Opinião
A política da concorrência e a política económica (I)
Embora a Política da Concorrência seja relativamente nova entre nós, devendo-se a sua notoriedade à Lei 18/2003 e à constituição de uma Autoridade da Concorrência independente, ...
Embora a Política da Concorrência seja relativamente nova entre nós, devendo-se a sua notoriedade à Lei 18/2003 e à constituição de uma Autoridade da Concorrência independente, continuam a existir muitas percepções erradas sobre a sua importância e a forma como deve ser encarada em torno da Política Económica. Este trabalho tem como principal finalidade clarificar alguns destes aspectos, traçando o paralelismo com algumas outras políticas económicas.
Por Política da Concorrência entendemos o conjunto de leis, processos, recomendações e outras acções desenvolvidos pelo Estado, através dos diferentes agentes, com vista a promover e defender as regras básicas de funcionamento da economia de mercado, como base da produção e afectação de recursos para a satisfação das necessidades da população. Esta função na sociedade portuguesa está especificamente consagrada na Constituição. Assim, de uma forma mais vasta, a Política da Concorrência visa a construção da economia de mercado. De uma forma mais estrita, visa apenas estabelecer e preservar as regras do jogo (level-playing field) da concorrência entre empresas.
A sua formatação, deve-se em grande parte aos Tratados Comunitários e ao objectivo de construção do Mercado Único. Não é possível conceber que as regras do jogo para as empresas variem conforme o mercado nacional em que funcionam: as regras que proíbem os cartéis, abusos de posição dominante, ou que regem as concentrações têm que ser semelhantes, qualquer que seja o mercado em que funcionem. E sobretudo quando afectam as trocas intracomunitárias. A diferenciação nestas regras comprometeria seriamente a liberdade de movimento de capitais e de bens e serviços. Por isso, não só do ponto de vista nacional, como comunitário, somos chamados a defender uma eficaz e vigorosa Política da Concorrência.
A Política da Concorrência é uma parte central das políticas estruturais, ou políticas da oferta, como também são conhecidas as políticas microeconómicas. Com a entrada de Portugal no euro, o país cedeu a soberania sobre a política monetária ao Banco Central Europeu e a política orçamental passou a ser enquadrada pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento, daí as políticas da oferta passarem a adquirir uma maior relevância. O não reconhecimento desta realidade é uma das principais razões dos erros de política que têm sido cometidos e que levaram ao mais longo período de estagnação económica nos últimos 50 anos.
1. As facetas da Política Económica
Desde as contribuições de Tinbergen, e outros, entendemos a Política Económica (economic policy) como um conjunto de programas, projectos e medidas, empreendidas pelo Estado, que prosseguem um dado objectivo de melhoria do bem-estar Social. Devem distinguir-se dois grandes grupos de Política Económica: o primeiro, as Políticas Económicas em sentido estrito, que se destinam a melhorar a eficiência económica (afectação de recursos, de uma forma estática ou intertemporal) e, em segundo, as Políticas Sociais que visam melhorar a equidade e a justiça em dada sociedade.
As Políticas Económicas são caracterizadas por quatro importantes elementos: (i) os objectivos da política, (ii) os instrumentos da política, (iii) os canais e as regras através das quais os instrumentos influenciam os objectivos, e (iv) as instituições que executam a Política.
Entre as várias Políticas Económicas, vamos destacar três: a Política de Estabilização dos Preços, a Política Anti-Cíclica e da Dívida Pública e a Política da Concorrência. Vamos estabelecer paralelismos entre elas, a sua importância relativa e as suas diferenças.
Também está repartida pela política monetária e política orçamental a Política Anti-Cíclica, que visa reduzir as flutuações económicas e reduzir o desemprego cíclico. Um instrumento fundamental nesta política é o défice orçamental, que tem que ser visto também na óptica da Política da Dívida Pública, ao distribuir a carga fiscal entre as diferentes gerações.
Finalmente, e igualmente importante, é a Política da Concorrência, uma política estrutural que visa preservar o bom funcionamento da economia de mercado, estabelecendo as regras de jogo do comportamento das empresas e tendo em vista uma afectação eficiente dos recursos, que conduza à maximização do bem-estar dos consumidores.
Qual das três é a mais importante? A inflação distorce os preços e prejudica os detentores de activos monetários, a recessão leva ao desemprego e ao desperdício de recursos, a cartelização e as rendas de monopólio retraem o crescimento e reduzem o bem-estar dos consumidores. Todas estas políticas são importantes para o bem-estar e para a manutenção da democracia.
