Coreia do Sul foi governada por generais até os protestos generalizados de estudantes levarem à transição democrática em 1987. (Muitos dos empresários de topo do país enfrentaram a acusação nos anos seguintes). A Indonésia experienciou esta transição mais recentemente, em 1998.
Quando a China sentiu este momento durante os protestos na Praça de Tiananmen, em 1989, o Estado comunista reprimiu os estudantes com mão de ferro, embora tenha mantido desde aí um foco único no crescimento económico. A corrupção continua a ser um grande problema, mas as autoridades têm o cuidado de punir os piores excessos com grande visibilidade. Ainda assim, como foi demonstrado pela controvérsia em torno do Prémio Nobel da Paz, o governo mantém-se nervoso em relação a qualquer dissidente que desafia a legitimidade da elite governante.
Mesmo ajustada ao poder de compra, a classe média indiana de hoje provavelmente não totaliza mais de 70 milhões de pessoas (muito mais pequena do que geralmente se pensa). Mas, na próxima década, a classe média estabelecida será inundada por novos elementos que sairão das favelas, das pequenas cidades e das aldeias do país.
É possível vê-los em todo o lado – a aprender inglês em centros de formação, a trabalhar de forma anónima nos novos centros comerciais e em call centers, ou até a surpreender pela notoriedade enquanto estrelas do desporto. Nunca antes a Índia tinha sentido tanta mobilidade social. Até agora, este novo grupo tem estava ocupado a escalar nos seus rendimentos para perder tempo a expressar o seu ressentimento face os excessos da elite, mas começa-se a sentir uma crescente raiva entre os seus membros.
É impossível prever quando irá acontecer a mudança e sob que forma. Dadas as tradições democráticas da Índia, é provável que a transição seja pacífica. Uma das possibilidades é que venha a ter lugar província por província – sendo o estado anteriormente ingovernável de Bihar um excelente exemplo.
Mas também podemos verificar uma reviravolta imprevista, com um novo líder político ou um novo movimento a capturar, de repente, a imaginação popular e a alterar, assim, o antigo regime. Como sabemos da Alemanha nazi e de outros casos, tais movimentos nem sempre levam a um final feliz.
Talvez a actual elite indiana aprenda com a história, se purifique e, então, se abra a um novo talento. Têm sido iniciadas muitas investigações sobre os escândalos de corrupção do momento. Ao longo deste ano, os indianos vão descobrir se os esforços são sérios e se vão conduzir a uma reforma – ou apenas a uma crise mais profunda.
Sanjeev Sanyal é o autor de The Indian Renaissance: India’s Rise after a Thousand Years of Decline.
Copyright: Project Syndicate, 2011.
www.project-syndicate.org
Quase todos aqueles em posições de poder na Índia, incluindo os jornalistas conhecidos da imprensa e da televisão, são vistos com suspeição. Isto está a acontecer ao mesmo tempo que o crescimento económico conduz uma população jovem e em ascensão social para a classe média urbana. Esta nova classe média já não está limitada pelos sistemas de clientelismo das aldeias, mas também não desfruta de uma relação confortável que ligue a antiga classe média à elite. Pode esta crise da elite criar um massacre de Tiananmen indiano?
Claro que as dúvidas sobre a elite dirigente não são exclusivas da Índia. Quase todos os países que estão a passar de um equilíbrio pré-industrial, baseado no clientelismo, para um baseado em instituições modernas e no respeito pela lei têm enfrentado estas crises de legitimidade.
Até ao século XIX, por exemplo, os políticos britânicos eram extremamente corruptos. A velha aristocracia dominava não apenas a Câmara dos Lordes como também usava a sua influência para conseguir que parentes, amigos e apoiantes das suas famílias fossem eleitos para a Câmara dos Comuns. Isto através da exploração de uma fraqueza institucional importante – a existência de “burgos podres” que podiam ser comprados e vendidos.
Diz-se que o duque de Newcastle controlou sozinho sete destes burgos, cada um com dois representantes. Enquanto isso, as cidades industriais grandes e populosas, como Birmingham e Manchester, eram pouco representadas. Em 1819, juntou-se uma multidão de 60 mil pessoas em Manchester que exigia uma reforma. Na altura, estas foram agredidas pela cavalaria. Quinze pessoas foram mortas e muitas outras ficaram feridas naquele que é relembrado como o massacre de Peterloo.
