Opinião
A neblina do regime
Percebe-se que há uma neblina perigosa quando uma maioria de esquerda no Parlamento pretende silenciar os pequenos partidos
Não são os escritores de canções que mudam sociedades, a sociedade é que muda os escritores de canções.
José Mário Branco
A neblina do regime
Percebe-se que há uma neblina perigosa quando uma maioria de esquerda no Parlamento pretende silenciar os pequenos partidos; percebe-se que há uma neblina que desfoca o regime quando o PSD acha boa ideia passar os debates quinzenais com o primeiro-ministro a debate mensal, para diminuir os incómodos e ruídos perigosos e não expor tanto a sua própria fraca oposição; percebe-se que a neblina passa a muro opaco quando o presidente da Comissão de Transparência do novo Parlamento, Jorge Lacão, admite que as reuniões daquele órgão decorram à porta fechada. Tudo isto se passou no Parlamento no primeiro mês de actividade - pode dizer-se que, pelo caminho que as coisas levam, a Assembleia da República está seriamente empenhada em dar uma má imagem e em continuar a aumentar o desprestígio da função de deputado - situação que, pelos vistos, não desagrada aos próprios. Se juntarmos a isto a ideia deixada no ar por António Costa de que os impostos indirectos poderiam subir, de que há planos de um englobamento que é apenas um eufemismo para aumento do IRS, e se ainda juntarmos as notícias sobre a continuação de dificuldades financeiras na saúde e transportes, temos uma ideia do que prometem ser estes quatro anos da legislatura agora iniciada: areia lançada à ventoinha para iludir os incautos, uma sucessão de promessas feitas em ano eleitoral que, de repente, entram na zona de amnésia do poder e que, na realidade, nunca foram anunciadas com a ideia de serem cumpridas. Chegámos ao ponto em que o engano é a arma da política e a ocultação a máscara dos políticos. O mais engraçado de tudo é que o efeito desejado - e que até aqui tem sido bem conseguido - é que aumente o desinteresse pela política, para que sejam cada vez menos os que votam, de forma que os eleitos sejam cada vez menos representativos e cada vez menos alvo de escrutínio.
• Em Portugal, a sindicalização caiu de 61% para 15% em quatro décadas • há mais de 50 mil doentes à espera de serem operados para lá do prazo legal • o número de hospitais que ultrapassam os tempos máximos nas operações prioritárias ao cancro aumentou de 18 para 22 • ortopedia e oftalmologia têm os piores tempos de espera para primeira consulta hospitalar • uma consulta prioritária de ortopedia chega a demorar 3,8 anos • na Guarda, uma primeira consulta de cardiologia pode chegar aos cinco anos • há 21 pedreiras em situação de risco sem vedações • a mais antiga bienal de arte portuguesa, de Vila Nova de Cerveira, deixou de ser apoiada pelo Ministério da Cultura • apesar das promessas e anúncios anteriores, o Governo suspendeu 18 obras na ferrovia do Norte e Centro • os alunos da Faculdade de Letras de Lisboa queixam-se de que há ratos e baratas nas instalações universitárias • há quase 42 mil idosos a viver sozinhos ou isolados • o número de pré-avisos de greve até Outubro foi o mais alto dos últimos quatro anos, totalizando 781 • desde 2008, a crise e os avanços tecnológicos eliminaram 16 mil postos de trabalho na banca e fecharam quase dois mil balcões. E foram eliminadas três mil caixas multibanco • Bruxelas continua a incluir Portugal nas oito economias com orçamentos para 2020 que ainda apresentam risco de infringir as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento.
Dixit
"Entre aumentos do IRS ‘para os ricos’ (vulgo classe média) e mais impostos politicamente correctos, o futuro do nosso socialismo é o de todos os socialismos: durar até acabar com o dinheiro dos outros."
José Manuel Fernandes
Cem anos de histórias
Quem gosta de música e seguia The Band deve ter visto "The Last Waltz", o filme do concerto final do grupo, em 1976, realizado por Martin Scorsese. A páginas tantas, no filme, aparece um homem a declamar um poema, "Loud Prayer". O homem é Lawrence Ferlinghetti, um escritor, poeta e artista plástico norte-americano que completou em Março passado 100 anos. Ele é um dos expoentes da chamada Beat Generation. Criou a editora e livraria City Lights, que publicou o célebre e polémico poema "Howl", de Allen Ginsberg, e se viu envolvida numa batalha legal pela liberdade de expressão. As suas ligações a uma geração de músicos cruzam nomes como Bob Dylan, Roger McGuinn, mas também Cyndi Lauper e The Residents. O poema "A Coney Island Of The Mind" é, porventura, a sua obra mais célebre. Este ano, coincidente com o centésimo aniversário do autor, foi publicado em Março, nos Estados Unidos, a novela "Little Boy", agora editado pela Quetzal com o título "Rapazinho" na tradução portuguesa. É uma curta novela, autobiográfica, na qual Ferlinghetti revisita a sua vida, sublinhando que o único fio condutor da obra é o relato do seu envelhecimento. Mais do que um testamento literário, o livro percorre reminiscências biográficas e profecias sobre o que podemos esperar da vida no futuro. Ferlinghetti é uma figura incontornável da cultura contemporânea nos Estados Unidos, uma referência de uma geração e, neste "rapazinho", surgem referências a nomes como Jack Kerouac, William Burroughs e T. S. Eliot, entre outros. O livro percorre episódios da infância, da adolescência, da vida durante a segunda guerra, da descoberta de Paris e da forma como se estabeleceu em São Francisco e influenciou a vida cultural da West Coast. É um pequeno livro maravilhoso, a falar do que se passou, sem ser passadista e a deixar muito campo aberto à imaginação. Ferlinghetti, aos 100 anos, felizmente continua provocador.
