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Da sarjeta ao passeio

No seu género, o negro e policial, Raymond Chandler é um mestre. Passado meio século, as histórias e em particular a escrita continuam a fascinar mesmo quando lidas repetidas vezes. Chandler era de tal modo conciso e acutilante que tinha dificuldade em es

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A palha, essa calamidade que ataca tanto escritor que vende livros ao peso mais do que pelo conteúdo, nunca o afectou. Entre tantas pérolas há uma passagem que gosto em particular. Chandler descreve assim uma personagem: “Passou toda a vida a tentar subir da sarjeta até ao passeio. Nunca lá chegou.” Dificilmente se podia encontrar maneira mais impiedosa e glacial para retratar aqueles que pretendendo disfarçar a sua verdadeira condição acabam invariavelmente por a ela regressar, tantas vezes da mais trágica maneira. Sempre muito parco nos meios, Chandler mostra, pela natureza dos termos, como a distância entre o passeio e a sarjeta pode ser descomunal.

Não é preciso procurar muito para encontrarmos na nossa sociedade exemplos afins. Basta olhar para o comportamento de tantos desses novos-ricos que emergiram com o desenvolvimento do país, mas a quem falta cultura, civilidade e acima de tudo consciência da sua própria situação. De tão ocupados que andam a pavonear o BMW, esta gente não se dá conta que perde uma oportunidade única para evoluir como indivíduos ou pelo menos proporcionar um futuro digno para os seus filhos, a quem dão dinheiro mas desprezam a educação. A insânia rodoviária, o fracasso escolar, a especulação imobiliária, a má construção, a destruição ambiental, o trabalho precário, a mediocridade empresarial e a corrupção, são alguns dos efeitos colaterais mais correntes deste tipo social. Afinal nunca deixaram de querer deslumbrar a sarjeta pensando que já estão no passeio. Em vão.

Exemplo proeminente desta trama negra é o caso agora em julgamento de uma senhora do “jet-set”, frequentadora assídua do mundano e capa de revistas da especialidade, que bem ao estilo do escritor norte-americano parece ter mandado matar o marido com uma marreta das obras. A novela irá certamente dar lugar a novo filme do sórdido português, num género inaugurado por essa outra historieta nascida num muito apropriado bar de alterne. Chandler não faria melhor.

Não menos eloquentes são os casos recentes na grande finança. Onde gente de elevado estatuto social se digladia em cenas pouco dignificantes, envolvendo muita avidez e ainda mais dinheiro. Num turbilhão que desclassifica o pequeno universo dos muito ricos e revela que também aí, numa sociedade em crise de critérios, se perdeu o sentido da ética e da decência.

Noutro campo decisivo temos a política. Numa época de predomínio da imagem sobre a verdade, de teatralização dos comportamentos, são muitos os políticos que fingem ser aquilo que de facto não são. De tal modo que é cada vez mais difícil distinguir a pose do conteúdo efectivo das ideias. Diz-se o que se julga que se quer ouvir, tantas vezes em perfeitas contradições na esperança de que o ruído mediático trate de tudo relativizar. A emergência dos políticos actores não tem por isso parado de crescer. Em todos os quadrantes. Afundando ainda mais o já precário crédito da classe. De tantos, o caso de Luís Filipe Meneses é paradigmático. Depois de ter conquistado o PSD com a autenticidade do seu discurso populista e provinciano, decidiu agora dar-se ares de homem de estado, o que quer que isso possa ser. Fala menos, anda mais empertigado e veste o fato de candidato a primeiro-ministro. Mas, talvez porque ainda esteja pouco rodado no papel dramático, não poucas vezes a boca lhe foge para a verdade. Ainda recentemente instigou Sócrates a parar de correr pelo mundo e “descer” a Portugal. Descrevendo numa frase o país como uma baixeza e a política moderna, global e cosmopolita, como uma perda de tempo.

A difícil participação da nossa sociedade no passeio do mundo desenvolvido não se consolidará sem uma radical mudança de mentalidades nos sectores, culturais, económicos e políticos, que de facto conduzem os destinos de todos. O atraso do nosso país resulta da mediocridade e venalidade das nossas elites. E enquanto não for possível empreender nestas uma evolução positiva, introduzindo mecanismos de transparência, seriedade e maior exigência comportamental, continuaremos a ser dominados pelas muito chandlerianas historietas saídas directamente da sarjeta deste nosso tempo.

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