Qual a importância relativa que lhe tem sido dada pelos sucessivos governos em Portugal? Qual o relevo que têm tido na história económica portuguesa? As últimas secções respondem a estas questões.
2. O que é a Política da Concorrência
Para uma economia de mercado funcionar eficientemente, é necessário que:
- Os mercados de bens e serviços funcionem concorrencialmente – concorrência quase-perfeita entre muitas empresas, oligopólios em que a intensidade da concorrência leva ao preço próximo do custo marginal
- O mercado de capitais funcione e haja o livre take-over entre empresas que permita a gestão eficiente entre empresas (desde que sem concentração excessiva)
- Se estabeleça uma corrida (concorrência) entre empresas na busca da inovação, com vista à conquista do mercado, gerando progresso técnico.
- E que a restante economia - sobretudo a de fora do mercado (non-market) – também deve funcionar eficientemente:
- Os monopólios naturais, ou mercados com importantes externalidades (p.ex. ambientais), ou informação imperfeita (p.ex. capitais), devem ser sujeitos a regulação
- O sector público deve funcionar eficientemente sem distorcer, de forma desnecessária, a economia.
A concorrência é o jogo que se estabelece através do funcionamento normal do mercado em que as empresas observam as condições do mercado, nomeadamente a procura que lhes é dirigida e os seus custos, e tomam as decisões de preços a oferecer e quantidades e qualidades a oferecer, bem assim como os timings dos seus investimentos e tipos de técnicas a adoptar. Estas decisões são tomadas por cada empresa, independentemente das rivais, o que implica que cada empresa procure adoptar a técnica mais eficiente, e o preço e a quantidade óptimos, para maximizar o lucro. No caso de um mercado concorrencial, cada empresa tenta baixar o preço e oferecer a maior quantidade de forma a captar uma maior procura. Pela inovação, as empresas descobrem novos produtos que permitem alargar a sua procura, ou novas técnicas que reduzem custos. Ambos os processos beneficiam os consumidores e contribuem para o aumento do bem-estar económico.
A Política da Concorrência é a política económica que tem como objectivo assegurar uma concorrência sã e equilibrada, através da
- Definição e estabelecimento de um quadro legal, informacional e institucional (regras do jogo) claro e eficiente de funcionamento da concorrência,
- Controlo do poder de mercado das empresas,
- Combate aos cartéis, práticas restritivas e abusos de posição dominante, que restringem a concorrência; e
- Redução das distorções da concorrência introduzidas pelo Estado no exercício do seu poder regulamentar e discricionário.
São essencialmente de três tipos os instrumentos da Política de Concorrência:
(1) Difusão da cultura de concorrência (advocacy) que corresponde a um conjunto de acções informativas e formativas de forma a esclarecer a opinião pública da importância da Política da Concorrência. Embora considerado um instrumento menor, a Autoridade tem-lhe dado a maior importância, pelo facto de, até recentemente, não existir entre nós grande tradição de concorrência.
(2) Reformas de leis e eliminação de barreiras à entrada nos diferentes mercados de bens e serviços. Aqui se incluem as Recomendações da Autoridade no que respeita à eliminação das barreiras nos sectores farmacêutico, águas, electricidade (licenciamento ou gestão da oferta), telecomunicações, ou das inúmeras consultas que o Governo tem feito sobre as iniciativas legislativas. Nalguns países, como no Reino Unido, esta consulta é obrigatória, para tornar o sistema legal mais "amigável do mercado".
(3) Os três instrumentos específicos que decorrem da aplicação dos artigos 81º e 82º dos Tratados Comunitários e da Lei da Concorrência (18/2003) são (i) o controlo de concentrações, (ii) o combate aos cartéis e proibição de práticas restritivas da concorrência por actuação coordenada entre empresas, e (iii) a proibição do abuso de posição dominante através de práticas exclusionárias de outras empresas, discriminatórias ou de exploração dos consumidores.
– O controlo de concentrações tem como objectivo prevenir a concentração para níveis que reduzam significativamente o excedente do consumidor, sem justificação do ponto e vista da eficiência.
– Nas Práticas restritivas proíbe-se a formação de cartéis ou acordos entre empresas, ou associações de empresas que fixem preços, quantidades, investimentos ou capacidade ou dividam mercados. A razão da proibição é que o cartel aproxima o mercado do monopólio, e reduz a concorrência.
