Opinião
Irlanda versus Portugal
É nas diferenças ao nível do pragmatismo, do bom senso e da capacidade de gerar consensos que reside, no fundamental, a vantagem da Irlanda.
Acaba já em Dezembro o Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) que a Irlanda se viu obrigada a negociar com a Troika em Novembro de 2010, seis meses antes de o mesmo ter acontecido com Portugal.
Decidiu o Governo Irlandês não recorrer a qualquer tipo de apoio (de um designado "programa cautelar") para o regresso pleno daquele Estado ao financiamento em mercado. Apesar dos riscos desta opção, são muito perceptíveis as razões que estiveram na base de tal decisão: (i) juros a 10 anos em redor de 3.5% (mais baixos do que em Espanha ou Itália, e quando em Portugal se situam pouco abaixo de 6%), um nível perfeitamente sustentável; (ii) amortizações de dívida pública (Obrigações do Tesouro Irlandês) de cerca de EUR 17 mil milhões em 2014 e 2015, bem abaixo das reservas financeiras de EUR 25 mil milhões de que dispõe, hoje, o Estado Celta.
Já em termos de competitividade e flexibilidade, são evidentes as diversidades entre as economias dos dois países – e que são favoráveis à Irlanda (1); ainda assim, creio que é nas diferenças ao nível do pragmatismo, do bom senso e da capacidade de gerar consensos que reside, no fundamental, a vantagem da Irlanda. Uma vantagem que tem caracterizado a sociedade irlandesa desde meados dos anos 80 e que se manteve na hora em que a crise chegou. Um pragmatismo, um bom senso e um consenso que envolveram partidos políticos (incluindo, claro, as forças políticas da Oposição) e parceiros sociais (incluindo, claro, movimentos sindicais) – e que não tiveram nem preconceitos ideológicos nem nenhum Tribunal Constitucional a condicionar quaisquer decisões tomadas. Um pragmatismo, um bom senso e um consenso que têm permitido que o ajustamento orçamental irlandês, iniciado em 2009, ainda antes da chegada da Troika (e, portanto, por iniciativa própria), assente, até 2014, maioritariamente na redução da despesa pública (incluindo massa salarial e prestações sociais) face ao aumento da receita (numa relação de cerca de 2/3 para 1/3) – porque, a médio e longo prazo, é esta a forma de reduzir o endividamento público que melhores e mais sustentáveis resultados produz. Um pragmatismo, um bom senso e um consenso que, apesar da subida da carga fiscal em geral, fizeram questão de não tocar no regime de IRC, mantendo a tributação directa sobre as empresas como uma das mais competitivas e atractivas da Europa – reconhecendo e confirmando que, mais do que beneficiar o factor capital, é actuando desta forma que se consegue captar investimento, criar emprego e beneficiar a vida dos cidadãos.
Não é exagero concluir que a Irlanda percebeu, mesmo antes da chegada da Troika, as correcções que tinha de empreender, dado o contexto que enfrentava, o mundo em que vivia, e as orientações europeias. Porque o Mundo é aquele que é, e não aquele que todos gostaríamos que fosse.
Sim, a situação de Portugal é bem mais difícil do que a da Irlanda. E há factores que estão fora do controlo do Governo, dos Partidos e dos Parceiros Sociais: a evolução dos principais destinos das exportações portuguesas (dentro e fora da Europa) influenciará decisivamente a sustentação da retoma da nossa economia; as decisões da Reserva Federal dos EUA sobre as suas intervenções nos mercados influenciarão o rumo das taxas de juro das emissões do Tesouro Português. Mas há outros factores que dependem directamente de nós, em que temos dado motivos de sobra aos investidores para nos desfavorecerem face à Irlanda –, mas que ainda vamos a tempo de emendar. É o caso da crise governativa de Julho passado (que os investidores ainda não esqueceram); da deterioração do ambiente político e social, seja por uma ineficaz comunicação das opções do Governo, por calculismo do PS (que foge de quaisquer compromissos que ameacem um hipotético regresso ao poder, parecendo ignorar que pouca ou nenhuma margem lhe restaria para tomar outras opções se tivesse de governar nas actuais circunstâncias), ou por uma incompreensão dos parceiros sociais (nomeadamente sindicatos) quanto à imperiosa necessidade de termos de empreender as mudanças e opções acordadas com os nossos credores e que durante tanto tempo foram adiadas; da actuação de um Tribunal Constitucional que, ao tomar decisões ignorando a emergência financeira do país, apenas cria dificuldades adicionais que promovem desigualdades e privilégios.
Desgraçadamente para nós, nunca olhámos com devida atenção para o modo de actuação da Irlanda desde meados dos anos 80 – que haveria de levar um dos países mais pobres da União Europeia a ter um dos mais elevados níveis de vida dos 28. Nem nas negociações com a Troika soubemos tomar como referência a anterior experiência dos irlandeses – o que levou a que tivéssemos acordado num PAEF com metas orçamentais irrealistas que, para serem cumpridas e possibilitarem a recuperação da credibilidade externa do País, exigiram esforços muito superiores aos inicialmente previstos. Que ao menos a forma como a Irlanda vai reconquistar a soberania perdida possa servir – por uma vez!... – como exemplo e inspiração a Portugal.
(1) Ver para o efeito, por exemplo, os mais recentes relatórios "Doing Business 2014" do Banco Mundial, e "Global Competitiveness Report 2013-2014" do World Economic Forum.
Economista, ex-Secretário de Estado do Tesouro e das Finanças
miguelfrasquilho@yahoo.com