Opinião
A Índia nuclear e o Estado português
Corria o ano de 1968 quando Indira Ghandi se declarou resoluta e ponderosa contra o “apartheid nuclear” imposto por norte-americanos, soviéticos, chineses, franceses e britânicos, recusou assinar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear e acelerou o programa
Corria o ano de 1968 quando Indira Ghandi se declarou resoluta e ponderosa contra o “apartheid nuclear” imposto por norte-americanos, soviéticos, chineses, franceses e britânicos, recusou assinar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear e acelerou o programa indiano que culminou no “teste pacífico” de Maio de 1974 no deserto do Rajastão.
Zulfikhar Ali Bhutto retorquiu do outro lado da fronteira que os paquistaneses até erva comeriam para resistir à ameaça indiana, aproveitou-se do auxílio chinês, e o curso fatal das escaladas militares fez o resto.
O governo nacionalista hindu de Atal Vajpaee anunciou a explosão a 11 e 13 de Maio de 1998 de cinco dispositivos nucleares, apanhando de surpresa russos, norte-americanos e chineses, e Islamabade respondeu no mesmo mês com seis detonações no Balochistão.
Quatro anos depois, Índia e Paquistão estavam à beira da guerra nuclear por causa do diferendo sobre Caxemira.
O colapso da não-proliferação nuclear
A Índia, o Paquistão e Israel são os Estados dotados de armas nucleares que recusaram assinar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear e a Coreia do Norte sobressai como o regime pária por excelência que, em 2003, repudiou o Tratado para se assumir como potência nuclear militar.
O regime de não-proliferação que as potências nucleares tentaram impor falhou e Washington respondeu com uma parceira estratégica com a Nova Delhi, iniciada em 2005 e concluída pelo acordo de cooperação anunciado no final de Julho.
O projecto da administração Bush assenta no pressuposto político de que a Índia (ao contrário do Paquistão) é um estado apostado na contenção do tráfico ilegal de materiais, equipamentos e tecnologias nucleares, ainda que Nova Delhi não seja signatária dos principais acordos internacionais sobre a matéria e se reserve o direito de levar a cabo testes nucleares militares.
Os termos genéricos do acordo indicam que a Índia poderá gozar do privilégio concedido à União Europeia e ao Japão de reprocessar combustível nuclear. Tal eventualidade deverá ter apenas lugar em instalações civis sob inspecção da Agência Internacional de Energia Atómica.
Nova Delhi terá, contudo, o direito de prosseguir um programa militar que, alegadamente, não aproveitará combustíveis, equipamentos e tecnologias de uso exclusivamente civil. Os Estados Unidos não exportarão tecnologias e equipamentos passíveis de uso militar.
Apesar da Índia reservar o direito de retomar testes nucleares a administração Bush, à revelia de uma resolução do Congresso de 2006, compromete-se a encontrar fontes alternativas de combustível caso imponderáveis de segurança estratégia obriguem a Nova Delhi a actividades (ou seja testes nucleares) que possam levar a um corte nos fornecimentos norte-americanos.
A parceria estratégia, além de consagrar a crescente cooperação militar entre norte-americanos e indianos e alargar oportunidades de negócio no sector nuclear civil indiano – que na melhor das hipóteses em 2020 assegurará 5 por cento das necessidades de electricidade do país – é um óbvio contrapeso à China ainda que Nova Delhi prossiga uma estratégia de alianças e busca de abastecimentos energéticos que obrigam necessariamente a um acordo com o Irão, como cumpre a um estado que importa 70 por cento do petróleo que consume.
A ascensão da Índia não é controlável pelos Estados Unidos, mas o sentido político do acordo é passível de ser aceite até por uma eventual futura administração democrática.
A decisão Portuguesa
No contexto internacional, o pacto Washington-Nova Delhi levanta, no entanto, questões de fundo.
O Congresso norte-americano terá de aprovar o acordo.
Os partidos de esquerda e as frentes de castas, que apoiam o governo de coligação do Partido do Congresso de Manoham Singh, poderão levantar problemas, alegando limitações à soberania da Índia, ainda que o parlamento indiano não tenha de ratificar o acordo.
O mais difícil, no entanto, será levar a Agência Internacional de Energia Atómica a aceitar a vistoria limitada das instalações nucleares civis indianas e o Grupo de Fornecedores Nucleares a abrir uma excepção nas regras estritas de controlo de exportações de materiais, equipamentos e tecnologias.
A maioria dos 45 países do Grupo de Fornecedores Nucleares, constituído precisamente na sequência do teste nuclear indiano, tenderá a exigir garantias muito mais precisas sobre a utilização de materiais, equipamentos e tecnologias por parte de um estado que não subscreveu o Tratado de Não-Proliferação Nuclear e se reserva o direito de retomar testes nucleares militares.
Os interesses e concepções estratégicas divergentes de russos, sul-africanos, australianos, suecos ou chineses auguram cisões importantes no regime de controlo do comércio de materiais, equipamentos e tecnologias e serão matéria de discussão nos próximos anos, ainda que a concretização do acordo entre os Estados Unidos e a Índia se apresente como algo de inelutável.
No caso do Estado português, como membro do Grupo de Fornecedores Nucleares, está agora aberta a discussão sobre a excepção indiana.
Aos decisores, sobretudo aos implicados no governo e no parlamento, recomenda-se desde já a leitura de um excelente ponto de situação sobre “a estranha ascensão da Índia”.
Dá pelo título de “Apesar dos Deuses”, é da autoria de Edward Luce, um correspondente do “Financial Times”, e acaba de ser traduzido pela Editorial Bizâncio.
Luce apresenta dados e hipóteses muito bem fundamentadas sobre as parcerias estratégicas da Índia e, portanto, não será por falta de documentação, nem que seja a leitura de um excelente livro, que os decisores políticos em Portugal poderão justificar desconhecimento da matéria, mas é possível que o venham a fazer, alegando a “complexidade do assunto” e demais “matérias relevantes” para se esquivarem ao debate.
Até agora tem sido assim.
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