– Quanto ao abuso da posição dominante, a legislação não proíbe que haja grandes empresas ou que em dados mercados (por razões de economias de escala, ou economia de redes) haja elevada concentração. O que se proíbe é que a empresa em posição dominante abuse desse poder. Como? Reduzindo quantidades, fixando preços, controlando investimentos ou capacidade, ou recusando acesso a redes. Esta proibição visa combater as práticas exclusionárias de outras empresas, que criam ou reforçam o poder de monopólio, práticas discriminatórias ou de exploração dos consumidores.
Mas há outros instrumentos que podem ser decisivos para o êxito da Política da Concorrência. A aquisição dos bens e serviços e investimentos por entidades públicas, por exemplo. Hoje este tipo de aquisições corresponde, na maioria dos países, a entre dez e 15% do PIB. Além disso, o tipo de contratação pública estabelece um conjunto de práticas que influenciam as práticas privadas. O Estado, através da sua política de aprovisionamento, não só influencia o mercado, como pode mesmo ditar as estratégias empresariais. Daí também a importância que a Comissão Europeia dá às directivas da contratação pública, como instrumento de construção do Mercado Único.
Do mesmo modo, a redução/eliminação de distorções do mercado. O Estado é um dos maiores indutores de distorções nos mercados, em particular dos preços relativos e dos incentivos para poupar, investir e trabalhar. Muitas vezes, o comportamento das empresas públicas, ou empresas controladas pelo Estado, encapotado como "regulatório ou disciplinar" distorce a concorrência por isso, a política de privatização é uma componente fundamental da política de concorrência. Também a atribuição de subsídios ou de garantias através das ajudas de Estado Pode distorcer o mercado. Embora este instrumento esteja primordialmente sob o escrutínio da Comissão Europeia, há um importante papel a desempenhar pelas Autoridades Nacionais da Concorrência, em vários países europeus. A lei portuguesa atribui um papel menor à AdC.
Existem ainda duas outras políticas que são complementares de uma política da concorrência eficiente:
A redução das barreiras à entrada e saída do empreendedorismo: a facilitação de entrada de novas empresas é essencial para o funcionamento eficiente da economia. Na medida em que a actividade empresarial está sujeita à incerteza, e que o progresso económico envolve uma componente de "destruição criativa", é necessário que exista um sistema eficiente de saída das empresas, como o regime de falências.
Um regime de Oferta Pública de Aquisição (OPA) eficiente: num mundo de concorrência perfeita não há lugar para ineficiência: a empresa ineficiente desaparece. Contudo, em regimes de oligopólio ou quase-monopólio há lugar para empresas ineficientes, sobretudo quando o grau de concorrência é limitado. Uma forma que o sistema capitalista tem de resolver este problema é o lançamento de uma OPA. Na medida em que o valor da empresa, reflectida nas suas cotações na bolsa, está baixo e mostra um elevado potencial de valorização, uma empresa terá incentivo em lançar uma OPA. Ao tomar conta da gestão da empresa, pode aumentar a sua eficiência, que se reflecte numa subida do seu valor de mercado, e pode realizar um lucro substancial. Sendo assim, é fundamental não só que os estatutos das empresas permitam esta contestabilidade, como que todo o processo seja transparente e permita a transferência de propriedade de forma fluente. Este é um importante papel das Entidades Reguladoras do mercado de capitais, que além do mais também têm a incumbência de proteger os direitos dos pequenos accionistas, para que estas tenham incentivo a investir no mercado de capitais.
Como é que estes instrumentos têm impacto num funcionamento mais eficiente do mercado? Primeiro, a cultura da concorrência influencia directamente o comportamento dos agentes económicos: empresas, consumidores e Estados, muitas vezes com um custo reduzido de "enforcement". Segundo, as reformas institucionais influenciam o quadro de funcionamento dos agentes, também com baixo custo. Terceiro, o controlo de concentrações tem um papel preventivo na formação de posições dominantes no mercado, com um custo também relativamente baixo quando comparamos os custos administrativos e de transacção das empresas com o impacto potencial no bem-estar dos consumidores. Quarto, os processos que a Autoridade da Concorrência e Tribunais investigam e decidem para perseguição das práticas anticoncorrenciais procuram eliminar directamente estas práticas e reparar os prejuízos sociais causados, bem assim como dissuadir os agentes de práticas restritivas futuras. Finalmente, os comportamentos discricionários dos agentes públicos, desde o controlo através de empresas públicas, os sistemas de licenciamento, a atribuição de subsídios, benefícios fiscais, os concursos públicos para abastecimento de bens e realização de obras públicas e o controlo de preços, e que influenciam directa ou indirectamente as variáveis do mercado.