Dada a então memória recente da violenta revolução francesa, a elite britânica concordou, de forma relutante, em proceder a reformas democráticas. Por fim, a Lei da Reforma de 1832 aboliu os “burgos podres” e estendeu o direito de voto à nova classe média (a classe trabalhadora e as mulheres teriam ainda de esperar).
Da mesma maneira, os Estados Unidos atravessaram um período de industrialização dirigido por barões capitalistas que actuavam como senhores feudais nos anos 70 e 80 do século XIX. A ganância e a corrupção da altura foi satirizada em 1873 por Mark Twain e Charles Dudley Warner no seu livro A Idade De Ouro (The Gilded Age: A Tale of Today). O período terminou com a depressão de 1893-1896, e foi seguido por grandes reformas políticas da Era Progressista.
Para a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, a transição na natureza da elite governativa foi relativamente calma. Mas há muitos exemplos onde essa mudança foi repentina e violenta – as revoluções francesa e russa, por exemplo. Na Alemanha, a velha elite da Prússia geriu a industrialização de forma bem sucedida no fim do século XIX, mas foi desacreditada pela derrota na Primeira Guerra Mundial. O nazismo preencheu o vazio existente e um novo equilíbrio viria a ser estabelecido apenas depois da Segunda Grande Guerra.
Alterações do mesmo género registaram-se na Ásia. O Japão sentiu duas mudanças: a restauração Meiji, de 1868, e o período após o segundo conflito internacional. A Coreia do Sul foi governada por generais até os protestos generalizados de estudantes levarem à transição democrática em 1987. (Muitos dos empresários de topo do país enfrentaram a acusação nos anos seguintes). A Indonésia experienciou esta transição mais recentemente, em 1998.
Quando a China sentiu este momento durante os protestos na Praça de Tiananmen, em 1989, o Estado comunista reprimiu os estudantes com mão de ferro, embora tenha mantido desde aí um foco único no crescimento económico. A corrupção continua a ser um grande problema, mas as autoridades têm o cuidado de punir os piores excessos com grande visibilidade. Ainda assim, como foi demonstrado pela controvérsia em torno do Prémio Nobel da Paz, o governo mantém-se nervoso em relação a qualquer dissidente que desafia a legitimidade da elite governante.
Mesmo ajustada ao poder de compra, a classe média indiana de hoje provavelmente não totaliza mais de 70 milhões de pessoas (muito mais pequena do que geralmente se pensa). Mas, na próxima década, a classe média estabelecida será inundada por novos elementos que sairão das favelas, das pequenas cidades e das aldeias do país.
É possível vê-los em todo o lado – a aprender inglês em centros de formação, a trabalhar de forma anónima nos novos centros comerciais e em call centers, ou até a surpreender pela notoriedade enquanto estrelas do desporto. Nunca antes a Índia tinha sentido tanta mobilidade social. Até agora, este novo grupo tem estava ocupado a escalar nos seus rendimentos para perder tempo a expressar o seu ressentimento face os excessos da elite, mas começa-se a sentir uma crescente raiva entre os seus membros.
É impossível prever quando irá acontecer a mudança e sob que forma. Dadas as tradições democráticas da Índia, é provável que a transição seja pacífica. Uma das possibilidades é que venha a ter lugar província por província – sendo o estado anteriormente ingovernável de Bihar um excelente exemplo.
Mas também podemos verificar uma reviravolta imprevista, com um novo líder político ou um novo movimento a capturar, de repente, a imaginação popular e a alterar, assim, o antigo regime. Como sabemos da Alemanha nazi e de outros casos, tais movimentos nem sempre levam a um final feliz.
Talvez a actual elite indiana aprenda com a história, se purifique e, então, se abra a um novo talento. Têm sido iniciadas muitas investigações sobre os escândalos de corrupção do momento. Ao longo deste ano, os indianos vão descobrir se os esforços são sérios e se vão conduzir a uma reforma – ou apenas a uma crise mais profunda.
Sanjeev Sanyal é o autor de The Indian Renaissance: India’s Rise after a Thousand Years of Decline.
Copyright: Project Syndicate, 2011.
www.project-syndicate.org
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