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21 de Julho de 2010 às 11:35

A arte da eleição antecipada

Três semanas depois de afastar Kevin Rudd da chefia do governo de Canberra, Julia Gillard convocou eleições antecipadas para travar a erosão do apoio ao partido trabalhista.

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A antiga vice-primeira-ministra passou a chefiar os trabalhistas a 24 de Junho, após os dirigentes do partido e sindicais terem concluído ser impossível esperar até Outubro para uma eventual dissolução do parlamento, dada a queda abrupta na sondagens.

Rudd delapidou os apoios que fizeram dele um dos mais populares chefes de governo australianos de sempre ao abandonar em Abril os planos para comercialização de créditos de emissões de dióxido de carbono, face à oposição de conservadores e verdes.

A quebra na popularidade do governo, após abandonar uma das principais promessas eleitorais que levaram à vitória trabalhista em Novembro de 2007, agravou-se com a iniciativa de taxar em 40% os lucros das empresas mineiras, uma proposta particularmente mal acolhida nos estados de Queensland e Austrália Ocidental.

Entrar a matar
Gillard, numa semana, chegou a compromisso com as empresas de mineração e baixou para 30% o imposto sobre lucros, e abarcando apenas a exploração de carvão e minério de ferro, enquanto, noutra frente, proponha a criação de um centro de triagem de refugiados políticos em Timor-Leste.

Sem hesitar, Gillard retomou a política de conter refugiados em centros no estrangeiro, evitando a sua permanência em território nacional, seguida desde 2001 pelo governo conservador de John Howard e repudiada por Rudd.

O governo trabalhista debate-se com um novo aumento das chegadas de refugiados, sobretudo do Afeganistão e Sri Lanka, por via marítima, através do arquipélago indonésio, depois de encerrar os centros de triagem em Nauru e na ilha de Manus, na Papua-Nova-Guiné, para onde eram encaminhados os ilegais detidos em alto mar.

Rudd tentara debelar a crise anunciando em Abril que deixariam de ser concedidos vistos de refugiados a imigrantes ilegais afegãos e do Sri Lanka com o argumento do aumento da segurança em ambos os países.

Se no caso do Sri Lanka ocorre uma melhoria das condições de segurança desde a derrota em Maio de 2009 dos separatistas tamil, no Afeganistão, onde a Austrália mantém um contingente militar, a situação de guerra mantém-se.

À direita e à esquerda, a decisão de Rudd caiu mal no eleitorado, enquanto as chegadas de ilegais a território australiano, 4.052 pessoas até metade deste mês, estão prestes a ultrapassar o número recorde de 5.516 refugiados registado em 2001.

Com 1.131 vistos de residência permanente para refugiados concedidos no ano passado e 1.297 nos primeiros sete meses de 2010, a Austrália está de novo a braços com uma crise de imigração ilegal, o que levou Gillard a propor uma solução de emergência que acabou repudiada pelo parlamento timorense.

Por fim, o governo apresentou na semana passada estimativas de redução acrescida do actual défice orçamental de 2,9% do PIB, triplicando para 3,1 mil milhões de dólares australianos a previsão de excedente para 2012-2013.

Estavam reunidas as condições para a primeira chefe de governo australiana convocar eleições antecipadas para 21 de Agosto.

Ambiguidade quanto baste
Desde o anúncio do passado sábado, as sondagens sobre intenção de voto apontam para uma ligeira maioria trabalhista. Gillard conseguiu assim inverter a tendência negativa que afligia o partido.

Firmou também um acordo com os Verdes para potenciar o voto preferencial: no Senado a favor dos ecologistas, que desempatam as votações, e na Câmara Baixa beneficiando os trabalhistas que têm uma maioria de 16 mandatos.

Gillard renegou igualmente a visão grandiosa do seu antecessor de uma política natalista que aumentasse a população dos actuais 22 milhões para 36 milhões em 2050, afirmando preferir "uma Austrália sustentável".

Implacável, como cumpre num país onde nos últimos quatro anos a oposição conservadora conheceu quatro líderes diferente, enquanto os trabalhistas chegaram ao terceiro, Gillard tem a história a seu favor, pois desde a derrota do trabalhista James Scullin, em Dezembro de 1931, em plena Grande Depressão, todos os governos australianos conseguem cumprir pelo menos dois mandatos consecutivos.

A brutalidade com que Rudd foi afastado pelos seus pares, justificada pela nova líder por "um bom governo estar a perder o norte", é um factor que poderá pesar nas opções do eleitorado, e Gillard não poderá exagerar no corte com as políticas do antecessor e do governo de que fez parte.

Frente a Tony Abbot, líder dos Liberais desde Dezembro de 2009, e seus aliados do Partido Nacional, a chefe do governo terá de definir uma política ambiental (admite rever a questão da comercialização das emissões de dióxido de carbono em 2012) e defender os programas de investimentos em infra-estruturas a financiar pelos impostos especiais sobre empresas mineiras.

Aboot prometeu, por seu turno, anular a taxa de 30%, considerada prejudicial para um sector que representa 10% do PIB, e reduzir a despesa pública.

O líder conservador joga ainda com a insatisfação gerada pela subida da taxa de referência do Banco Central, que desde Outubro passou de 3% para 4,5%, penalizando em particular o sector imobiliário.

Os trabalhistas contam a seu favor com o registo de um crescimento económico de 1,3% em 2009 e com a expectativa das crescentes importações chinesas de minérios permitirem chegar aos 2,7% este ano, enquanto o desemprego se queda pelos 5,1% e a inflação ronda os 2% a 3%.

Cravo e ferradura
Gillard, que começou a sua carreira política na ala esquerda do Partido Trabalhista, tenta captar todos os sectores do eleitorado.

Opõe-se ao casamento gay, promete deduções fiscais pela aquisição de uniformes escolares, defende o direito ao aborto definido pelas diversas legislações dos seis estados e dois territórios da federação, considera fora de questão a próxima convocação de um referendo sobre a proclamação da república, depois da vitória dos apoiantes da manutenção do vínculo à coroa britânica na votação de Novembro de 1999.

Ateia, vive em união de facto, não tem filhos e, aos 48 anos, doze anos depois de se ter estreado no parlamento de Canberra, quatro anos após ter alinhado com Kevin Rudd num desafio vitorioso a Kim Beazley pela liderança dos trabalhistas, Gillard é uma senhora na arte de desferir o golpe fatal na hora oportuna.

A convocação de uma eleição antecipada para que "um bom governo não perca o norte" é uma arte ao alcance de poucos.


Jornalista
barradas.joaocarlos@gmail.com
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