A ficção da realidade
Edgar Martins é um fotógrafo português que tem vivido fora do país, nomeadamente em Macau e Inglaterra e venceu o BES Photo em 2009. A sua carreira profissional passou pelo fotojornalismo e em trabalhos publicados em vários grandes jornais, como o The New York Times. Um deles provocou polémica, porque o jornal entendeu que as fotografias tinham sido manipuladas - o que era verdade e o autor não negou. Edgar Martins argumentou que a manipulação não era para ocultar a realidade, mas para a ultrapassar e interpretar. Hoje em dia, a pós-produção das imagens fotográficas que regista e utiliza tornou-se quase regra no seu trabalho. A exposição que está na Galeria Filomena Soares é um bom exemplo deste conflito entre a realidade, a ficção e a interpretação do mundo à sua volta, conflito que cada vez povoa mais a obra de Edgar Martins. "What Photography has in Common with an Empty Vase" é o nome da exposição, que mostra um trabalho desenvolvido em colaboração com uma prisão de Birmingham, com os seus presos e respectivas famílias. No centro, está a forma como Edgar Martins encara e faz coexistirem a visibilidade, a ética, a estética e a documentação. Perturbante, o trabalho reflecte o sentimento de ausência provocado por uma separação forçada e recorre à ficção para construir uma narrativa que enquadra a tese defendida pela escolha das imagens e da forma de as mostrar.
Arco da velha
Nos últimos dias, foram feitos dois anúncios oficiais: a certeza de que o pavilhão do gelo em Lisboa acontecerá nesta legislatura contrasta com o reconhecimento de que a ala pediátrica do Hospital de S. João no Porto vai ter de esperar.
40 anos a remar
Os Xutos & Pontapés começaram há 40 anos - até me arrepio a pensar nisto e a recordar-me de como os conheci numa sala de ensaios, numa garagem salvo erro perto entre Belém e Algés, antes de a zona estar na moda. Nesse dia percebi que estava ali alguma coisa diferente, uma energia feita de convicção. Uns tempos mais tarde, ouvi "Sémen" e tive a certeza de que os referenciais da música portuguesa estavam a mudar. Muitas vezes os ouvi no Rock Rendez-Vous, assisti a concertos deles ainda antes de encherem pavilhões. Nunca saí aborrecido de um dos seus concertos, não tenho memória de me ter desiludido. Para assinalar as quatro décadas da banda, foi agora organizada uma compilação, sob a forma de duplo CD, que inclui 40 faixas marcantes da carreira dos Xutos, desde o primeiro single "Sémen" até "Mar de Outono" do álbum "Duro", editado já este ano. Pelo meio estão temas como "Remar, Remar", "Longa Se Torna A Espera", "O Homem do Leme", "Não Sou O Único", "Vida Malvada", "Gritos Mudos", "Para Sempre" ou o "Mundo Ao Contrário", entre tantos outros. Ouvir o disco é imaginar os últimos 40 anos da história de Portugal - porque cada uma destas canções teve o seu lugar no tempo e não poucas vezes se relacionou com o que se passava no país. As canções estão alinhadas por ordem cronológica e incluem temas como "A Minha Casinha", "À Minha Maneira", "Para Ti Maria" ou "Se Me Amas", por exemplo. E continuo a ouvir tudo isto com o agrado de cruzar memórias.
Peixinho em Palmela
Farto de restaurantes com conceito e sem respeito pelo cliente, resolvi visitar a nova morada de um clássico da zona de Azeitão, "O Pescador". Anteriormente estava na zona de Brejos, agora está perto de Palmela, numa sala maior e com um nome equivalente, "Dom Pescador". Mas, à frente das operações, continua o Sr. Manuel, olhar vigilante sobre as mesas, a recordar-se de clientes, mesmo antigos e pouco assíduos. Os trunfos do restaurante são o peixe muito fresco, o bom marisco e uma cozinha cuidada. O serviço é atento e, mesmo com a sala cheia, as coisas andam com suavidade. Um dos trunfos da casa é a qualidade de percebes e amêijoas. Os primeiros foram de aperitivo, fresquíssimos, gordos, com o mar lá dentro, no ponto certo de cozedura. As amêijoas apareceram voluptuosas, no meio de uma canja de garoupa abundante e absolutamente exemplar. Provou-se também um linguado grelhado, impecável de preparo e de frescura, com um belo feijão-verde a acompanhar. Outros petiscos possíveis, dependendo do que aparece no mercado, são salmonetes fritos com arroz de berbigão e pregado frito com arroz de conquilhas. O grande aquário à entrada da sala de refeições é um jardim das delícias com lavagantes e lagostas. Mesmo os peixes mais simples são tratados com a atenção que o mar merece. E sem manias. Rua Dr. Bernardo Teixeira Botelho N.º7, Palmela,
telefone 212 104 641.